segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Poema bêbado do terrorismo

vi o Marcos explodir
pela boca essa noite,
seus olhos de carvão
apagaram por alguns minutos
e a mulher começou a chorar
machucada pela pior
das coisas

vi o Marcos explodir
essa noite e
seu nariz despejou
sangue na minha
blusa e
quando rastejou pelo
piso cinza - juntando pedaços,
os próprios pedaços
ele tentou levantar apoiando as
mãos úmidas na parede.

enquanto ele se debatia
para ficar em pé,
eu imaginava quando os outros
explodiriam também - cada qual
com sua bomba.
eu sei, é inevitável não cansar
de carregar tanta merda
em meio a todo o sangue
girando no corpo, sufocando
o coração

isso aqui, meu amigo
é só um solvente;
e por algum tempo
você esquece que
todos acabam praticando o
terrorismo.

quando sento
diante dessa maquina tremula e
batuco nas teclas, na verdade
estou explodindo
também.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Ontem à noite

Precisei falar com você ontem à noite. Precisei olhar para todos os teus dedos e dizer o quanto eu gosto da tua mão pequena, tão bonita e macia como se fosse de mentira. Precisei cair da cama e bater o nariz no criado mudo pra perceber que você não estava ali. Não tinha calor, nem um céu no teto do quarto. Não tinha um buraco negro dentro do guarda roupa e nem o seu cheiro no travesseiro. Não tinha mais nenhum fio dos teus cabelos escuros preso na rede da varanda. E como era bom deitar contigo ali durante a noite, ficar com os dedos perdidos nas madeixas que escorriam da tua cabeça, só pra ver os morcegos comerem as frutas da árvore do vizinho e contar historias sobre a lua e sobre a maldade desse mundo mesmo que não fossem nada bonitas, mas eu sabia que você gostava de coisas verdadeiras.
Sabe que ontem também tentei te ligar, mas fiquei com medo. E você sempre dizia que eu era medroso em relação a tanta coisa. No fundo não é culpa minha; é como se tivesse outro alguém morando na minha cabeça, alguma coisa que me puxa pra dentro de mim mesmo, algum outro eu segurando minha própria garganta, querendo incondicionalmente sufocar. O mesmo eu que não tem medo das coisas ruins, mas que cansou de lutar contra uma tempestade inacabável aqui. Uma tempestade que já me arrastou e vem tirando muito de mim nos últimos anos. Até preferia ter te conhecido em outra época se é que me entende, numa outra vida talvez. Isso só pra não ter essa lembrança me prendendo nesse lugar horrível. Só pra não sustentar esse lixo de esperança por mais tempo.
Não queria que fosse assim, essa merda toda banhada em álcool – minha vida – indo cada vez mais longe, dando tantas voltas pra chegar ao mesmo lugar. Ando agonizando e me arrependendo de coisas que nem mesmo sei. Ando vivendo e morrendo de saudade enquanto meus passos quase já não são mais passos.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Você disse: Nunca mais quero acordar

Era sempre um dia estranho quando você resolvia jogar baralho sozinha. Você ficava sentada na mesa com a cabeça baixa embaralhando as cartas em movimentos lentos e desordenados, depois estendia todo o baralho sobre a toalha branca de bordados azuis e verdes e puxava do bolso a cigarreira, enrolava um cigarro, os dedos finos tremiam enquanto levava o papel até os lábios espessos e entreabertos, eles quase não tinham cor. Depois sussurrava alguma coisa, era praticamente um sopro inaudível, mas ainda assim chegava a doer e eu sempre me sentia incapaz nesses momentos. Sempre me sentia um pássaro com as asas recém arrancadas por um serrote.
Muitas das cartas já se encontravam queimadas por cigarro, derretidas no meio e nas pontas, as damas já não tinham rosto. Você não gostava que elas sorrissem mais que você. Dizia que elas tinham algo mágico e que assim, destruir algo bonito te fazia sentir melhor. Te fazia aceitar que a vida, os sonhos, a alegria, qualquer coisa nessa porra de mundo tinha fim.
Nesse dia, você apenas deixou o baralho amontoado no centro da mesa, arrastou a cadeira até encostar na parede que tínhamos pintado de um verde bem claro, pois você dizia que quando criança sonhava com paredes dessa cor. Nós pintamos juntos essas paredes, todas as quatro da nossa sala apertada e esse lugar agora parece morto, os moveis, o sofá vermelho desbotado. Tudo morto. Eu estava na varanda, limpava as bostas de pomba que estavam grudadas no apoio, quando você veio correndo, seus cabelos longos tão negros e finos quanto linhas de costura esvoaçavam formando uma nuvem densa. Seu rosto grudado ao vidro, seu sorriso alongado expondo os dentes amarelos, o canino trincado. Seus olhos verdes de moça pedindo afago. Você sorria, mas seu olhar carregava desalento e quando ultrapassei a porta de vidro, não tardou em derramar algumas lagrimas. Eu te envolvi nos braços e você resmungou sobre um atentado terrorista qualquer e depois disse que tinha muito monstro por aí, que era melhor nunca sair de casa, que aquela porta feia, marrom escura com uma lasca faltando no centro devia ser o limite das nossas vidas. Você disse também algo sobre seus fantasmas, que nos últimos dias estavam fazendo um verdadeiro massacre e sua cabeça doía muito. Você gritou "NUNCA MAIS QUERO ACORDAR", meus tímpanos estremeceram. Nós ficamos ali, grudados com as peles, os pelos durante bons minutos. Eu sabia que aquilo tava piorando, você tava piorando, você estava tão fraca e tão bonita ao mesmo tempo.
Naquela noite deitamos cedo e a janela ficou aberta, tinha uma lua quase invisível espiando lá de fora e resolvemos fazer um show pornô para ela. Eu posso garantir que aquela foi a melhor trepada da minha vida. Quando terminamos, você se afundou no lençol, eu podia sentir sua respiração nas costelas e abracei sua cabeça com o braço. Você adormeceu.
Quando eu acordei, já tarde, você não estava mais na cama, as roupas ainda estavam todas pelo chão, sua calcinha enroscou num dos meus pés; andei em direção ao corredor, não senti cheiro de café, nem de torradas. A porta do banheiro estava entreaberta, pelas fresta aparecia um chinelo, uma toalha no chão. Bati de leve na porta. "Madalena" chamei. "Madalena" chamei novamente e não obtive resposta de nenhum canto da casa, nem um som qualquer. Mal entrei naquela geladeira forrada de azulejos brancos e velhos, para ver duas ou três vidas desabarem de uma vez, quatro ou cinco mundos explodindo ao mesmo tempo. Eu não sei como suportei aquilo; encontrar seu corpo ali, nu, pendurado pelo pescoço com um pedaço da minha corda de hapel no ferro que sustentava a cortina da banheira, sua boca roxa e meio aberta, sangue escorrendo do nariz, seus olhos vazios, vazios, vazios. Tão vazios que esvaziaram os meus também; me esvaziaram por completo.
Hoje faz uma semana, Madalena. Seu baralho ainda está na mesa, diabos, eu não tenho coragem de mexer naquilo. Suas roupas ainda estão jogadas em volta da cama, eu tenho esse rosto apático e não posso entrar no banheiro, porque eu vejo a sua imagem no espelho, pendurada, roxa, morta. E não posso tomar um banho sem querer me enforcar também.
Encontrei sua carta de despedida agora a pouco no bolso do roupão, ela tem o seu cheiro e ainda não abri. Não consigo tirar o envelope de perto do nariz e eu gostei tanto do desenho do gato que você fez nele, mas eu sei que o conteúdo disso vai acabar com o que resta de mim, e nem quero imaginar como será a proxima semana. E eu tenho medo, uma merda dum medo tão grande que chego a me sentir estúpido, um verdadeiro filho da puta dum estúpido. Ah Madalena, eu devia ter dito "te amo" mais vezes.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

