quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Você disse: Nunca mais quero acordar

Era sempre um dia estranho quando você resolvia jogar baralho sozinha. Você ficava sentada na mesa com a cabeça baixa embaralhando as cartas em movimentos lentos e desordenados, depois estendia todo o baralho sobre a toalha branca de bordados azuis e verdes e puxava do bolso a cigarreira, enrolava um cigarro, os dedos finos tremiam enquanto levava o papel até os lábios espessos e entreabertos, eles quase não tinham cor. Depois sussurrava alguma coisa, era praticamente um sopro inaudível, mas ainda assim chegava a doer e eu sempre me sentia incapaz nesses momentos. Sempre me sentia um pássaro com as asas recém arrancadas por um serrote.
Muitas das cartas já se encontravam queimadas por cigarro, derretidas no meio e nas pontas, as damas já não tinham rosto. Você não gostava que elas sorrissem mais que você. Dizia que elas tinham algo mágico e que assim, destruir algo bonito te fazia sentir melhor. Te fazia aceitar que a vida, os sonhos, a alegria, qualquer coisa nessa porra de mundo tinha fim.
Nesse dia, você apenas deixou o baralho amontoado no centro da mesa, arrastou a cadeira até encostar na parede que tínhamos pintado de um verde bem claro, pois você dizia que quando criança sonhava com paredes dessa cor. Nós pintamos juntos essas paredes, todas as quatro da nossa sala apertada e esse lugar agora parece morto, os moveis, o sofá vermelho desbotado. Tudo morto. Eu estava na varanda, limpava as bostas de pomba que estavam grudadas no apoio, quando você veio correndo, seus cabelos longos tão negros e finos quanto linhas de costura esvoaçavam formando uma nuvem densa. Seu rosto grudado ao vidro, seu sorriso alongado expondo os dentes amarelos, o canino trincado. Seus olhos verdes de moça pedindo afago. Você sorria, mas seu olhar carregava desalento e quando ultrapassei a porta de vidro, não tardou em derramar algumas lagrimas. Eu te envolvi nos braços e você resmungou sobre um atentado terrorista qualquer e depois disse que tinha muito monstro por aí, que era melhor nunca sair de casa, que aquela porta feia, marrom escura com uma lasca faltando no centro devia ser o limite das nossas vidas. Você disse também algo sobre seus fantasmas, que nos últimos dias estavam fazendo um verdadeiro massacre e sua cabeça doía muito. Você gritou "NUNCA MAIS QUERO ACORDAR", meus tímpanos estremeceram. Nós ficamos ali, grudados com as peles, os pelos durante bons minutos. Eu sabia que aquilo tava piorando, você tava piorando, você estava tão fraca e tão bonita ao mesmo tempo.
Naquela noite deitamos cedo e a janela ficou aberta, tinha uma lua quase invisível espiando lá de fora e resolvemos fazer um show pornô para ela. Eu posso garantir que aquela foi a melhor trepada da minha vida. Quando terminamos, você se afundou no lençol, eu podia sentir sua respiração nas costelas e abracei sua cabeça com o braço. Você adormeceu.
Quando eu acordei, já tarde, você não estava mais na cama, as roupas ainda estavam todas pelo chão, sua calcinha enroscou num dos meus pés; andei em direção ao corredor, não senti cheiro de café, nem de torradas. A porta do banheiro estava entreaberta, pelas fresta aparecia um chinelo, uma toalha no chão. Bati de leve na porta. "Madalena" chamei. "Madalena" chamei novamente e não obtive resposta de nenhum canto da casa, nem um som qualquer. Mal entrei naquela geladeira forrada de azulejos brancos e velhos, para ver duas ou três vidas desabarem de uma vez, quatro ou cinco mundos explodindo ao mesmo tempo. Eu não sei como suportei aquilo; encontrar seu corpo ali, nu, pendurado pelo pescoço com um pedaço da minha corda de hapel no ferro que sustentava a cortina da banheira, sua boca roxa e meio aberta, sangue escorrendo do nariz, seus olhos vazios, vazios, vazios. Tão vazios que esvaziaram os meus também; me esvaziaram por completo.
Hoje faz uma semana, Madalena. Seu baralho ainda está na mesa, diabos, eu não tenho coragem de mexer naquilo. Suas roupas ainda estão jogadas em volta da cama, eu tenho esse rosto apático e não posso entrar no banheiro, porque eu vejo a sua imagem no espelho, pendurada, roxa, morta. E não posso tomar um banho sem querer me enforcar também.
Encontrei sua carta de despedida agora a pouco no bolso do roupão, ela tem o seu cheiro e ainda não abri. Não consigo tirar o envelope de perto do nariz e eu gostei tanto do desenho do gato que você fez nele, mas eu sei que o conteúdo disso vai acabar com o que resta de mim, e nem quero imaginar como será a proxima semana. E eu tenho medo, uma merda dum medo tão grande que chego a me sentir estúpido, um verdadeiro filho da puta dum estúpido. Ah Madalena, eu devia ter dito "te amo" mais vezes.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

11.11.11

tem uma chuva fina
quase invisível
ensopando minha
janela

e eu me perguntei
sobre ti
a primeira vez que
abri os olhos
hoje.
os pássaros estão mudos
nenhum carro passa -
a televisão da vizinha
também está muda e
eu ainda sustento
algum plano -
apesar de tudo.

as folhas verdes
da arvore da frente
já estão ficando
amarelas e
esse é o sinal
de que o
maldito tempo
passa tão lento e
tão rápido como uma
doença

não ajuda, nada ajuda -
e é sempre pior
arrepender-se de algo
que talvez
podia ter sido feito
mas não
foi.

o arrependimento pode um dia
ficar mudo como os
pássaros hoje,
mas o pequeno monstro que
vive brigando aqui dentro
nunca fica mudo.