segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Algo sobre como as coisas ficam insanas no natal



É 24 de dezembro, 3:47 da manhã, madrugada da véspera de natal. Tudo parece silencioso nas ruas. A loucura está chegando ao fim. A correria para comprar o peru, os assados, castanhas, as frutas de todos os tipos e cores e as uvas passas, as malditas uvas passas. As pessoas pararam de arrastar suas crianças pelas calçadas, finalizaram as buscas frenéticas e furiosas por presentes e merdas. Agora dormem em suas casas, entre pisca-piscas irritantes e bolas coloridas penduradas em arvores de plástico, esperando alucinadas pelo natal enquanto Victor detona uma garrafa de vinho e tem um bom sexo reconciliatório com Diana. 
Ela está por cima enquanto ele concentra o olhar em seus seios. Ela arrasta as unhas por seu peito, em meio aos pelos e diz “Monstro. Você é meu monstro.” O celular no criado mudo começa a tocar, a chamada vai até o fim e o toque cessa. Agora ele carrega Diana para baixo e começa a trabalhar mais rápido, uma gota de suor escorre pela têmpora direita dele e pinga entre os seios dela, a gota percorre todo aquele vale branco e mergulha no umbigo. Os dois gozam. Ele rola para um lado e Diana levanta, puxa o maço de cigarros de dentro da bolsa e vai ao banheiro. O celular toca outra vez. Número desconhecido. Victor atende. 
- Alô?
- Ela está aí com você, não é?  - A voz de Eva vaza pelo aparelho.
- Eu não disse para você parar de me ligar?
- Está ou não?
- Não. Estou dormindo. Deixe-me dormir.
- Estou indo aí.
- NÃO VENHA. VOCÊ NÃO TEM ESSE DIREITO. 
- Ela está aí. Eu sabia seu filho da puta.
- Eva, nós terminamos. Você precisa se afastar de mim, tomar um tempo só seu, ou isso vai te deixar doente.
- Você me prometeu que nunca voltaria pra ela. Você disse isso. 
- Escuta Eva, é melhor você ir dormir. São quase quatro da manhã...
- O que eu vou fazer sem você, Victor?
- Vai viver sua vida. Vai encontrar outro otário. Vai continuar fazendo o que você sempre fez. 
- OTÁRIO OTÁRIO OTÁRIO – ela grita - você adora essa palavra. Deve me achar uma otária também. O que você pensa seu cretino? Você acha que é uma espécie de gênio?  VOCÊ ACHA QUE É DEUS? QUE TODO MUNDO É OTÁRIO, MENOS VOCÊ?
- Eva, você está bêbada? 
- Eu vou me matar, ouviu bem? Vou matar meus cachorros, meu canário e depois me matar. E a culpa é sua. Você vai lembrar disso todo final de ano, nunca vai me esquecer. – Ela desliga
Diana sai do banheiro, jogando a longa cabeleira cor de caramelo para trás com as mãos.  O cigarro preso entre os lábios. Victor está sentado na beirada da cama, ainda segurando o celular.
- Quem era ligando tão tarde? – Diana quer saber
- Eva está bêbada. Disse-me coisas horríveis. Falou que ia matar os cachorros, o canário e depois se mataria. 
- Não é melhor ligar e falar com ela direito? 
- Já tentei, ela não vai me atender.
- Então é melhor ir até lá.
- Não. Ela não vai fazer nada, não tem colhões. 
- Bem, vou preparar um chá para relaxarmos. – ela joga o que resta do cigarro dentro da garrafa vazia ao pé da cama.
- Boa ideia. Depois dessa crise, seria mesmo bom.
Victor caminha até o banheiro e puxa uma revista de uma cesta que fica ao lado da pia. Levanta a tampa da privada e senta. Começa a ler uma matéria sobre submarinos clandestinos que transportam drogas, fabricados nos confins da floresta amazônica pela As FARC. Diana faz barulho na cozinha, parece que matou uma barata. O celular volta a tocar. Ele levanta da privada e corre atender. 
- Ainda não me matei. – Eva diz
- Estou vendo. Se tivesse se matado eu teria terminado minha cagada.