11.11.11

tem uma chuva fina
quase invisível
ensopando minha
janela

e eu me perguntei
sobre ti
a primeira vez que
abri os olhos
hoje.
os pássaros estão mudos
nenhum carro passa -
a televisão da vizinha
também está muda e
eu ainda sustento
algum plano -
apesar de tudo.

as folhas verdes
da arvore da frente
já estão ficando
amarelas e
esse é o sinal
de que o
maldito tempo
passa tão lento e
tão rápido como uma
doença

não ajuda, nada ajuda -
e é sempre pior
arrepender-se de algo
que talvez
podia ter sido feito
mas não
foi.

o arrependimento pode um dia
ficar mudo como os
pássaros hoje,
mas o pequeno monstro que
vive brigando aqui dentro
nunca fica mudo.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Moedas, chuveiros e manchas de bolor

A moeda rolava entre os dedos ásperos e suados e vez ou outra brilhava com a iluminação tom pastel daquele muquifo, como se tivesse alguma vida para perder, algum sorriso escondido em meio aos traçados do metal, no numero um gasto por infinitas mãos de tamanhos e dimensões diferentes.
- Uma moeda. - Kevin rompeu o silêncio daquele canto mais escuro e escondido do balcão - Uma moeda pra tomar essa porcaria. Um lixo dum pedacinho de ferro. Mijo devia valer mais que isso.
Elias terminava seu segundo copo e amassava o cigarro ainda pela metade no cinzeiro enferrujado enquanto ria. Abriu lentamente a boca espumante e amarelada, como se fosse espirrar.
- E Sarah, pra onde foi?
- Foi embora, como todas se vão.
- É... A segunda em três meses.
- Ela levou o meu chuveiro, aquela puta! Agora tenho que tomar banho com um balde, na pia! Pelo menos Ângela não levou nada.
- Ângela levou uma parte da sua sanidade ou o que restava dela. Agora você está mais fodido do que nunca. - Elias suspirou, enquanto acenava para o pequeno homem de rosto rosado que quase se escondia atrás do balcão.
- Mas o pior é ter que encarar sozinho outra vez aquela mancha de bolor no teto, que mais parece um mapa do triângulo das bermudas. Eu não suporto isso, essa visão todas as manhãs. Tudo bem que a janela consegue ser ainda mais assustadora, mas aquela mancha de bolor, porra, planejamos nossas viajens todas em cima dela. Como se por ali o universo estivesse ao nosso alcance a qualquer hora do dia. Como se fosse um portal de saída do inferno. Agora estou verde e musgoso igual aquele teto.
- Você colocou Sarah naquele quarto logo na primeira semana...
- O que você queria? Ela era mágica.
- Todas são. É por isso que você está aqui agora.
- Sabe, eu devia enfiar essa moeda na testa de Sarah, mas vou enfiar naquela garrafa ali. Foda-se, nunca gostei de moedas.
- Pelo menos ainda tem aquele emprego, pra comprar um chuveiro novo.
- Fui demitido hoje, por negligência.
- Ah merda. Você é uma boa pessoa, Kevin. Uma boa pessoa apesar de tudo.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Um troféu que não quero ganhar

a indiferença roendo as unhas
escorregando para baixo dos lençóis
igual a uma sombra
e eles estão esperando
a morte está esperando
o mundo está esperando
um troféu que não quero ganhar.

eu deito olhando para a parede
e as estrelas ficam mais próximas,
enquanto isso
tenho pernas de aranha
e posso caminhar pelo teto,
pelos prédios,
posso correr para o inferno
e voltar

mas não me pergunte sobre objetivos,
não me fale sobre potencial
"oh guilherme, ei guilherme por que não faz isso e aquilo?
o que você quer? assim você não ganha nada!"

não faça isso.

todos por aqui temem o nada
enquanto eu o abraço
com minhas pernas de aranha
e
sou louco e errado por isso
e
sou doente por isso.

oh não, eu não vou deixar nada para o mundo
e isso basta

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Samantha #1

Ela vivia aparecendo por ali. Sempre com o cabelo escuro esvoaçando, boca pálida e lábio inferior rachado no canto direito. A garota vivia olhando para o chão e me encarava quando passava rapidamente pela minha mesa. Eu sabia que ela ia até lá para beber café e chá, talvez comer alguma bolachinha, quando tinha e nada mais. Ela parecia mandar todos os papeis e maquinas e carros à merda, cada vez que esticava uma perna para completar um passo. Depois corria para fora, enquanto meu olhar pesado a acompanhava pelo vidro temperado, até que sumisse na esquina com um cigarro aceso e o vestido preto balançando com o vento. Eu não dava à mínima, quem bancava esse lixo todo eram aqueles estúpidos, eu só queria o meu quarto com minha cama e nuvens pelo teto, enquanto abria uma garrafa para acompanhar os comprimidos.
Meus olhos transbordavam as olheiras pelo rosto e todo dia era tudo igual, a fumaça lá fora, o barulho das impressoras, a cabeça sendo aberta por uma navalha cega. Uma copia dum protótipo de paraíso caído.
Naquele dia, ela movia seu pequeno corpo até a mesinha dos petiscos, quando se defrontou com a cadeira de clientes da minha mesa. Sentou-se com seus grandes olhos que acompanhavam a cor do cabelo. Suas pupilas dilatadas me encaravam como pontas de lança. Tinha um nariz fino e um pouco comprido, era delicado. Coçava uma das orelhas que ficavam escondidas em meio aos fios de cabelo.
- E então, como vai tudo? - Sorria como se fizesse parte de um anuncio de pasta de dentes - Sou Samantha.
- Tudo entupido com porcaria. E você... Samantha?
- Olha cara. Não sei qual é a sua, mas esse lugar não combina nada com você. Queria dizer isso, é.
- Vou me demitir e... cobrir-me de terra.
- Assim, não é um trabalho ruim, apesar de monótono e de muito mal gosto - disse ela, debruçada em uma das mãos - Essa sua mesa aí, marrom claro, com design moderno do mundo que te perdeu há uns três anos. Você sentado nessa cadeira gigantesca e vermelha que perto da sua magreza parece um sofá. Esses montes de papeis e formulários rodeando suas mãos branquelas, esperando que seus dedos pressionem a caneta contra eles, esperando que preencham cada lacuna. Nada disso me parece assustador. Tem até essa maquina aí, pra você batucar essas teclas como um louco imitando um cão enquanto cava a própria cova, porque é pra isso mesmo que servem os dias. E veja sua chefe, tem um grande sorriso quando fala com os clientes mais importantes, "ó madame Denise, sente-se aqui, posso te servir um cafezinho? Que belo colar está usando hoje. Ó senhor Carlos, deixe-me ver o que temos por aqui! Ó!" Aquele batom vinho transbordando dos lábios contrastando com as madeixas loiras e os olhos azuis; muita imponência. Olha como eles devolvem o sorriso e abanam o dinheiro como se estivessem diante de um deus. Sem contar que ela também tem uma bunda apetitosa.
- Bem, nenhuma bunda é tão apetitosa assim quando caga na sua cara.
- É, pode ser... Mas esse lugar não combina nada com você.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Três dias sobre a cama

meu corpo jogado
há três dias
sobre a cama

junto a canção, ela triunfa
como tem de ser
e as moscas fazem companhia

manchas de sangue
enfeitando o lençol e
a parede
e um buraco de três polegadas
na cabeça
parecendo uma maçã
vermelha
do amor

Alguém abre a porta
e depois outro alguém aparece
com os mesmos olhos vendados
com a mesma cara embriagante
rostos iguais
e conhecidos
OH MEU DEUS, eles dizem
e meu corpo treme

um deles corre para o telefone
enquanto minha boca sorri
os barulhos dos passos ecoam
pelo corredor
e
apesar do calor
estou bem
como nunca antes
estive

