segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Por quanto tempo Rafael?

Rafael encontrava-se parado em frente à porta clara e larga, moldada em carvalho como sempre costumava fazer antes de arrastar os pés no tapete verde musgo e entrar em casa com seu sorriso introvertido e cansado. A guirlanda de natal, pregada naquela peça de madeira parecia-lhe uma arma prestes a disparar contra a cabeça. Seria tão rápida, que rajadas catastróficas de projeteis dourados poderiam esmigalhar sua face antes mesmo do corpo sem vida ir de encontro ao chão, num baque quase meteórico. Levava na mão direita a maleta de couro marrom, gasta pela idade. Couro envelhecido como se fosse uma pessoa viva, um pequeno bebê já vitimado pelo tempo. Retirou vagarosamente a outra mão do bolso do paletó acinzentado e poeirento e acariciou os cabelos que lhe cobriam toda a cabeça. Eram fios tímidos e escuros, retraídos em pequenas ondas que não chegavam a formar cachos. Ele olhava aquela morada cor de lua com olhos anêmicos, atípicos de um empresário bem sucedido. E as coisas pioravam quando se via obrigado a embicar o carro na garagem a cada final de tarde amarelado como o sol que o abandonava pouco a pouco. Rafael sonhara tanto outrora, que agora queria deixar tudo para trás, queria virar um tatu e cavar um buraco onde só coubesse ele.
A responsabilidade que corria em suas veias finas e também chatas para as enfermeiras que tentavam lhe retirar o sangue quando precisava de algum exame era agora uma tormenta, uma prisão rotineira e maçante. Procurou mulher e filhos e trabalho e amigos e gente podre sem nem se dar conta do horror em que acabaria submetendo-se.
Lá dentro, Cecília e as crianças esperavam com a mesa do jantar posta. Sua mulher era quase sua mãe, talvez um fator que contribuiu gradativamente durante os vinte anos de casado para que cansasse. Quando buscou uma mulher, não queria uma segunda mãe; já bastava apenas uma para trata-lo como um animal fedido e extinto a ponto de coloca-lo numa gaiolinha apertada e mortal de tão segura.
Agora, casado com sua segunda mãe tinha a impressão perturbadora de que apenas mudara de gaiola. E se uma dessas jaulas pequeninas já era apertada com só ele dentro, agora sufocava como uma verdadeira sauna vulcânica.
Por vezes percebia-se parado completamente nu na frente do espelho, perguntando para o próprio reflexo se seria algum tipo de retardado, autista ou até mesmo psicopata enquanto as gotas quentes do banho ainda lhe escorriam pelo corpo. Considerava bastante possível.
Cecília tinha olhos enormes e caramelados, que de tão belos acabaram virando precipícios de fundura inestimável. Era cair ali uma vez, para nunca mais voltar. A boca carnuda e avermelhada e o nariz fino e sardento, às vezes ressecado acompanhavam todo aquele abismo de caramelo. Madeixas em chamas, de um vermelho ferrugem liso e comprido ajudavam a moldar seu corpo magro e de altura mediana. Qualquer homem cobiçaria estar entre aquelas pernas.
Era engraçada a forma em que os dias passavam para Rafael. Ele perdia o interesse assim como o relógio da cozinha perdia as pilhas. Não queria mais saber dos filhos, nem da mulher, nem dá própria vida. Quando jovem, bebia demais. E hoje em dia considerava ter deixado de beber o pior atentado terrorista que podia ter feito contra si próprio. Quando estava bêbado, não conseguia nada, não ganhava nada. Mas já tinha tudo o que precisava.
Sua mão pálida tocava a maçaneta cor de bronze e levemente descascada da porta. O barulho dela girando percorreu todo o interior quente da casa, enquanto os pezinhos das crianças vinham correndo, batucando no assoalho. Recebera abraços apertados e confortadores. Pôde sentir o cheiro de maçã que tinha sua filha menor, Ana.