- Eu pensei que você estava fodendo com aquela outra, por isso liguei.
- Eva, concentre-se na sua vida. Você vai conseguir.
- Estava pensando em me matar, mas não há mais o que matar. VOCÊ MATOU TUDO O QUE EU PODIA MATAR EM MIM.
- Você ainda está bebendo?
Diana aparece na porta do quarto com duas canecas de chá. Atravessa o cômodo, os seios firmes apontando em direção a Victor. Ela sussurra “Então, é ela de novo?” Victor assente com a cabeça.
- Eu cheguei a pensar que você era diferente, Victor. Mas você é igual aos outros. Por que você fez isso comigo?
- É isso que os seres humanos fazem uns aos outros... É natural as coisas acabarem, entende?
Victor escuta um barulho do outro lado. Eva deve ter derrubado alguma coisa. Uma garrafa, talvez. Ela desliga.
Ele volta ao banheiro, recoloca-se na privada. Diana deixa uma das canecas em cima do criado mudo e da pequenos goles na outra. Acomoda-se na cama, encosta na cabeceira e cruza as pernas.  Victor termina o serviço no banheiro e volta para o quarto. 
- Falei com Vilma. Vamos até lá por volta das seis da tarde, para ajudar a arrumar as coisas. Ela disse que Todd não vê a hora de te mostrar sua nova espingarda. – Diana diz com uma voz mansa. 
- Odeio essa época do ano. Feliz natal? Feliz ano novo? Foda-se.
- Você odeia todas as coisas. Por isso é meu monstro. 
- Diana, podemos passar esse tormento de natal em casa. Terminamos os vinhos e fodemos e jogamos cartas... O que me diz?
- Não. Já está tudo combinado.
- Vilma tem um presépio gigante no quintal. Presépios me assustam.
- Lembra ano retrasado, Victor? Todd, bêbado, abateu um dos três reis magos com uma de suas espingardas, Vilma ficou furiosa. Agora são apenas dois.
- Ele devia é abater o presépio inteiro. Libertar a casa daquela coisa assustadora. 
- Bom, temos que estar lá às seis da tarde.
- Eu não sei se vou conseguir dormir, sabendo de toda essa loucura ao meu redor.  Se eu não conseguir dormir, não vou suportar. 
O celular toca pela quarta vez, Diana estica um dos braços e apanha o aparelho jogado na cama. 
- Número desconhecido. – ela diz
- De novo?
Victor atende. Ele faz algumas caras de espanto, passa uma das mãos sobre a cabeça. Eva havia começado um discurso interminável, ele quase não consegue uma brecha para falar.
- Eva... Estou ligando para sua mãe!
Eva desliga. 
- Santo deus! 
- O que aconteceu? – pergunta Diana.
- Ela disse que falou com Tommy. Que ele vai leva-la a Paris e que a ama de verdade
- Oh, isso não é ótimo?
- Seria, se Tommy não fosse um maldito urso de pelúcia de vinte e sete anos. E ela disse mais, falou que vai mandar flores francesas para o meu velório, quando você me matar.
- Nossa. E depois eu é que sou a louca.
- Mas você já me ameaçou com uma faca duas vezes. Na segunda abriu um rasgo no meu braço. Treze pontos... Lembra? 
- Eu e ela certamente somos muito diferentes. 
- Com certeza...
- Me diz, vai mesmo ligar pra mãe dela?
- É claro que não, Eva tem trinta e dois anos. Amanhã nem vai lembrar que isso aconteceu.  
Os dois terminaram o chá, apagaram a luz e deitaram. Victor envolveu Diana nos braços. Os corpos ainda suados se mesclavam sobre o colchão. Ficaram em silêncio durante quinze minutos.
- Diana? – ele sussurrou em meio ao breu silencioso do quarto.
- O que é?
- Eu não te disse quando estávamos no mercado? As pessoas ficam muito perigosas nessa época do ano. Completamente insanas...
Ele sentiu Diana suspirar. Ela ficou imóvel como uma pedra, imersa em sono profundo. Victor fechou os olhos. Pensou consigo mesmo, “o que diabos é isso que os seres humanos vivem fazendo a si mesmos e aos outros?” Uma hora depois, dormiu sem respostas.

