terça-feira, 12 de julho de 2011

Jack

Quando caminho como se estivesse adormecido em morfina, pelas ruas pueris e enferrujadas, na humidade da madrugada a pouco amanhecida, acompanhado apenas pela minha garrafa de vodca barata e pelo orvalho fresco das folhas que me rodeiam e acabo por descobrir que ela, aquilo que me segue passo a passo pelas curvas do infinito breu noturno e frio está logo atrás com os olhos de sangue seco, fixos e tristonhos de sempre, percebo então o quão perdido e sem saída estou. Percebo também a terra que calça meus pés gelados desabar num funeral de passos apresados e barulhentos. Vários deles, que desesperados procuram um abrigo ou qualquer merda que aqueça e faça esquecer. Qualquer coisa menos doída que um final solitário e distante como sempre planejei entre toda a sujeira cotidiana e desumana do mundo.
*
Naquela noite, o percurso todo soava a clichê. Um mar de clichês descabidos e aterrorizantes. Eu tentava de todas as formas desviar o curso, mudar de um pensamento para outro ainda pior como se trocasse de roupa. Como se o mundo fosse um grande navio prestes a se chocar contra um iceberg com os marinheiros todos desesperados sobre a proa, a esbravejar uns com os outros, enquanto o capitão se embebedava no porão. Nunca me tive como marinheiro. Não sei se esse navio é grande demais pra mim ou se todos os tripulantes são tão estúpidos que chego a preferir a morte varias vezes ao invés de sair da minha cabine particular e seguir mandamentos ridículos e sociais com o propósito de conquistar qualquer tipo de status tosco e material; tamanho é o tormento que sempre termino por pensar em mergulhar para o fundo do mar e fingir que não sei nadar.
As pedras do calçamento pareciam desmanchar em meio à escuridão como blocos de cinzas. Eu estava mais uma vez bêbado, tentava correr para o outro lado da rua, mas logo pensava melhor e desistia devido aos constantes faroletes que me atravessavam a vista e as malditas buzinas que me remexiam as entranhas. Parava para vomitar algumas vezes em postes ou árvores e até mesmo nos velhos portões que vestiam a calçada. Gargalhava sozinho enquanto recuperava a postura inicial, mas a merda sempre estava ali comigo. Solidão, era isso que me roía o crânio feito uma capivara gulosa. Pensava muito em solidão. Que palavra mais cretina era essa. Qualquer pessoa pode se sentir sozinha. É uma condição humana, algo que a gente nem sente aparecer e quando vamos ver, já é tarde demais. Mas comigo sempre foi diferente. Minha última garota costumava dizer que eu afastava as pessoas, todas elas. Eu já seguia outra linha de raciocínio, as pessoas é que me afastavam, eram cansativas e sujas. Quantas vezes preferi ouvir o canto dos pássaros no lugar de um alguém falando sem parar na minha orelha. Tinha também o pormenor de ser diferente, gostar diferente, dormir diferente. Se nos tornamos um tijolo que não se encaixa nesse muro, logo somos descartados, não servimos nem prestamos. Não somos interessantes e sendo assim, sempre existe alguma mão pra te partir no meio. A solidão gosta de fazer isso quando é mal interpretada. Mas essas pessoas todas te cercando todos os dias são infinitamente piores e cruéis, não é uma realidade difícil de perceber.
Já chegando a casa, enquanto cruzava o movimento madrugador da 29 de Agosto, passei pela praça da matriz e resolvi circular uns instantes por ali. Subi a pequena escadaria cinza da igreja e parei na porta, falando sozinho feito louco. Encontrei um homem deitado ao pé da grande porta de madeira. Era um desses tipos vagabundos que todo mundo cospe e pisa em cima quando vê. Cheirava a esterco e tinha um único cobertor que talvez já tivesse sido cheiroso e claro como algodão, confortando algum bebê gordo e risonho do condomínio de luxo atrás do bosque. Olhava-me com uma espécie de medo, um medo que eu compartilhava e compreendia. Resolvi chamar-lhe Jack. Sentei-me ao seu lado e lhe ofereci um pouco da garrafa.
- Eu não bebo. – Descarregou com uma voz fraca e cansada.
- Oh, oh...
- Mas se tiver um cigarro, aceito.
Eu tinha meio maço no bolso da jaqueta. Ficamos a fumar enquanto Jack rompia o silencio da sua vida semimorta:
- Faz dois anos que durmo aqui e Deus nunca me abriu a porta da casa. O padre da paroquia me faz cara de nojo toda manhã quando vem abrir a igreja. Pelo menos ele lava minha cama todos os dias, sabe como é...
- O padre é só mais um. – respondi disparando a bituca do cigarro escada a baixo.
- Mais um?
- Mais um perdido.
Jack riu como há tempos não ria, ele era um cara legal e sabia das coisas. Isso era solidão.