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Sorriso azul

E ela dizia "ah pelo menos você está vivo" enquanto cruzava os braços, parada sobre a soleira da porta, terminando o cigarro. Depois agitava os cabelos caramelados enquanto me entregava um sorriso daqueles bem azuis. Aquilo vinha sobre mim com a força de um avião cargueiro do exercito colidindo com uma montanha seca e cinza. "Tem muita gente na pior, vendendo até as unhas dos pés e perdendo um dente a cada dia" completava, sempre acompanhada pelo sorriso azul. E quando eu acordava feliz e de pau duro, sem espumar pela boca e pelos olhos, procurando pela garrafa antes do nosso jogo matinal, ela revirava na cama, enrolada no lençol verde claro, manchado com molho de tomate. "Você precisa parar de beber." E então lá estava outra vez o sorriso azul, sempre dizendo que havia algo de muito errado comigo.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Janela

Existe uma janela
iluminando todo
o estrume seco
que tenho
sob as mãos

Ela é triste
e
não pode cantar
e
não pode se envolver em cadeados

Se pudesse,
ela se fecharia
com cimento,
estancaria a luz
com tábuas de eucalipto

Esses papeis ficariam presos,
essa máquina
de tela colorida
chorando códigos, ficaria presa
na escuridão

Eu encaro a janela
com meus olhos de lama,
ela devolve os olhares
gosta de amedrontar
e me expor as vísceras
enquanto as coisas
dentro
e
fora
vão explodindo em convergência

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Perdendo as peças do jogo, queimando o tabuleiro

Comecei a trocar palavras com Manuela no pequeno período em que trabalhei na fazenda. Ia passar um tempo em Portugal e resolvi me juntar a um desses projetos da câmara para restaurar o patrimônio arquitetônico escondido no mato. Minha ideia principal quando escolhi fazer isso era o isolamento. O barulho do vento nas folhas das árvores, o canto dos pássaros, o orvalho frio da manhã. Tudo isso parecia melhor que as vozes da cidade martelando continuamente a cabeça; as pessoas vomitavam coisas horríveis, tinham o poder de destruir sonhos com um simples abrir e fechar de boca e ranger de dentes.
Manuela não falava muito, e ainda assim falava um tanto mais que eu. O que era muito bom e despertava meu raro interesse em trocar algo entre almas. Além disso, tinha um sorriso tímido e pequeno, como se fosse um desenho. Isso sempre me fascinou, o contorno dos lábios, a forma. Parece estupidez, mas eu achava aquilo importante. Como a maioria das mulheres que já me chamaram a atenção, Manuela era baixa, tinha proporções pequenas. A pele queimada de sol. Os olhos castanhos, escuros como terra batida às vezes pareciam cantar enquanto ela lambia os lábios ressecados e se inclinava para arrancar minúsculas ervas do muro. Tinha três dreads que saltavam da nuca quando prendia o cabelo quase da mesma cor dos olhos. Os dreads pareciam pequenos gravetinhos gordos, eu gostava de brincar com eles. Era bonita, não era vulgar enquanto caminhava, nem se importava com o que vestia e xingava como ninguém.
Era estranha também. Tinha a mania de fazer perguntas aleatórias e fora de contexto. Claro, eu tinha que ser muito esquisito para gostar desse habito. Uma vez corri atrás de um arbusto para mijar, ela esperava uns dois metros atrás enquanto me atirava algumas interrogações.
- Não tens medo de cobras? Encontrei uma morta no muro, não quero mais trabalhar lá.
- Não tenho. Vou fazer elas ficarem longe de você.
- Ah. E gostas de reggae? E de batatas, gostas?
- É claro, Manuela.
- Acho bué giro os brasileiros falando! Queres ir à praia comigo? Apresento-te pessoas.
- Pessoas?
- Sim! Ou queres ficar ca sozinho?
- Bem...
- Tens que conhecer gente
- Depende da "gente"
Nesse dia, aceitei o convite, mesmo que a parte das apresentações e a combinação asquerosa de sol, areia, sal e agua me desse vontade de correr para um buraco bem fundo e lá ficar por uma semana. Contei que até gostava de praias desertas, com sombra e pouco barulho. Ela me disse que algum dia me levaria para conhecer uma assim, o que nunca aconteceu.
As coisas iam saindo do controle, minha pedra estava derretendo e eu sabia disso. As cervejas não eram suficientes. Eu ficava amedrontado. O medo era diferente, não sei se chamaria aquela coisa assim, mas era algo que me acuava igualmente. Tirava-me do ciclo normal e autodestrutivo dos meus pensamentos.
Faltavam alguns dias para acabar o tempo do projeto. Manuela sorria e colocava as mãos nas minhas costas. Aquela merda toda acontecia outra vez, eu tinha que parar. No último, ela se ofereceu para me mostrar lugares interessantes da cidade durante a tarde, se eu não tivesse nada pra fazer. Inventei uma desculpa. Uma explosão. Uma privada entupida, e acabei indo mamar umas cervejas.
Aqueles dias haviam acabado e quase fui pego outra vez, eu sabia que no fim acabaria sendo tudo igual. Essa merda sempre termina em dor, sempre termina espetando até as solas dos pés. Meu coração regurgitou por alguns dias e a última vez em que tivemos contato, eu estava bêbado num jantar, rodeado por pessoas parcialmente desconhecidas. Meu celular apitara no bolso. Odiava telefones, principalmente quando interrompiam meu trago. Era Manuela, acompanhada por suas perguntas. “Qual música brasileira é que dizias que eu ia gostar?” Respondi a mensagem com um sorriso de canto de lábio, não esperava aquilo, não sou alguém assim procurado. “Não era brasileira, era argentina. Se quiser algumas brasileiras posso te passar.” Ataquei mais uma cerveja. Esperei três dias por mais um apito e ela nunca respondeu. Me recusei a mandar outra, fuzilei essa ideia durante semanas. Pelo menos dali a alguns dias quem sabe, estaria inteiro mais uma vez, isso é, com as partes que ainda me restavam para tapar os buracos.
Meu fracasso humano está cada vez mais além das nuvens. Não suporto jogar com isso, não sei mais mover o pião. Perco as peças uma a uma, o tabuleiro vai virando cinzas e a chama nunca se apaga.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Luzes esfumaçadas

em algum outro tempo
entre as luzes esfumaçadas
e sujas
meus dedos brancos
e ásperos
encontrarão outra vez
seus longos e negros fios de cabelo
e neles hão de abrir
caminhos para nossos lábios,
para as montanhas
e os seus olhos,
iguais a pequenas jabuticabas
estarão sorrindo denovo

enquanto meu único erro
é esperar
e
te jogar para longe

e esperar;

a bebida fica escassa
os cigarros chegam ao fim
mas as luzes esfumaçadas nunca se apagam
nunca deixam a cidade
são iguais ao meu sangue
que não quer te deixar

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Uma chance para Charlie

O tempo está passando, Charlie
O mundo está derretendo
Vai virar chumbo, vai sobrar só dor
Nunca vai apagar isso com cuspe, Charlie

Nunca mais haverá inverno, Charlie
Nunca voltará a aquecer aquela boca
Não vai mais acender uma fogueira, Charlie
Vai se tornar a fogueira

Seus dedos finos e pálidos vão ser os gravetos, Charlie
Vão ser lenha, vão virar carvão
Seu corpo inteiro se desfazendo em cinzas, Charlie

Você desaparecendo -
montanhas de cinza e poeira
Seu amor sumindo até o último pelo, desintegrando
espalhando tinta por entre os prédios
Montanhas de ossos, poças de urânio, Charlie