domingo, 4 de novembro de 2012

Clichês efêmeros

O conto a seguir sofreu pequenas alterações ao longo das últimas horas (05/11/2012 - 02:07).

Estamos numa noite nublada de quinta-feira. As nuvens estão um tanto carregadas, trovões e relâmpagos tomam parte da penumbra do céu formando desenhos e rabiscos luminosos que me riscam os olhos. Por um instante desvio o olhar do firmamento em direção ao chão, reparo numa moeda de cinco centavos presa entre as pedras da calçada, já tão gasta quanto as solas dos meus sapatos. Estava quase irreconhecível, parecia esquecida ali há muito tempo. Isso dispersa meu pensamento por instantes e me faz lembrar que precisava comprar calçados novos, e talvez umas meias.
Volto a olhar para o céu. Não transpiro muito, mas o calor dos últimos dias faz minha testa umedecer levemente. Não estaria mal que começasse a chover. Tento evitar olhar as horas, e é bom que elas me evitem também. Impaciência é uma coisa que não combina comigo, não é o tipo de negócio que costuma borbulhar dentro de mim. Na verdade mal sei o que é isso; se não fosse por estar parado aqui, na frente desse bar, no meio de um movimento incessante de pernas e mais pernas esperando por ela, provavelmente todo meu corpo estaria imerso em apatia e indiferença. Não existe substancia ou situação que eu conheça até então que me cause efeitos tão devastadores quanto essa mulher. Bizarro, colega. Eu não sei descrever o tipo de força que ela emana para me construir e me derrubar quase que ao mesmo tempo. Eu não sei descrever merda nenhuma quando se trata disso. É quase bestial. 
Tenho sede e vou para dentro do bar. Penso em comprar uma cerveja. Melhor, cerveja não. Não agora. Pego uma água. Lembro-me de algumas das várias discussões que tivemos no passado por causa do álcool. Está tudo bem, eu tento beber menos. Eu quero fazer as coisas certas uma vez na vida.
Planto-me outra vez na calçada, observo entre as cabeças, em meio às luzes e os relâmpagos. Não há sinal de chuva no céu e eis que a vejo virando a esquina, com seu pouco mais de 1 metro e 56 centímetros. Cabelos negros, de tamanho mediano balançando com a leve ventania que contorna as pessoas e os prédios. Faz aproximadamente oito meses desde o nosso último encontro, uma coisa corrida. Um quase adeus tão deprimente quanto a ausência que venho sentindo. Porra, eu não sei por que diabos tudo entre a gente ficou assim. Não entendo como deixei, ou deixamos tudo chegar nesse ponto nebuloso, nessa nuvem negra que separa vidas da mesma forma que separa o céu da terra. 
Agora Ana surge em minha cabeça. Por alguns instantes sinto-me como se estivesse sido transportado para um universo paralelo, como se tivesse perdido os sentidos, afogado em reminiscências desgastantes, é isso que certos erros fazem com a gente. Estou imaginariamente longe do bar, da calçada, do fedor da cidade. Ana foi mais um dos meus erros. Talvez o pior da minha vida até então e digo não só por mim, mas também por ela. Ana não tem culpa por ter sido uma coisa que plantei sem querer colher, e não devia sair machucada. Mas ainda assim dividi meu erro com ela e sou sujo por dividir minhas culpas, sujo por algum dia ter jogado metade dos meus sacos de merda nas costas dos outros. Sujo por em momentos de loucura ter alimentado vezes sem conta um ódio tão vil, tão porco, inclusive de mim mesmo. Dividi o peso, mas a capacidade de ter afundado aquilo que mais queria quando voltei para cá será sempre minha. Ana, uma brisa que soprou no canto errado, um pássaro que se perdeu no céu escuro dessa sujeirada que fiz e agora tento limpar. Isso tudo significa ser humano. Isso tudo significa ser humano por ser tão errado.
Se eu pudesse voltar naquela sexta, era começo do ano. Eu teria atendido aquele telefonema, Camile. Eu teria mudado o rumo dessa merda toda sem abrir feridas em ninguém, como devia ser. Mas fiz a coisa ao avesso e agora agonizo.
Começo a voltar ao mundo real. Estou novamente em pé na calçada esperando por Camile, que virou a esquina e agora já está tão próxima que posso olhar fundo em seus olhos, e mergulhar mais uma vez naquelas duas luas negras, os satélites do meu melhor planeta.
