terça-feira, 30 de agosto de 2011

Sorriso azul

E ela dizia "ah pelo menos você está vivo" enquanto cruzava os braços, parada sobre a soleira da porta, terminando o cigarro. Depois agitava os cabelos caramelados enquanto me entregava um sorriso daqueles bem azuis. Aquilo vinha sobre mim com a força de um avião cargueiro do exercito colidindo com uma montanha seca e cinza. "Tem muita gente na pior, vendendo até as unhas dos pés e perdendo um dente a cada dia" completava, sempre acompanhada pelo sorriso azul. E quando eu acordava feliz e de pau duro, sem espumar pela boca e pelos olhos, procurando pela garrafa antes do nosso jogo matinal, ela revirava na cama, enrolada no lençol verde claro, manchado com molho de tomate. "Você precisa parar de beber." E então lá estava outra vez o sorriso azul, sempre dizendo que havia algo de muito errado comigo.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Janela

Existe uma janela
iluminando todo
o estrume seco
que tenho
sob as mãos

Ela é triste
e
não pode cantar
e
não pode se envolver em cadeados

Se pudesse,
ela se fecharia
com cimento,
estancaria a luz
com tábuas de eucalipto

Esses papeis ficariam presos,
essa máquina
de tela colorida
chorando códigos, ficaria presa
na escuridão

Eu encaro a janela
com meus olhos de lama,
ela devolve os olhares
gosta de amedrontar
e me expor as vísceras
enquanto as coisas
dentro
e
fora
vão explodindo em convergência

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Perdendo as peças do jogo, queimando o tabuleiro

Comecei a trocar palavras com Manuela no pequeno período em que trabalhei na fazenda. Ia passar um tempo em Portugal e resolvi me juntar a um desses projetos da câmara para restaurar o patrimônio arquitetônico escondido no mato. Minha ideia principal quando escolhi fazer isso era o isolamento. O barulho do vento nas folhas das árvores, o canto dos pássaros, o orvalho frio da manhã. Tudo isso parecia melhor que as vozes da cidade martelando continuamente a cabeça; as pessoas vomitavam coisas horríveis, tinham o poder de destruir sonhos com um simples abrir e fechar de boca e ranger de dentes.
Manuela não falava muito, e ainda assim falava um tanto mais que eu. O que era muito bom e despertava meu raro interesse em trocar algo entre almas. Além disso, tinha um sorriso tímido e pequeno, como se fosse um desenho. Isso sempre me fascinou, o contorno dos lábios, a forma. Parece estupidez, mas eu achava aquilo importante. Como a maioria das mulheres que já me chamaram a atenção, Manuela era baixa, tinha proporções pequenas. A pele queimada de sol. Os olhos castanhos, escuros como terra batida às vezes pareciam cantar enquanto ela lambia os lábios ressecados e se inclinava para arrancar minúsculas ervas do muro. Tinha três dreads que saltavam da nuca quando prendia o cabelo quase da mesma cor dos olhos. Os dreads pareciam pequenos gravetinhos gordos, eu gostava de brincar com eles. Era bonita, não era vulgar enquanto caminhava, nem se importava com o que vestia e xingava como ninguém.
Era estranha também. Tinha a mania de fazer perguntas aleatórias e fora de contexto. Claro, eu tinha que ser muito esquisito para gostar desse habito. Uma vez corri atrás de um arbusto para mijar, ela esperava uns dois metros atrás enquanto me atirava algumas interrogações.
- Não tens medo de cobras? Encontrei uma morta no muro, não quero mais trabalhar lá.
- Não tenho. Vou fazer elas ficarem longe de você.
- Ah. E gostas de reggae? E de batatas, gostas?
- É claro, Manuela.
- Acho bué giro os brasileiros falando! Queres ir à praia comigo? Apresento-te pessoas.
- Pessoas?
- Sim! Ou queres ficar ca sozinho?
- Bem...
- Tens que conhecer gente
- Depende da "gente"
Nesse dia, aceitei o convite, mesmo que a parte das apresentações e a combinação asquerosa de sol, areia, sal e agua me desse vontade de correr para um buraco bem fundo e lá ficar por uma semana. Contei que até gostava de praias desertas, com sombra e pouco barulho. Ela me disse que algum dia me levaria para conhecer uma assim, o que nunca aconteceu.
As coisas iam saindo do controle, minha pedra estava derretendo e eu sabia disso. As cervejas não eram suficientes. Eu ficava amedrontado. O medo era diferente, não sei se chamaria aquela coisa assim, mas era algo que me acuava igualmente. Tirava-me do ciclo normal e autodestrutivo dos meus pensamentos.
Faltavam alguns dias para acabar o tempo do projeto. Manuela sorria e colocava as mãos nas minhas costas. Aquela merda toda acontecia outra vez, eu tinha que parar. No último, ela se ofereceu para me mostrar lugares interessantes da cidade durante a tarde, se eu não tivesse nada pra fazer. Inventei uma desculpa. Uma explosão. Uma privada entupida, e acabei indo mamar umas cervejas.
Aqueles dias haviam acabado e quase fui pego outra vez, eu sabia que no fim acabaria sendo tudo igual. Essa merda sempre termina em dor, sempre termina espetando até as solas dos pés. Meu coração regurgitou por alguns dias e a última vez em que tivemos contato, eu estava bêbado num jantar, rodeado por pessoas parcialmente desconhecidas. Meu celular apitara no bolso. Odiava telefones, principalmente quando interrompiam meu trago. Era Manuela, acompanhada por suas perguntas. “Qual música brasileira é que dizias que eu ia gostar?” Respondi a mensagem com um sorriso de canto de lábio, não esperava aquilo, não sou alguém assim procurado. “Não era brasileira, era argentina. Se quiser algumas brasileiras posso te passar.” Ataquei mais uma cerveja. Esperei três dias por mais um apito e ela nunca respondeu. Me recusei a mandar outra, fuzilei essa ideia durante semanas. Pelo menos dali a alguns dias quem sabe, estaria inteiro mais uma vez, isso é, com as partes que ainda me restavam para tapar os buracos.
Meu fracasso humano está cada vez mais além das nuvens. Não suporto jogar com isso, não sei mais mover o pião. Perco as peças uma a uma, o tabuleiro vai virando cinzas e a chama nunca se apaga.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Luzes esfumaçadas