Não olhe pra essa janela suja
Não tem nenhum pássaro lá fora
Ninguém te esperando - ninguém ouvindo suas historias
Nem vento e verde e abraços, Charlie
Aquele quintal nem está mais ali
Você não pode mais brincar, Charlie

Feche seus olhos
Mantenha a distancia do quadro que pintou
Você consegue
Aperte essa porra de gatilho, Charlie

sábado, 6 de agosto de 2011

Muito cedo para matar baratas

A vida de Edgar se resumia em fatores simples e cotidianos. Pensava ele que no mundo não poderia existir nada mais delirante e estúpido que sua vida empoeirada, presa numa existência trivial e seca, nem mesmo Deus e todos aqueles santinhos medonhos e feios que rodeavam as igrejas, as casas, as praças, os escritórios de advocacia e os banheiros públicos seriam tão falsos e tristes como cada uma de suas manhãs ensolaradas ou não, sempre cinzas. Sentia-se aprisionado dentro de um pequeno souvenir, daqueles em formato de bola de cristal, que abrigam dentro uma pequena casa. Um mundo portátil e sujo que quando chacoalhado, arremessado ou bombardeado, só faz nevar e nevar e nevar.
Acordava cedo, com olhos de tigre e nariz escorrendo. Dava palmadas no despertador, que pulava freneticamente na mesinha de cabeceira, até que este fizesse o mais profundo silencio. O último minuto de paz da manhã. Descalço, arrastava os pés até o banheiro como se passasse por um caminho de brasas e cacos fininhos. Lavava o rosto três vezes, antes de erguer a cabeça e contemplar sua imagem de animal acuado em meio à sujeira impregnada nas bordas do espelho. Nunca tomava café, qualquer comida naquele horário lhe caia mal, não conseguia ingerir nem mesmo uma maçã. Por vezes sentia vontade de chorar, ainda parado em frente ao engordurado espelho. Elas nunca escorriam. Era como se suas lagrimas tivessem evaporado, tivessem virado uma cortina de fumaça que desapareceu acima das nuvens. “Merda!” ele dizia, “merda, merda, merda!”
Sua casa virava um campo de batalha quando finalmente se encontrava parado em frente à porta, esticando o braço, alcançando a maçaneta enferrujada, fazendo luz, ruído, fumaça, medo. O poder da rua contra seus cinco dedos magros e gastos da mão esquerda. Ele ganhava essa batalha já há uns bons trinta anos. Era mais um mutilado, uma vitima, do que um veterano de guerra. Não existe mutilação pior que a mutilação da alma. Podem te arrancar as orelhas, os braços e as pernas que você ainda encontra forças pra sorrir, pra voar. Com a alma é diferente, se te esquartejam a alma, só ela, é o fim. Edgar se sentia uma carcaça, uma verdadeira carniça jogada no deserto de concreto, a mercê dos abutres. Milhões deles, famintos nas janelas dos prédios, nos mercados, nas salas de espera dos dentistas, nos cinemas. Sobrevoavam as calçadas, as ruas, os metrôs. Tudo. O planeta era um gigantesco açougue perdido na escuridão do espaço.
Era uma manhã de terça feira. Não chovia, não fazia sol, não fazia nada. Seguiu minuciosamente sua costumeira rotina, exceto pela barata que passou correndo por entre suas pernas quando se aproximava da porta. “Muito cedo para matar baratas.” Pensou.
Andava devagar, carregando nos joelhos toda a estupidez e cansaço do mundo. Arrastava tudo isso pela praia, gostava de passar por ali naquele horário porque não havia ninguém. Ficava só, com o cheiro de marisco e o gosto de sal. Era bonito e triste, seria um pouco melhor se as ondas pudessem trazer do mais profundo oceano, novos sonhos. Sonhos com grandes árvores e barulho de vento e cheiro de terra misturado com qualquer perfume desconhecido. Qualquer odor que não fosse o de sangue batido com tijolo e ferro.
Seus devaneios foram interrompidos quando cruzou o beco que conectava a cidade ao prédio onde trabalhava. O lugar fedia a mijo e vômito. A entrada para o inferno devia estar próxima, pensava. E era só virar a esquina, passar a mercearia ainda fechada para dar com a cara nos portões negros e envelhecidos do edifício 143.
Na recepção Senhor Carlos batia os pés enquanto flertava com a secretária. Afundou os olhos azuis do tamanho de escaravelhos contra os de Edgar:
- 15 MINUTOS ATRASADO EDGAR. 15 MINUTOS!
Tinha hálito de peixe morto, era como se tivesse escamas espalhadas por toda a boca, era horrível. Era humano. Podre.
Edgar sorria enquanto alargava os passos até o elevador. Gargalhava, morria por mais um dia.
- TE CONTEI ALGUMA PIADA? – Interrogava Carlos, lá de trás. – EXISTE AQUI ALGUM PALHAÇO? JUNTE SUAS COISAS E DE O FORA DAQUI!
Edgar não respondeu. Foi até sua sala, sentou-se e acendeu um cigarro antes de começar a juntar as tralhas. Ele tinha ânsia, queria vomitar. “Maldito porco de olhos azuis.” Dizia para si mesmo. Pouco a pouco perdia o controle, não sabia mais para onde correr, não suportava. Não entendia nada. Cinquenta anos atolado na merda. Cinquenta anos vivendo a morte, o inferno. Ele desistia.
Aquela manhã, Carlos merecia, devia estar morto, com os miolos espalhados por todo o balcão da secretaria ou fatiado como uma picanha, mas era muito cedo para matar baratas.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Jack