Instintivamente pego o maço de cigarros do bolso, levo um a boca e acendo. Não me parece a melhor coisa a ser feita, mas não levo nenhum jeito para reaproximações. Nunca levei. Só percebo que estou realmente fumando quando dou lá a terceira tragada. Camile agora está parada em minha frente e estica seus bracinhos finos de pele meio morena em minha direção. É um abraço gelado, como aquele de oito meses atrás. Ela olha em minha direção e deixa escapar um sorriso falso, quase rasgado.
- E pensar que antes você dizia que eu estava carregado de falsos sorrisos... - eu digo
- O que quer dizer com isso, err Diego?
- Nada.
- Você não tinha parado de fumar?
- Achei que tinha.
- Tá aí uma coisa que não muda em ti. Vive achando demais.  O que tu faz com as certezas?
Eu não respondo. Procuro uma mesa e faço sinal para sentarmos. Amasso o que sobra do cigarro numa lixeira próxima. Ela parece impaciente, não para de brincar com um cordãozinho da bolsa e evita olhares diretos. Ela sabe se esquivar como ninguém e sempre acaba me desarmando.
- Todo ano é a mesma situação. - eu digo
- Acho que dessa vez é diferente.
- Em que sentido?
- Não sei. Nem sei o que você quer dizer com isso...
Tento desconversar, ela tem o controle de tudo. Não demoro em perceber o quão fodido estou.
- Camile... Eu sinto sua falta.
- Eu também sinto a sua, mas não acho boa ideia a gente voltar a se falar. - ela ataca dessa vez, sem flanquear.
- Por que não?
- Porque eu já passei por isso duas vezes e não quero passar uma terceira.
- Se você acreditasse...
- Mas eu não acredito, Diego. Não acredito. Isso nunca funcionaria. E também não quero falar sobre tudo o que a gente já conversou antes. Então não comece um monólogo.
- Não seja egoísta. Tô me encontrando com você porque sempre quis as coisas diferentes.
- Egoísta o caralho, entendeu? Já se esqueceu das outras vezes? Eu tô cansada das suas merdas. E isso nem sequer é um encontro. – ela olha para o teto, leva uma mecha do cabelo para trás da orelha e continua. – Sabe, você deve ser o cara mais estagnado que eu conheço. Das coisas que você queria, chegou a concluir alguma? Você desiste de tudo. Você morre pelo caminho toda vez.
- E o que é que você sabe sobre as coisas que eu quero? 
- Agora estamos fazendo avanço. Você desistiu de mim inconscientemente. Apenas não descobriu ainda, Diego. 
Dou uma golada na garrafa de agua. Espero em silêncio para ver se ela solta mais alguma bofetada verbal. Ela voltou a se posicionar na defensiva. Penso em atacar, mas não tenho forças. 
- O único avanço que eu queria fazer aqui era me acertar com você.
Tento investir com um beijo, ela se inclina para trás e vira o rosto. Sinto o cheiro da maquiagem, a leveza de sua pele. Como me faz falta aquele toque... Eu recuo por um segundo. Agora tento abraçar seu rosto levemente com uma das mãos. Ela levanta: 
- Já estamos acertados, de certa forma.  Eu vou indo agora.
Camile começa a andar. Eu a acompanho, desviando dos transeuntes que aparecem em minha frente. Viramos a esquina. O metrô está logo ao lado, ela desce as escadas quase levitando, como se eu não estivesse ali. Continuo atrás. Sinto por dentro um desespero fora do normal subindo pela boca do estomago e girando no esôfago. Essa coisa é tão incomum para mim que mal consigo acionar um mecanismo de defesa. Estou completamente rendido e em segredo não sei o que fazer. Compramos os bilhetes, passamos as catracas. A merda do trem já esta lá. Ela vai irredutível até a porta:
- Camile, espera!
 Ela me olha pela última vez, antes de entrar:
- Eu disse que se você terminasse com ela, ia ficar sozinho. Otário.
- Fico sozinho então, porra, fico sozinho! – nesse momento eu perco a paciência e começo a gritar. – Isso não me faz mais ou menos fudido do que já estou, Camile!
Algumas pessoas olham um pouco assustadas enquanto passam pela plataforma.
- Então tá bom. A gente se vê.
Ela embarca no trem, sem olhar para trás. Agora estou impotente, gritando do lado de fora. Começo a andar de costas, sem tirar o olho da janela onde ela está sentada. O trem parte e some na escuridão do túnel. Tudo indica o último minuto, a última vez. Eu acabo de perder algo insubstituível. 
Tenho vontade de vomitar, mas minhas pernas querem correr. Saio do metrô, acendo um cigarro. Tento caminhar normalmente, enquanto praguejo em silêncio. “Vai pra puta que pariu, então. Vai...” 
O metrô mais uma vez leva uma parte de mim, enquanto apanho um táxi para a rodoviária. 
Desmembrado, estou voltando para casa. 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Às 5 da manhã