Arthur, não muito mais velho que a irmã ainda estava com os cabelos molhados do banho e sorria como nenhum outro ser humano jamais sorriu. Rafael não sabia mais retribuir abraços, seus braços e suas mãos e dedos eram todos impotentes. Tímido e um pouco triste, agarrou os filhos, com um abraço genérico, cru. Um abraço de defunto. Ainda sentia o coração bombear e o cérebro processar dados ignorantes ao longo do dia, mas estava morto. Essa forma que morreu Rafael, era a pior de todas. A dor constante pesando nos olhos e caindo pela boca ,aparecendo até nos sonhos mais simples e bonitos acabava com todas as cores.
A mulher esperava ao fundo, com os braços esticados em forma de escudo protetor. Era terrível para ele tudo aquilo. Sentia medo quando devia sentir segurança. Sentia tristeza quando a alegria deveria dominar cada curva e canto do seu corpo magrelo e fraco.
Deu um beijo frio em Cecília, tentou um sorriso quase apagado.
- Não vou jantar hoje... – disse
- Mas faz quatro noites que você não janta – Respondeu a mulher com um tom de desespero misturado com a ternura das suas mãos macias e a doçura da voz.
- Alimente as crianças, eu preciso deitar.
Ele não fazia por mal, não gostava de agir daquela forma e não queria magoar os filhos e a mulher, mas seu impulso lhe cobria a razão com neve. Não aguentava mais os segundos espetando o corpo todo, como flechas de zarabatana.
Rafael apenas jogou a maleta num canto e subiu para o quarto. Ia dormia rápido, carregando toda a tristeza e culpa e ódio de si mesmo que acumulou durante seus quarente e sete anos. Anos que passou brincando de estar vivo.
No fundo, ele tinha uma vontade de gritar para a mulher e para os filhos que amava todos eles, de um tanto que não cabia mais no seu peito pequeno e poluído. Tinha vontade de levar o garoto pra jogar bola. Tinha vontade de transar com a mulher como nos velhos tempos . Tinha vontade de passar a mão nos lisos cabelos da filha e não conseguia. Suas emoções todas faliram e as migalhas que restaram, estavam todas envenenadas. Mas a vontade de vomitar tudo isso por horas, realmente não lhe faltava.
A dúvida crescente de cada dia voltaria pelo amanhecer. Por mais quanto tempo poderia ele suportar carregar o seu próprio peso podre e triste se até as árvores que chacoalhavam com a brisa noturna e as risadas mais sinceras pareciam horríveis e assustadoras, insuportáveis ao ponto de implantar nos glóbulos oculares uma cegueira assassina?

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Dona morte está atrasada

Esse tipo escroto entrou no meu quarto espantando com as mãos a névoa de fumaça fedida do cigarro. Eu estava jogado ali na cama há quatro dias, sem banho e bêbado como um porco. As garrafas faziam fila por todo o quarto, acompanhadas pelas bitucas amassadas. A janela sem abrir durante todo esse tempo parecia tão enferrujada quanto o sol ridículo e o filme de terror que passa lá fora. Sempre fui um cara estranho e durante muito tempo me incomodei com isso, com os olhares de nojo das meninas que vinham direto ao encontro dos meus olhos cansados no tempo da escola e a ignorância dos muitos coitados em relação a mim e minha falta gigantesca de interesse em qualquer coisa que me fizesse abrir os olhos. Agora não mais; queria apenas estar bêbado e deitado.
Tenho pavor de rua e de gente. A fala desmedida das pessoas me irrita de tal forma, que mandei meu chefe tomar no cu e obviamente fui demitido. Juntei minhas coisas e no caminho pra casa joguei tudo fora, num daqueles lixos de coleta seletiva, papel por papel. Quando você espera a morte com um buque de flores na mão, não precisa de nenhum tipo de trabalho, nem de dinheiro e muito menos de pessoas podres te cercando e te comendo o cérebro com ideias inúteis e mentirosas. A falência do corpo e da alma é simpática ao contrario dos monstros que aparecem por toda beirada de mundo que você tenta andar, ela vem sorrindo pro seu rosto feio praticamente como um brinde da vida chata que te cerca.