Quando caminho como se estivesse adormecido em morfina, pelas ruas pueris e enferrujadas, na humidade da madrugada a pouco amanhecida, acompanhado apenas pela minha garrafa de vodca barata e pelo orvalho fresco das folhas que me rodeiam e acabo por descobrir que ela, aquilo que me segue passo a passo pelas curvas do infinito breu noturno e frio está logo atrás com os olhos de sangue seco, fixos e tristonhos de sempre, percebo então o quão perdido e sem saída estou. Percebo também a terra que calça meus pés gelados desabar num funeral de passos apresados e barulhentos. Vários deles, que desesperados procuram um abrigo ou qualquer merda que aqueça e faça esquecer. Qualquer coisa menos doída que um final solitário e distante como sempre planejei entre toda a sujeira cotidiana e desumana do mundo.
*
Naquela noite, o percurso todo soava a clichê. Um mar de clichês descabidos e aterrorizantes. Eu tentava de todas as formas desviar o curso, mudar de um pensamento para outro ainda pior como se trocasse de roupa. Como se o mundo fosse um grande navio prestes a se chocar contra um iceberg com os marinheiros todos desesperados sobre a proa, a esbravejar uns com os outros, enquanto o capitão se embebedava no porão. Nunca me tive como marinheiro. Não sei se esse navio é grande demais pra mim ou se todos os tripulantes são tão estúpidos que chego a preferir a morte varias vezes ao invés de sair da minha cabine particular e seguir mandamentos ridículos e sociais com o propósito de conquistar qualquer tipo de status tosco e material; tamanho é o tormento que sempre termino por pensar em mergulhar para o fundo do mar e fingir que não sei nadar.
As pedras do calçamento pareciam desmanchar em meio à escuridão como blocos de cinzas. Eu estava mais uma vez bêbado, tentava correr para o outro lado da rua, mas logo pensava melhor e desistia devido aos constantes faroletes que me atravessavam a vista e as malditas buzinas que me remexiam as entranhas. Parava para vomitar algumas vezes em postes ou árvores e até mesmo nos velhos portões que vestiam a calçada. Gargalhava sozinho enquanto recuperava a postura inicial, mas a merda sempre estava ali comigo. Solidão, era isso que me roía o crânio feito uma capivara gulosa. Pensava muito em solidão. Que palavra mais cretina era essa. Qualquer pessoa pode se sentir sozinha. É uma condição humana, algo que a gente nem sente aparecer e quando vamos ver, já é tarde demais. Mas comigo sempre foi diferente. Minha última garota costumava dizer que eu afastava as pessoas, todas elas. Eu já seguia outra linha de raciocínio, as pessoas é que me afastavam, eram cansativas e sujas. Quantas vezes preferi ouvir o canto dos pássaros no lugar de um alguém falando sem parar na minha orelha. Tinha também o pormenor de ser diferente, gostar diferente, dormir diferente. Se nos tornamos um tijolo que não se encaixa nesse muro, logo somos descartados, não servimos nem prestamos. Não somos interessantes e sendo assim, sempre existe alguma mão pra te partir no meio. A solidão gosta de fazer isso quando é mal interpretada. Mas essas pessoas todas te cercando todos os dias são infinitamente piores e cruéis, não é uma realidade difícil de perceber.
Já chegando a casa, enquanto cruzava o movimento madrugador da 29 de Agosto, passei pela praça da matriz e resolvi circular uns instantes por ali. Subi a pequena escadaria cinza da igreja e parei na porta, falando sozinho feito louco. Encontrei um homem deitado ao pé da grande porta de madeira. Era um desses tipos vagabundos que todo mundo cospe e pisa em cima quando vê. Cheirava a esterco e tinha um único cobertor que talvez já tivesse sido cheiroso e claro como algodão, confortando algum bebê gordo e risonho do condomínio de luxo atrás do bosque. Olhava-me com uma espécie de medo, um medo que eu compartilhava e compreendia. Resolvi chamar-lhe Jack. Sentei-me ao seu lado e lhe ofereci um pouco da garrafa.
- Eu não bebo. – Descarregou com uma voz fraca e cansada.
- Oh, oh...
- Mas se tiver um cigarro, aceito.
Eu tinha meio maço no bolso da jaqueta. Ficamos a fumar enquanto Jack rompia o silencio da sua vida semimorta:
- Faz dois anos que durmo aqui e Deus nunca me abriu a porta da casa. O padre da paroquia me faz cara de nojo toda manhã quando vem abrir a igreja. Pelo menos ele lava minha cama todos os dias, sabe como é...
- O padre é só mais um. – respondi disparando a bituca do cigarro escada a baixo.
- Mais um?
- Mais um perdido.
Jack riu como há tempos não ria, ele era um cara legal e sabia das coisas. Isso era solidão.

terça-feira, 7 de junho de 2011

O pequeno caçador de relâmpagos

Debruçara na janela pouco antes do caminhão fazer tremer seu prédio de cinco andares e cinco décadas de idade, na esperança de que algum raio lhe partisse a cabeça, mesmo sabendo que este nunca viria, já que seria um ato de muita bondade da vida para com ele. E a verdade colega, ele conhecia muito bem. A vida nunca esteve a seu favor. Não estava a favor de ninguém.
Era um domingo negro. O céu escurecia calmamente junto ao ocaso daquela tarde invernal, não pela ligeira e doce saudação da noite, mas sim pelas volumosas nuvens negras que não tardariam em derramar suas lágrimas sobre a terra cinzenta. As nuvens aconchegavam-se no firmamento como bebês em um grande berço escuro e mórbido aguardando os abraços dos sonhos de papel.
O pequeno caçador de relâmpagos morava no quarto andar. As paredes eram todas rabiscadas. Vomitava os pensamentos em cima da tinta branca escurecida pela idade como se aquilo ali fosse a única página que sobrara em sua vida. Não gostava dos vizinhos, nem de rodas e carros e aparelhos televisores. Ele era assim, era aquilo. Uma espécie de humano em mutação, um quase bicho.
Nosso pequeno em questão tinha lá seus quase vinte ganchos de idade fincados nas costas, devidamente presos e enroscados na carne magrela e pálida. Não era muito interessante aos olhos dos outros e já nem queria ser. Tentava ser visto há alguns anos, mas agora a inexistência calhava melhor. Era tão boa quanto uma barra de chocolate. Nada podia ser mais confortável quanto a ausência de todas aquelas vozes pinicando, espetando, arranhando a cabeça.
Moveu-se em direção à porta. Fitava-a com um ar pesado de chumbo e bronze, apoiou uma das mãos sobre o aço gélido da maçaneta. Todos os dias, quando se via forçado a caminhar até a padaria, esperava que o edifício viesse em ruína para que aquele pesadelo fosse evitado. Direcionar seus passos pela rua era um tormento. A cidade pequena o sufocava como se fosse uma câmara de gás. A mesmice dos rostos estúpidos o irritava. Às vezes sonhava que as pessoas daquele lugar não passavam de baratas imundas passeando por um esgoto cercado de casas. Tinha vontade de martelar a cabeça de cinco ou seis conhecidos até os miolos vazarem pelos ouvidos como se fossem pus toda vez que corria para o abismo seguinte. Coisa que lhe roubava varios sorrisos.
Quando finalmente resolvera colocar os pés na rua e flutuar sobre a merda toda, contando as moedas para o pão, passou pelo velho do casebre verde musgo da esquina. Ele sempre estava lá, sentado em sua cadeira de praia amarela, com os olhos semimortos em direção ao nada que se tornou sua existência. Mais um relato da vida fraca e frágil perdendo outra vez para o tempo. “Que grande homem é aquele”, pensou. Chutou algumas pedras que se soltaram da linha do calçamento cuidadosamente construída por mãos esquecidas. Dobrou a esquina enquanto alguns pingos solitários começavam a cair apressados. Acendeu um cigarro como se fosse fazer um sinal de fumaça para que mandassem tudo lá de cima, para que tudo viesse abaixo de uma vez. Chegou a praça que sempre existiu atrás do quarteirão, lembrou do tempo de criança, quando o pequeno era realmente pequeno. E lá estava o parquinho, as balanças gastas e enferrujadas vigiando seu túmulo na areia, afundando, todo engolido pela sujeira que os gatos deixavam pelo lugar. Lembrou também do tesouro que um dia enterrara naquele espaço morto e ficou imaginando se ainda poderia estar perdido por ali. Talvez se cavasse o encontraria inteiro e seria transportado para o passado como num passe de mágica, e deixaria tudo o que era cruel e sujo no presente.
Quando a agua toda começou a desabar, o pequeno caçador de relâmpagos ficou a contemplar as luzes dos raios entre as folhas das árvores e o seu mundo paralelo de dez anos atrás. A padaria ficava do outro lado da praça, mais uma rua a ser atravessada, mais um pedaço de terra podre a ser percorrido. O pequeno caçador de relâmpagos esquecera o guarda chuva mais uma vez.

sábado, 28 de maio de 2011

Cacos

Me dizia Silvana
enquanto se entupia de benzedrina
que as coisas eram tristes
e
as mortes
e
o sol
e
as privadas também eram.

Ela quebrou todas as garrafas vazias
quase que na minha cabeça,
praguejando céu e terra,
formando um mar de cacos em meio ao
bege embolorado das paredes.