coisas batendo na cabeça
às 5 da manhã
talvez um tijolo ou
uma garrafa vazia,
um estalo no cranio e
avencas brotando pelas orelhas
em meio ao calor.

acomodo-me no sofá
ao mesmo tempo em que alguém tenta vender
modernos utensílios
dentro da minha TV muda
igual um tumulo formado por luzes

percorro os canais
e lá estão mais utensílios
ou previsões do tempo e
telejornais carregados de "bom dia"
prestes a começar

o mundo nunca parece tão feito
de televisores e coisas batendo
em cabeças como é
às 5 da manhã
enquanto o tempo faz questão de morrer
sem passar.

um murro num velho filme de ação bate
o uísque barato
canções desconhecidas batem
e o resto descansa
numa especie de sono
interminável
e estou tão acordado
quanto jamais estive

desligo a TV.

vou até o banheiro
jogo água no rosto e
encaro o espelho, não há nada a fazer.
caminho para o quarto
não acendo a luz
ligo o ventilador.
atiro-me na cama e faço um casulo com o lençol.

mantenho os olhos fechados.

as janelas batem,
e as portas
e os pássaros
e sol

você também bate em minha cabeça
com toda a força que o silêncio pode ter
às 5 da manhã.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Alissa não precisava morrer

Alissa tinha essa forte tendência suicida. Já havia tentado de tudo. Uma mangueira conectada no escapamento do carro inundando o interior do veículo com monóxido de carbono. Uma forca improvisada numa viga de madeira do rancho da casa, que por sinal estava podre e se rompeu quando ela pulou da cadeira. Tentou remédios, vários deles e álcool. Até mesmo um veneno ou sabe se lá o que diabos era aquilo que encontrara enquanto dava fim nas coisas da mãe, já falecida a oito anos. " Eu precisava de espaço no armário e então resolvi jogar a velharia fora. Separei apenas uma boneca de porcelana, que ela gostava muito e então me deparei com um frasco avermelhado, cheio de bolinhas laranjas e ásperas. Pensei que aquele era um bom momento e tomei tudo, mas aquilo só me fez cagar e vomitar por uma semana. Tive que dormir sentada na privada, um horror." Ela contou certa vez enquanto fazia uma omelete para o café da manhã. E numa noite, após o sexo, quando tomei coragem para perguntar das marcas nos pulsos ela respondeu "a primeira vez é sempre a mais idiota." Fiquei em silêncio por alguns segundos tentando entender o que ela quis dizer com idiota, matutando sobre as outras tantas vezes. Terminei por mudar de assunto.
Não sei bem se Alissa não tinha mesmo sorte com esse lance de suícidio ou se no fundo da sua alma nebulosa coberta por aquele manto de pele cristalina, ela na verdade não queria morrer. Talvez fosse isso, ela odiava em silêncio e por mais ódio que pudesse sentir da vida, odiava a morte igualmente como se buscasse um mundo paralelo entre as duas coisas. Algo que cultivara na infância e que sobrevivera até então, infinito. Possuía também grandes olhos cor de caramelo, um nariz fino, pequenino, levemente arrebitado que parecia sempre querer, com certa timidez, apontar para a lua. Uma boca avermelhada por natureza, nem muito fina, nem muito grossa terminava o contraste com aquela cabeleira obscura, num tom preto quase de cegueira.
Nos conhecemos por acaso, na sessão de filmes de horror de uma locadora alternativa numa noite de sexta. Eu procurava coisas trash do gênero Grindhouse, quando ela veio com um filme na mão. Apontou a capa para mim.
- Já assistiu esse?
Olhei para o título. Era um filme japônes chamado Suicide Club. Uma colegial estava em primeiro plano na capa e atrás dela varias outras.
- Não. - respondi.
- Eu estava pesquisando, me pareceu muito bom.
- É, talvez...
- Você não é muito falante, não é?
- A maior parte do tempo, não.
- Bom assim. Se quiser assistir comigo... Está convidado.
- Você nem me conhece.
- Você não me parece perigoso. Apesar de justamente isso indicar o contrário - ela abriu um sorriso.
- Olha...
- Então o rapaz vai me seguir? – perguntou, interrompendo.
- Com certeza.
Morava perto dali e no caminho, pouco foi dito. Ela contou coisas sobre a vizinhança e disse que há uma semana a policia federal havia cercado o bairro para prender seu vizinho, que era pedófilo.
Vivia com o irmão, ele trabalhava com alguma coisa de supervisão e controle de hidrelétricas e estava viajando a trabalho. Um portão grande e cinza que se abriu fazendo um barulho agudo levava pela garagem até uma porta grossa de madeira que dava para a sala. E ali estávamos sentados, assistindo o filme japonês. Tudo começou numa estação de metrô de Tóquio, onde varias colegiais estavam indo apanhar o trem, mas antes que ele chegasse até a plataforma, todas elas deram as mãos e pularam nos trilhos ao mesmo tempo. E aí veio aquele banho de sangue e carne triturada na tela, na multidão. E gritos, muitos gritos. Uma serie de suicídios começou a acontecer no decorrer do filme e um detetive resolve investigar tudo isso. Logo descobriu que existia um grupo de música, teoricamente infantil e de muito, mas muito mal gosto japonês que estava por trás disso. Bem, nessa altura eu já não estava nem mais ligando para o filme. Não conseguia tirar os olhos daquele pedaço de gente ao meu lado. Ela ejetou o dvd.
- Gostou?
- Na verdade achei todos esses cretinos um bando de adolescentes influenciados pela mídia. Nada mais que isso. Sei lá, aquele grupo era horrível. Parecia uma coisa tipo Xuxa. Talvez se partirmos desse ponto podemos entender as mortes. Por outro lado, Japão é meio assim mesmo. Muita gente bitolada com esse tipo de coisa...
Ela riu.
- Também esperava mais, – disse – eu já tentei.
- Tentou o que?
- Suicídio, oras.
- Por quê?
- Acho que falta do que fazer. Ou falta de vontade de fazer... Quer uma cerveja?
- Mas é claro.
E assim passei o final de semana na casa dela, acordando atrasado para o trabalho na segunda feira. As pessoas desequilibradas sempre me atraíram.