No meu radinho rouco, ouvia Mozart. Na verdade eu nem sabia mais o que ouvia e nem queria saber. O cara o desligou, como se fosse dele, fato que me incomodou, mas eu estava ocupado demais com meu bafo de álcool e meu olhar direcionado para o teto amarelado de nicótina, para reclamar de alguma coisa. O filho da puta ficou parado ao lado da cama e não se moveu enquanto não sentei xingando e falando qualquer tipo de merda que a bebida me permitia falar. É triste rapaz, é triste pros outros, mas pra mim é o paraíso e não quero nenhum idiota interrompendo minha espera. Dona morte está atrasada e só eu entendo isso.
Me olhava com pena, o olhar tristonho até me comoveu de certa forma. Por um tempo me fez refletir o que estou fazendo com minha própria vida, mas logo pensei na porra que ela é e do tanto que é inútil a minha televisão e meu telefone e minha casa tosca. Tem muita gente por aí morrendo por menos e nada mais tem valor, coisa fictícia essa, porque nunca existiu mesmo. Você liga aquele aparelho e enquanto as imagens surgem naquela tela colorida e mentirosa, seu encéfalo oculto e cada vez mais poluído sente vontade de vomitar. Quem tá lá fora não percebe todo esse horror, toda essa coisa triste que as pessoas carregam nas costas, sorrindo. Odeio também quando minha mãe acha que aos poucos estou me matando, e me manda pra rapazes idiotas, formados em merda nenhuma que só sabem receitar fluoxetina. Claro que não é mentira. O problema é que nunca pedi pra nascer e se pudesse ter escolhido, seria hoje um espermatozoide seco e morto. Não culpo meus pais, mas eles tiveram azar, talvez se tivessem um filho com a cabeça podre e inexistente transbordando merda pelos ouvidos, seriam mais felizes.
Voltando ao meu tempo de escola, a diretora culpava meu jeito revoltado e meu cuspe parado na cara de todos os professores pelo fato de meus pais serem separados. Agora imagine que tipo de pedagogia impunham naquele lixo de instituição educacional. Escolinha particular, coisa fina da cidade, eu cai lá dentro direto da várzea e o pessoal metido a riquinho que fazia palhaçada naquilo graças ao cu das mães deles me ignorava e impunha regras para minha estadia naquele necrotério escolar. Meu melhor trabalho nesse hospício foi ter desenhado uma merda bem grande no brasão da escola com moscas a voar em volta. Coisas particulares, bem como faculdades e todo o resto de calunias que você precisa pagar os outros pra fingirem que te ensinam algo é a piada do século XXI.
Agora, esse cara que tá aqui, me arrastando pra reabilitação, porque meu pai acha que assim tem que ser e que estou louco e drogado e alcoólatra, nunca vai entender. É o exemplo certo de coitado iludido. Dona morte está atrasada, ou não recebeu minha carta desesperada, ou até ela me acha estranho demais pra poder ficar em paz e sozinho num lugar bonito, se é que isso realmente existe.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Quarto branco

Enquanto aquelas mãos quebradiças dobravam o papel com um sorriso quase apagado na face, o filme inteiro rebobinou e passou novamente por todo o meu encéfalo e nas paredes brancas daquele pequeno quarto. As imagens ocuparam tudo e eu tentava manter a expressão leve e alegre perto dela. Lembrei-me de como balançava em suas costas aquele longo cabelo negro feito as cinzas de cana que empesteiam o quintal na época da queimada e também de como ela corava quando eu a acordava com milhões de beijos e o café pronto. Lembrei-me de todas as noites, os banhos e porres de vinho que havíamos tomado até ali. Os abraços. As chantagens e as brigas estúpidas que não foram poucas. O cheiro de baunilha que tinha aquela pele branca e cheia de pintinhas, antes de começar a cheirar puro remédio. Lembrei-me de cada parte do seu corpo e do tanto que as amei e ainda amaria e dos passeios e viagens que fizemos a sós no nosso trailer velho e também do calor da barraca verde. Ela desviou o olhar em minha direção, dando um pause momentâneo na película:
- Sabe, as coisas vão ficar bem, não vão? – Perguntou com a voz fraca e rouca – Esse quarto devia ter mais cores.