em algum outro tempo
entre as luzes esfumaçadas
e sujas
meus dedos brancos
e ásperos
encontrarão outra vez
seus longos e negros fios de cabelo
e neles hão de abrir
caminhos para nossos lábios,
para as montanhas
e os seus olhos,
iguais a pequenas jabuticabas
estarão sorrindo denovo

enquanto meu único erro
é esperar
e
te jogar para longe

e esperar;

a bebida fica escassa
os cigarros chegam ao fim
mas as luzes esfumaçadas nunca se apagam
nunca deixam a cidade
são iguais ao meu sangue
que não quer te deixar

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Uma chance para Charlie

O tempo está passando, Charlie
O mundo está derretendo
Vai virar chumbo, vai sobrar só dor
Nunca vai apagar isso com cuspe, Charlie

Nunca mais haverá inverno, Charlie
Nunca voltará a aquecer aquela boca
Não vai mais acender uma fogueira, Charlie
Vai se tornar a fogueira

Seus dedos finos e pálidos vão ser os gravetos, Charlie
Vão ser lenha, vão virar carvão
Seu corpo inteiro se desfazendo em cinzas, Charlie

Você desaparecendo -
montanhas de cinza e poeira
Seu amor sumindo até o último pelo, desintegrando
espalhando tinta por entre os prédios
Montanhas de ossos, poças de urânio, Charlie

Não olhe pra essa janela suja
Não tem nenhum pássaro lá fora
Ninguém te esperando - ninguém ouvindo suas historias
Nem vento e verde e abraços, Charlie
Aquele quintal nem está mais ali
Você não pode mais brincar, Charlie

Feche seus olhos
Mantenha a distancia do quadro que pintou
Você consegue
Aperte essa porra de gatilho, Charlie