E do outro lado da sala,
entre seus risinhos assustadores
e afogados,
Aline vomitava
feliz
as coisas tristes.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Parábola

Apavorava-me ter de ir a festas, encontros ou qualquer coisa que envolvesse mais que cinco pessoas. Apavoravam-me os olhos, as vozes, a respiração cambaleante e cansativa de toda aquela gente ao meu redor. Suas conversas idiotas, suas risadas assustadoras e até mesmo seus fios de cabelo me faziam parecer invisível, um monte de estrume em meio a vacas de um só rebanho. Também odiava apresentações e manter longos diálogos era uma coisa extremamente difícil que eu preferia evitar. Sentia-me inferior aos meus amigos. Todos estavam ali rindo, arrumando garotas, dirigindo seus carros. Todos tão seguros de si mesmos acreditando no futuro, felizes. Essa é a parte que explica o álcool, a química. Embebedava-me tentando me igualar a eles, tentando encarnar aquele momento e absorver aquilo. A bebida me dava uma espécie de outra vida, me fazia soltar sorrisos desenfreados em meio ao esterco. Era como se me elevasse além das nuvens, das estrelas. Quando chegava a casa no outro dia, às duas da tarde e me jogava na cama, sujo e com o fígado querendo sair boca a fora, com a mesma pergunta de sempre batucando em minha cabeça “por que diabos levantei manhã passada? Por quê?”
Havia me acostumado à solidão, como um pássaro de cores pálidas trancafiado numa gaiola do tamanho do mundo. A maior parte do tempo isso não era ruim e eu nem queria me ver fora, o problema estava no que sobrava, na pequena parcela torturante das horas que me cercavam lentamente. Eu só precisava não pensar no filme de terror que estou fadado a viver; uma comedia para os olhos dos outros, principalmente para os que se julgam espertos revolucionários enquanto nadam em dinheiro e futilidade com sua inteligência de acéfalo entre os braços. Só precisava não pensar e conseguiria dormir em paz na minha trincheira de pano e costura.
Às vezes ainda insisto em sentar ao lado do telefone na esperança de ouvi-lo tocar, de sentir qualquer voz doce adentrar meus ouvidos como uma canção de ninar para anjos, mas ele nunca toca. E quando finalmente toca é sempre alguém afiando os dentes, a faca, pronto para me matar outra vez. Palhaçada rapaz, palhaçada. E é só isso que eles sabem.
A voz doce está distante, distante como eu estou agora da janela.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Algo mais sobre coisas na montanha

Existe pelo menos uma centena de pessoas vivendo o mesmo pesadelo com seus calçados encardidos e cantando e esperando a morte dentro de seus carros pretos e brancos e amassados passando todos os dias por essa rua suja e fria, entre a tristeza das casas pequenas e grandes que em silêncio disputam terreno e o pouco de sol que pode chegar aos meus olhos, como uma nevoa amarela e quente que derrete as artérias, o fígado, as vísceras todas. Permaneço estático na varanda imaginando o horror e a feiura de tudo isso. Aquela gente, aqueles olhos e mãos, aquela fumaça infinita envolvendo o rosto, apertando o pescoço como um alicate gigante e tudo mais te cutucando com vozes iguais e famintas. Eu sei que tenho algum problema, alguma falha em olhar para o mundo e nada sentir, além de tristeza e vergonha, mas isso já não me importa.
Sua cabeça não é muito diferente dessa coisa insana e desgovernada em que estamos metidos. Acho mesmo que você viaja demais, tanto quanto eu, que costumo dar voltas ao planeta sem mover as pernas, nem gastar a sola dos sapatos. Quando falo sobre a sua cabeça misteriosa como uma caverna, não é por querer procurar alguma coisa, mas sim me esconder no teu breu e necessitar como ar desse canto confuso sim, mas também bonito que me alivia uma porção de dores e pequenas feridas que se espalham juntas aos ponteiros do relógio, lá no fundo do meu crânio.
Talvez eu seja mesmo um otário, como você tanto gosta de repetir nos seus momentos difíceis em que tento quase sempre sem sucesso, respirar fundo e fechar os olhos. Mas naquele dia, quando me perguntou se eu achava boba toda aquela historia antiga sobre termos uma coisa na montanha e eu disse não, porque no fundo era uma historia sincera de algo que eu realmente queria e o seu sorriso tímido se estampou no rosto rabiscando outra pergunta silenciosa “Mas comigo ainda ou sem?” Já era pra você saber, guria: A montanha sem você, não seria a montanha.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

O velho e sujo Paraíso

Aquelas janelas não eram apenas quadrados de vidro transparente abertos na parede azulada e velha do apartamento de Camille. Eram também molduras esbranquiçadas do terror que emanava de toda aquela paisagem funesta e sem fim. Um verdadeiro globo de olhos famintos e sorrisos esquizofrênicos esperava lá fora com os braços abertos, enquanto eu imaginava bichos e outras formas estranhas nas áreas descascadas ou cobertas por argamassa da parede. Todas aquelas falhas e rasgos e feridas naquele manto azul infinito da sala também estavam presentes no frio e agitado coração de Camille que muitas vezes parecia ronronar como um pequeno gato medroso e frágil, procurando se abrigar da chuva que morava na cabeça dos outros. Ela não se considerava forte e achava que estava mais morta do que viva, coisa que nunca contrariei, já que todos nós ali, frequentadores assíduos do apartamento 53 do edifício Paraiso estávamos mesmo mais mortos do que vivos e não tínhamos motivos para querer outra coisa.
- Todos nós somos cadáveres expostos num grande necrotério, sabe? Eles vão te abrir sem que você perceba, varias e varias vezes; vão tirar de dentro tudo o que presta coisa boa por coisa boa, depois te jogam numa vala comum e você fica ali apodrecendo com sua coleção de babaquices sem nexo. Acho até engraçada a maneira em que todo mundo se submete a isso sem nem ao menos perceber a metade da merda. Por isso admiro você e Maria; vocês têm olhos que brilham de verdade. – Disse Camille, enquanto terminava uma ponta de baseado que encontrara num dos bolsos da calça jeans desbotada.
No auge do meu acido, não respondi, continuei a contemplar os diferentes animais que apareciam pela parede. Maria estava trancada no banheiro há uns quinze minutos quando apareceu como um fantasma, pálida e cambaleante pela sala. Tinha olheiras imensas e era muito magra, inclusive Camille tinha o habito de contar suas costelas quando estavam deitadas nuas, lado a lado tentando aquecer aquele leito frio e solitário. Mesmo assim Maria era bela. A cabeleira toda caramelada escorria por seus ombros como uma cortina de bronze. Os olhos verdes e fundos vidrados no nada de sua existência procuravam um ponto menos iluminado para descansar e sempre acabavam encontrando o breu sem fim do olhar castanho de Camille. “Olhos de urso. Você tem grandes e ardentes olhos de urso.” Costumava dizer Maria.
Não precisava muito para perceber que elas se amavam acima das nuvens, das estrelas e eram quase que uma só vida, um pedaço do mundo que ainda vivia. Eu tentava fazer daquilo meu mundo também, uma espécie de refugio onde eu podia me esconder de todos os fantasmas e monstros que assombravam cada pedra de calçada, cada gota do planeta. Meu único desejo era ser sozinho com Camille e Maria.
Sempre que eu me pegava de cara pra rua, fora daquele apartamento, com um cigarro preso entre os lábios e aquele céu horrível e mentiroso cobrindo minha cabeça, lembrava-me de como tudo isso aqui fora é nada. Sumir no mundo, pra mim era pouco, eu queria sumir no velho e sujo Paraíso, com Camille, com Maria, com os animais da parede azul do apartamento 53.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Tínhamos acabado de nos mudar para um novo, velho e capenga apartamento. As janelas cinzentas e enferrujadas estavam todas abertas para deixar o cheiro infinito de mofo à vontade em se retirar do aposento. O verão entrava por elas queimando tudo; os poucos moveis que tínhamos, minha cabeça doente e cheia de vontade de explodir, o sofá azul encardido, coberto de marcas de cigarro que tentava de alguma forma quase amigável confortar minhas costas, a cama desarrumada no quarto. Tudo. Eu estava jogado ali, descalço com o pé direito todo fodido e enfaixado, apenas de cueca com minha garrafa de cerveja quente na mão e essas mudanças todas já nem me surpreendiam mais e nem minhas desavenças com minha própria vida de vagabundo e bêbado e maníaco depressivo sem animo até para peidar. Ficava triste não por mim e minha espera lenta e cansativa pelo abraço acolhedor e escuro da morte, mas por Isabela ter que aguentar tudo isso; sentia por ela que estava sozinha. Eu era apenas um saco de ossos e alguma coisa de carne andando por aí e tentando arrumar alguma grana, na maioria das vezes sem sucesso, para o final do mês. Sempre perguntava a ela o porquê de estar aqui:
- Isa, meu amor. Por que não junta suas coisas e vai embora de uma vez? O mundo tá te esperando.
Todas às vezes ela mordia o lábio inferior, vermelho por natureza, colocava as mãos na cintura e me respondia sutilmente, com aquele carinho verdadeiro que muitos imbecis por aí acham que conhecem, mas na verdade não passa do esquema das trocas e interesses.
- Você é um grande filho da puta. O maior filho da puta que eu jamais conheci.
A conversa terminava nesse ponto e eu abria outra cerveja. Mais tarde íamos para a cama.
Essa nova mudança ocorreu graças a mim e minha briga com o sindico da outra espelunca em que morávamos. Ele fez pouco caso do vazamento do apartamento de cima, que estava mofando toda a minha cozinha e então certo dia em que estava fora de mim, lhe quebrei dois dentes. Passei uma noite na cadeia vendo um viciado em crack se roer inteiro sobre o estrado estropeado da caminha da direita.
Não tinha nada pior que esse novo lugar, pelo menos para Isabela, que reclamava dia e noite do cheiro e das formigas que corriam por toda parte. Mesmo assim ela insistia em tentar me transformar num ser humano, falava toda hora em “resgatar a cor dos meus olhos.” Cor que nunca tive.
Ontem mesmo me obrigou a aprender a fazer um bolo de cenoura e involuntariamente a pintar meu fracasso na testa mais uma vez.
- Querida, prefiro morrer do que fazer bolo de cenoura. - Disse lamentando o esforço.
- Você prefere morrer à tudo. Venha cá.
Movimentei minha bunda lentamente até a cozinha. O sorriso que me aguardava ali, entre aqueles azulejos brancos e manchados do tempo de certa forma me alegravam. Nunca neguei meu amor incondicional por ela e devia ser por isso que a queria longe de mim. Eu sabia que livre, ela seria feliz. Aquilo que ela tinha ali comigo não poderia ser considerado nem uma parcela da cagada da felicidade.
Isabela me fez quebrar os ovos dentro do liquidificador, bater tudo com a cenoura e óleo. Suas mãos gesticulando me encantavam; toda aquela leveza mística de profundidade desmedida remexendo no ar me faziam esboçar um pequeno sorriso. Depois veio a batedeira com o resto das tralhas para formar a massa toda.
O bolo assava, e Isabela saiu para uma entrevista de trabalho. Estava contente e me disse para não me perder do relógio.
Nosso fogão era uma coisa velha e pré-histórica, preto com manchas de uso. Fiquei feito louco acompanhando o relógio na espera dos quarenta minutos em que o bolo deveria assar. Passado o tempo, corri para a cozinha. A maldita porta do forno tinha enroscado, emperrado de tal forma que simplesmente não abria mais, nem rangia feito um apito defeituoso como de costume. Tive um acesso de raiva e arrebentei aos chutes a porta, que assim abriu. Aproveitei para quebrar dois dedos do pé direito também. O bolo estava murcho, parecia um maracujá esquecido no tempo. Respirei três vezes, fundo; me dirigi mancando até a geladeira. Era o momento de abrir uma cerveja. Sentei no sofá com o pé do tamanho de uma melancia, “que se foda esse pé!” Pensei alto. Eu não sei o que eu queria de mim ou da vida ou de Isabela, mas um cara que não consegue fazer nem ao menos um bolo para agradar sua garota e ainda termina por quebrar a porta do forno junto com os dedos não deve mesmo querer muita coisa.