*

Uma semana se passou. Madrugada seca. Estávamos no meu apartamento bebendo sem parar durante umas quatro horas, quando Alissa aproximou-se da janela e voltou-se para mim.
- Vamos fazer um teste.
- Que teste?
- Eu vou subir no ar condicionado do vizinho de baixo, está logo aqui. – ela se debruçou na janela para olhar o ar condicionado.
- Estamos no décimo quarto andar...
- E daí?
- Para com essa merda.
- Eu vou subir, vamos ver se ele me aguenta.
- Não ouse meter sequer uma perna pra fora dessa janela.
Ela era pequena, 1,57 de altura e pesava 48 quilos. Vinte e três anos de muitas historias. Apoiou uma perna no ar condicionado e me fitou com olhos de provocação.
- Volte essa perna para dentro AGORA MESMO! – gritei, me contorcendo no sofá.
- Parece firme, acho que não vai cair.
- Não...
- Já estou indo! Já estou indo!
- Escuta aqui...
- Atenção!
- Foda-se também. É isso que você quer? Vá em frente. Tomara que se arrebente lá em baixo.
Alissa gargalhou, deixou cair a garrafa para fora. Eu pensei que ela iria recuar.
- Nossa, é alto mesmo!
Nesse momento já estava em pé no ar condicionado, completamente fora. Eu só podia ver a calça jeans preta pela janela. Levantei-me para puxa-la para dentro, mas ela voltou por conta própria.
- Viu? Me aguentou.
- Você é louca ou o que? Podia ter caído de bêbada também.
- Não sei.
Ela foi até o banheiro, pude ouvi-la vomitar, depois escutei o som de seus passos se arrastando pelo assoalho até o quarto. Abandonei minha garrafa e a segui. Ela já estava deitada, de barriga para baixo, fez um esforço para me olhar.
- Você pode me comer se quiser, mas eu vou dormir. Hoje você finge que é um necrófilo.
Não consegui conter o riso, mas sabia que de alguma forma ela iria gostar da experiência.