sábado, 6 de agosto de 2011

Muito cedo para matar baratas

A vida de Edgar se resumia em fatores simples e cotidianos. Pensava ele que no mundo não poderia existir nada mais delirante e estúpido que sua vida empoeirada, presa numa existência trivial e seca, nem mesmo Deus e todos aqueles santinhos medonhos e feios que rodeavam as igrejas, as casas, as praças, os escritórios de advocacia e os banheiros públicos seriam tão falsos e tristes como cada uma de suas manhãs ensolaradas ou não, sempre cinzas. Sentia-se aprisionado dentro de um pequeno souvenir, daqueles em formato de bola de cristal, que abrigam dentro uma pequena casa. Um mundo portátil e sujo que quando chacoalhado, arremessado ou bombardeado, só faz nevar e nevar e nevar.
Acordava cedo, com olhos de tigre e nariz escorrendo. Dava palmadas no despertador, que pulava freneticamente na mesinha de cabeceira, até que este fizesse o mais profundo silencio. O último minuto de paz da manhã. Descalço, arrastava os pés até o banheiro como se passasse por um caminho de brasas e cacos fininhos. Lavava o rosto três vezes, antes de erguer a cabeça e contemplar sua imagem de animal acuado em meio à sujeira impregnada nas bordas do espelho. Nunca tomava café, qualquer comida naquele horário lhe caia mal, não conseguia ingerir nem mesmo uma maçã. Por vezes sentia vontade de chorar, ainda parado em frente ao engordurado espelho. Elas nunca escorriam. Era como se suas lagrimas tivessem evaporado, tivessem virado uma cortina de fumaça que desapareceu acima das nuvens. “Merda!” ele dizia, “merda, merda, merda!”
Sua casa virava um campo de batalha quando finalmente se encontrava parado em frente à porta, esticando o braço, alcançando a maçaneta enferrujada, fazendo luz, ruído, fumaça, medo. O poder da rua contra seus cinco dedos magros e gastos da mão esquerda. Ele ganhava essa batalha já há uns bons trinta anos. Era mais um mutilado, uma vitima, do que um veterano de guerra. Não existe mutilação pior que a mutilação da alma. Podem te arrancar as orelhas, os braços e as pernas que você ainda encontra forças pra sorrir, pra voar. Com a alma é diferente, se te esquartejam a alma, só ela, é o fim. Edgar se sentia uma carcaça, uma verdadeira carniça jogada no deserto de concreto, a mercê dos abutres. Milhões deles, famintos nas janelas dos prédios, nos mercados, nas salas de espera dos dentistas, nos cinemas. Sobrevoavam as calçadas, as ruas, os metrôs. Tudo. O planeta era um gigantesco açougue perdido na escuridão do espaço.
Era uma manhã de terça feira. Não chovia, não fazia sol, não fazia nada. Seguiu minuciosamente sua costumeira rotina, exceto pela barata que passou correndo por entre suas pernas quando se aproximava da porta. “Muito cedo para matar baratas.” Pensou.
Andava devagar, carregando nos joelhos toda a estupidez e cansaço do mundo. Arrastava tudo isso pela praia, gostava de passar por ali naquele horário porque não havia ninguém. Ficava só, com o cheiro de marisco e o gosto de sal. Era bonito e triste, seria um pouco melhor se as ondas pudessem trazer do mais profundo oceano, novos sonhos. Sonhos com grandes árvores e barulho de vento e cheiro de terra misturado com qualquer perfume desconhecido. Qualquer odor que não fosse o de sangue batido com tijolo e ferro.
Seus devaneios foram interrompidos quando cruzou o beco que conectava a cidade ao prédio onde trabalhava. O lugar fedia a mijo e vômito. A entrada para o inferno devia estar próxima, pensava. E era só virar a esquina, passar a mercearia ainda fechada para dar com a cara nos portões negros e envelhecidos do edifício 143.
Na recepção Senhor Carlos batia os pés enquanto flertava com a secretária. Afundou os olhos azuis do tamanho de escaravelhos contra os de Edgar:
- 15 MINUTOS ATRASADO EDGAR. 15 MINUTOS!
Tinha hálito de peixe morto, era como se tivesse escamas espalhadas por toda a boca, era horrível. Era humano. Podre.
Edgar sorria enquanto alargava os passos até o elevador. Gargalhava, morria por mais um dia.
- TE CONTEI ALGUMA PIADA? – Interrogava Carlos, lá de trás. – EXISTE AQUI ALGUM PALHAÇO? JUNTE SUAS COISAS E DE O FORA DAQUI!
Edgar não respondeu. Foi até sua sala, sentou-se e acendeu um cigarro antes de começar a juntar as tralhas. Ele tinha ânsia, queria vomitar. “Maldito porco de olhos azuis.” Dizia para si mesmo. Pouco a pouco perdia o controle, não sabia mais para onde correr, não suportava. Não entendia nada. Cinquenta anos atolado na merda. Cinquenta anos vivendo a morte, o inferno. Ele desistia.
Aquela manhã, Carlos merecia, devia estar morto, com os miolos espalhados por todo o balcão da secretaria ou fatiado como uma picanha, mas era muito cedo para matar baratas.