quarta-feira, 23 de março de 2011

#Martín

Ainda tenho aquela pequena cicatriz nas costelas do lado esquerdo, que me foi presenteada num dia cinzento e húmido. Devia ter meus queridos sete anos e estava ensopado brincando no barro do quintal. Dentro de casa tinha um sofá antigo, meio bege e com braços feitos de madeira um tanto pontiagudos. Ficava estrategicamente colocado entre a sala de entrada e a cozinha. O piso ali sempre foi daqueles bem lisos, tinha uma cor meio salmão. Nesse mesmo dia passei correndo, escorreguei e quase me matei numa das pontas de madeira do sofá. Foi a última vez que chorei por danos corporais. A marca, agora quase invisível ficou comigo; quando a vejo no espelho as lembranças não tardam em piscar dentro da minha cabeça como luzes de neon distorcidas e fracas. Deve ser por tantas memorias assim que prefiro crianças a adultos, e elas de alguma forma sempre me olham com sinceridade, uma curiosidade pura e diferente. Enquanto os olhos grandes e repulsivos de um ser crescido em minha direção me fazem querer vomitar toda vez que dou de cara com a rua.
A coisa toda começou a afundar quando cheguei aos dezesseis. Certa vez me disseram: “Ou você começa a pensar numa faculdade pra ter um diploma bonitinho e então trabalha ou você morre de fome.” Nessa época a adolescência já estava escarrada em minha face há tempos, sem nem ao menos eu ter me dado conta de que o período dos bonecos de ação já estava afogado num mar de bosta há pelo menos uns três anos. Oceano profundo esse, que não afogou apenas os brinquedos, mas também a mim. Considerando o inferno lá fora, morrer de fome pode ser uma alternativa até satisfatória.
A coisa parece que levou meus amigos também. Ficaram insuportáveis junto com suas historias crescidas. É engraçado, perto deles sempre me sinto cobrado, pisado, massacrado. Eles vão estar lá oferecendo carona e trocando experiências e mulheres, enquanto eu só quero que todos calem a boca, enquanto morro em silêncio por não ter nada pra falar ou pra contar. O álcool acaba se tornando mais companheiro que qualquer pessoa, ele não te cobra nada e vai ouvir todas as suas historias tristes e ruins e felizes e infinitas. sem dizer coisas estúpidas. Todos tem a mania de não entender o que quero dizer. Mas quando bebo e caio e me arrebento e não lembro onde enfiei a chave de casa, é porque o simples fato de não lembrar faz com que o mundo deixe de ser, por um tempo, essa câmara de gás.
Andei pelo quintal, procurando dentro das flores, nos ninhos das pombas os restos dos tantos mundos que criei quando pequeno. Qualquer gota azul que escorresse do passado para o presente seria um espinho a menos na sola dos meus pés, mas todas elas secaram, morreram e a vontade que eu tenho é de construir uma muralha e ficar escondido ali com um fuzil.
Costumamos perder muito tempo, e só percebemos isso quando é tarde de mais, quando qualquer coisa que fizermos acaba por ser perda de tempo. Até eu, em três mágicos anos de ladainhas e ideias estúpidas de amigos me tornei uma real perda de tempo em potencial para mim mesmo. Isso foi triste no começo, e hoje não passa de mais um pássaro voando nesse céu imenso da falta de prazer, da falta de beleza disso tudo.
A ideia da vida linda é tão perturbadora e ilusória e corrosiva na cabeça do homem, que todos vão achar estranho o fato de você tendo ou não oportunidades, não querer um emprego, nem carro ou dinheiro ou formar uma família de patifes. Ninguém vai entender o teu desejo maravilhoso de ter uma solidão de verdade. Uma vala comum com seu corpo lá dentro, coberto de terra e capim, o quanto antes. E você com isso? Não da à mínima, ainda existe sua cama mesmo que essa seja um bloco de concreto sujo. Seu casulo.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Sobre a casa dos sonhos e suas saídas de emergência