- Vão sim, vão sim...
- Promete?
- Eu prometo. E elas todas serão tão bonitas quanto você!
Ela sorria. Eu queria chorar, mas engoli as lágrimas ao invés de expeli-las pelos olhos. Teria muito tempo para derrama-las quando saísse dali procurando chão pra pisar, tentando escapar da lama, abrindo a porta de casa e encontrando todas as suas coisas espalhadas pela morada e seu cheiro ainda cobrindo a cama. O casaco atrás da porta e a escova de dente e a gaveta de calcinhas e a saudade também estariam lá.
Aquele quarto branco nem parecia tão branco assim quando ela pousou o origami um pouco torto na palma da minha mão. Seus dedos frios correram pelo meu braço. Estava na hora e eu sabia; com a mão direita alisei seu rosto, sua testa, até o final da careca pálida. Ela não tinha mais forças para usar palavras e ainda assim, uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Aqueles olhos caramelados me fitaram pela ultima vez, esboçou um sorrisinho miúdo. Dei-lhe o último beijo e a boca descolorida e ressecada parou de tremer. A mão que segurava meu braço caiu dependurada ao lado da cama. E eu ainda me lembro do dia em que jurei que estaria com ela até o fim sem esperar que ele fosse chegar tão rápido. Veloz assim, como um raio que atingiu em cheio a cabeça, a nossa cabeça.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Esperança tem uma fada

A chuva ricocheteava entre os predinhos antigos e decorados com azulejos e também se perdia nos vãos dos paralelepípedos da rua. No meio da viela caminhava a moça, com o guarda chuva duelando com as gotas que escorriam por todo o corpo preto e velho do objeto. No olhar grande e profundo, podíamos ver alguns vestígios de dor que se penduravam em seus cílios compridos. A aparência cansada da menina não se limitava apenas em suas olheiras, mas podia ser percebida também na forma de caminhar, no passar quase flutuante pelas varias poças de agua que estavam formadas no calçamento. Seus lábios pareciam seda, eram levemente rosados e ficavam mais vermelhos quando sentia calor ou bebia vinho demais. Cabelo na altura do ombro, em tom meio caramelado que caia em cachos leves e brilhantes até o começo das costas, tampando assim a tatuagem da fada mórbida de asas escuras que levava nos braços um pequeno caixão decorado com fitas vermelhas e sujas. “A fada é a personificação do coração de toda essa gente e o caixão é a morada das almas.” Era o que costumava dizer quando perguntavam sobre o desenho.
Dobrou uma esquina que dava para uma rua sem saída, imunda e escura. Parou diante de uma portinha velha e apertada, buscou as chaves em sua bolsa de feixes gastos. Abriu. Deslizou pelos degraus da escada, na poeira, no escuro, na humidade infinita que escorria pelas paredes do velho edifício. Terceiro andar, oito era o numero meio apagado que a porta do aposento barato mostrava. Um cômodo só. Um banheiro fedido e apertado. A cama jogada de um lado, desarrumada. No guarda roupa uma porta faltava. Sentou-se em sua mesinha de lata no outro canto e o cansaço da semana pôde desabar todo sobre o ferro já meio enferrujado. Ela debruçou sobre os braços, a coisa estúpida e molhada e salgada começava a espirrar dos olhos como em todas as outras madrugadas. A rotina era essa, trabalho sujo nas noites quentes ou frias, lágrimas caindo como canivetes dos olhos entreabertos.
Seu nome era Esperança. Talvez fosse uma ironia do destino, uma brincadeira de mal gosto dos pais que muito cedo sumiram com todos os abraços. Ela adormecera ali mesmo, com os braços gelados. O cabelo descobriu a tatuagem e a fada saiu dos poros como fumaça e voou à toda velocidade com o caixão firme em seu colo, ela queria achar uma ilha e transformar aquele pequeno objeto tão morto numa simples explosão de paz. Esperança queria mais das pessoas, esperava algo que sua raça nunca teria. Queria uma cor nova pra essa filha da puta que até mesmo aqueles que realmente não têm, costumam chamar de vida.