Eram tão tristes aqueles olhos castanhos, que mais pareciam duas bolas de barro escorrendo como acido pelas linhas pálidas que moldavam suas bochechas. O nariz nem pequeno nem grande, bastante fino respirando todo aquele amontoado de verdades tão mentirosas quanto historias de mundos encantados e bonitos, falava mais que a boca dona daquele sorriso que pouco vi, e dos lábios que algumas vezes pairavam no rosto como névoa, neblina de manhã fria e chuvosa de cidade suja, esmagada por um tempo negro e mortal. E eu me sentia ridículo no meio de tudo aquilo, dentro daquele coração tão grande e confortável.
Lilian era assim, uma cova em formato de gente. Gostava de desenhar com laminas, na própria pele figuras abstratas de significados invisíveis para os outros. Dizia ela que não havia forma mais gratificante de se sentir viva. O sangue se esvaindo por cada ferimento aberto formava um laço entre o mundo que ela sustentava nalgum lugar daquela cabecinha coberta por uma mata encaracolada de cabelos loiros e meio desbotados e essa coisa estúpida que chamamos de nosso planeta.
Os bracinhos magrelos e as mãos pequeninas que vez ou outra me aqueciam o sangue do corpo todo onde até mesmo o sol era formado por gelo sempre pareciam agitados e trêmulos; enquanto no passar dos dias e das noites as luzes apagavam e acendiam, numa rotina esquizofrênica e enlouquecedora, como sua respiração. Isso me fazia lembrar sempre das palavras alcoólicas proferidas por ela no nosso primeiro contato: "Sabe, a vida da gente sempre vai ser esse apagar e acender de luzes, até que uma a uma, elas vão queimando e não percebemos mais a esperança, nem as cores dos prédios e das casas e do céu, porque nossos olhinhos famintos já se acostumaram com toda a massa redonda de escuridão e estão prestes a morrer sozinhos, da fome do amanhã.” Eu soube a partir desse momento que cedo ou tarde essa fome acabaria matando a mim também.
Eu era seu único amigo e Lilian sempre se mostrou muito satisfeita com isso. Às vezes cometia pequenos furtos em supermercados, junto dela. Esse era um hobbie peculiar que a divertia bastante. Roubava ração para o gato, bebidas, bolachas e balas. Também tomava muitos remédios, lembro-me de certa vez em que dormi em sua casa. Na sua bancada havia uma gaveta só para os comprimidos.
A mãe dela sempre me recebia com um sorriso. Um dia me chamou em particular e contou o tanto que gostava de mim e do carinho e da amizade que eu tinha com Lilian e também disse que a alegrava o fato de apesar dos problemas evidentes, eu sempre ser uma pessoa presente. Derramou algumas lágrimas após a conversa.
Eu tinha dezessete anos quando a vi pela última vez. Era madrugada e algumas pedrinhas voavam contra janela do meu quarto. Lilian estava lá fora, desci correndo as escadas. Ela me aguardava com uma caixa de papelão na mão.
- Olha, trouxe aqui o Tobias – Disse com a voz rouca, os olhos ainda humedecidos me deixavam sem entender a situação.
- Mas é seu Gato. Por um acaso vai viajar e quer que eu cuide dele?
- Não é bem uma viagem – Tentou sorrir.
- Como assim?
- Meu pai disse que vão me levar pra casa, pra casa dos sonhos e lá não posso ter animais.
- Que espécie de casa é essa? – Perguntei com os olhos arregalados, ainda meio sonolento.
- O pai disse que é uma casa pra pessoas assim, iguais a mim. Mas eu sei que até mesmo na casa dos sonhos, as saídas de emergência estão trancadas. – Colocou a caixa com o gato junto aos meus pés.
- Mas por que você tem que ir?
- Porque arranquei a cabeça de todos os meus bichos de pelúcia. Eu juro que me atacaram durante a noite. Vocês não acreditam, ninguém acredita.
Lilian virou-se. Começou a caminhar em direção a sua casa, do outro lado da rua.
- Espera! – Gritei – Eu acredito!
Foi a ultima vez em que vi o sorriso de Lilian brilhar igual a lua.
No dia seguinte, resolvi conversar com minha mãe sobre o acontecido:
- Ai filho, você sempre soube que essa menina era anormal, você sabia que ela tinha problemas.
- É, normais são vocês e seus carros e suas fábricas e contas bancarias, todos metidos numa rotina cega... Respondi em tom de reprovação.
Uma semana depois, os pais dela se mudaram. Minha mãe disse que foram para uma cidade mais perto do hospital. Nunca mais tive notícias.
Hoje, beirando os meus vinte e oito anos e ainda carregando saudade nos olhos, sei que todos nós estamos dentro da casa dos sonhos. Pouco a pouco ela se consome em chamas por dentro e por fora. E também sei que vamos queimar, porque como disse Lilian naquele ano, “as saídas de emergência estão todas trancadas.”

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Beija-flores também acabam por te engolir

Ontem parei aqui na janela do prédio e a iluminação alva dos postes parecia cobrir a rua com um véu de seda, como se ela fosse casar, talvez com o dia que não tardaria.
Aquelas luzes tão pulsantes quanto os ferimentos internos da minha carne refletiam lá fora minha palidez e meu cabelo negro, como um borrão em papel bem claro ao mesmo tempo em que atordoavam minha vista. Cada uma delas lembrava-me beija-flores, mas sem aquele bater de asas veloz e quase imperceptível que me deixava maravilhado quando criança. Eu ficava ali no quintal com a minha vó, tomando um pouco de sol e brincando com os meus sonhos que há tempos já morreram, enquanto esses pássaros tão magros quanto meus dedos bebericavam com seus bicos compridos e finos a agua com mel que ela pendurava no pé de acerola, num daqueles recipientes rodeados por flores de plástico. Nessa época eu ainda gostava do dia e inventava milhões de motivos para acordar bem cedo e abrir minha janela.
O sol tinha lá sua beleza excêntrica no lugar dessa coisa comum e ardida dos dias atuais e eu queria mais dela. Procurava por ela e sempre a encontrava; ou num doce, num inseto diferente ou em alguma das muitas jornadas pelos terrenos baldios e sujos e completamente tomados por mato em cima de mato da rua em que eu morava. Também gostava de conhecer gente e de falar. Os amigos daquela época? Não sei onde foram parar, mas desconfio que estejam juntos com os sonhos, a sete palmos de estrelas moldadas em merda e barro. Tentei cavar algumas vezes, tentei até minha pá imaginaria se perder no turbilhão de fantasmas que carrego comigo; tentei com as mãos também, até que as unhas descolaram, quebraram e meu veneno escorreu pela palma, no pulso, no braço.
Não lembro quando e como todas as coisas se perderam, mas elas não se foram todas de uma vez, isso é fato. Foram caindo uma a uma, das mais bonitas até as mais feias. Meu corpo deve ter um encanamento furado, pra deixar vazar tudo o que entra nele. Tudo sai, não só por bosta e mijo, mas também pela respiração. Cada partícula que circula nos meus pulmões, a hora que encontra o céu novamente, leva alguma coisa com a ajuda desse vento negro que balança as flores dos canteiros das madames do edifício aqui da frente.
Uma vez você tenta amizade, depois amor; tenta sorrisos e abraços e conversas e conversas e conversas. Mistura todos esses intentos pra ver se forma alguma coisa bonita, pra ver se deixa a si próprio bonito. Eis que você sente a ferida ficar maior em vez de diminuir e cobre os olhos pra não ter que ver a hemorragia e a carne toda cuspir na sua cara.
Tudo isso cansa, as pessoas cansam e você mesmo acaba cansando as pessoas e tudo isso e essa porra toda termina por te engolir. Mas sabe, é tanta vida morrendo dentro da gente. Tanta sujeira sendo escarrada das bocas que mais gostamos, que fica mesmo difícil sentir alguma coisa que não seja cansaço.