*

As coisas correram bem a partir daí. A indiferença de Alissa perante a vida e os riscos e qualquer coisa que envolvesse certo tipo de ação inesperada me encantou. Ela começou a passar a maior parte do tempo em meu apartamento, o que não era ruim. Sua presença desfilando pelos cômodos todas as manhãs e todas as noites era como uma obra de arte viva. Também sua voz baixa e suave como uma nuvem ecoando pelas paredes feito uma melodia composta só para mim. E seu sorriso quase inexistente, como uma Mona Lisa comtemporânea, louca e suicida me dava forças para ressuscitar da cama todos os dias e correr para o trabalho. Já levávamos dois meses juntos. Suicídio não era decepar a própria cabeça numa guilhotina, mas sim abandonar Alissa.
Estávamos numa manhã de domingo nublada e tudo indicava uma boa chuva. Já fazia mais ou menos um mês que não víamos agua cair, a cidade estava em clima de deserto. Sentei na cama e acendi um cigarro, olhei para a janela e acariciei levemente os cabelos de Alissa, que voltou o olhar para mim.
- Parece que finalmente vai chover. – eu disse
- Já não é sem tempo. Posso morrer afogada, seca jamais.
Ela se levantou, foi até o banheiro e jogou agua no rosto. Pude ouvir barulhos na cozinha e um cheiro de café logo começou a navegar pela atmosfera. Fui até lá.
- Já era pra ter resultado, não é? – olhou para mim e sorriu.
- O que?
- A morte.
- Vai começar com isso de novo? Alissa, você nunca quis morrer de verdade.
- Não vou. Até acho que você tem razão, mas porra, que tudo é uma verdadeira merda, isso é. E morrer é supostamente uma coisa boa...
- Não discordo, mas faltando a capacidade de comprovar isso, a gente morre de mentira por aqui. Pra mim tem funcionado muito bem, apesar de ainda termos que calçar nossos sapatos e enfrentar meia cidade para trabalhar.
Alissa tirou o café do fogo, serviu duas xícaras.
- Pelo menos é certeza que aqui a gente pode foder e fazer nossas guerras e criar nossos personagens. – ela riu
- Certeza é sempre uma vantagem! – alcancei uma xícara e dei um gole no café.
- Se é! E das grandes.
Alissa sabia, a gente só precisava matar um demônio de cada vez. E os primeiros pingos de chuva já começavam a encharcar os vidros das janelas.

domingo, 12 de agosto de 2012

Um poema áspero

a estupidez te domina tão rápido
quanto exércitos de homens enfurecidos pela pátria
mal colocada na
história e
não importa a quantidade
de garrafas entornadas
as coisas não vão mudar.

é isso que Otávio diz
enquanto termina outro copo,

elas simplesmente não vão mudar
e vão te atormentar ano após ano,
ele continua.

não preciso de ninguém
não quero saber de nada - digo -
vamos apenas continuar na pegada.

Otávio pede mais duas doses de conhaque
e solta uma tímida gargalhada.

não só quer como lamenta a ausência
feito um cão,
você é sujo - solta outra gargalhada
é tão sujo que não pode viver sóbrio
você é sujo e fraco
e não aguenta um segundo
na escuridão

por um momento penso em fugir das coisas ruins
e ligo para Marília,
ao mesmo tempo que a chamada se propaga por meus ouvidos e
o som percorre meu corpo como uma corrente de vapor,
penso se há realmente algo a ser dito.

as coisas estão morrendo,
é tudo morte, uma sequência assassina,
lembro de quantas coisas matei pelo caminho
e
desligo antes que alguém atenda, sem pensar no meu número
cravado como uma chaga ali no aparelho que pertence a ela.

eu, uma chaga.
Marília, uma bênção.
uma paisagem tão longínqua quanto posso
imaginar.

derrotado outra vez
abandono a mesa enquanto Otávio
mergulha em outra
dose

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Um mergulho no breu

existe uma superfície infinita
que bate em mim
com a força de cem punhos
de homens banguelos, bêbados e
insanos, que gritam com o mesmo terror e
silêncio de um vulcão em erupção
existe uma superfície de loucura e de
contas à pagar
bancos
desemprego
fome
filas enormes nos hospitais
no caixa do mercado
dinheiro por comida
roupa
casa
saúde
dinheiro por cagar,
trabalhos horríveis por quantias
de dinheiro mais horríveis ainda
e bocas, muitas bocas trazendo o inferno.
tente encontrar o real significado para
tudo isso e você terminará
tão louco como jamais
foi.

é provável que esse seja o motivo
pelo qual não consigo levar nada adiante,
a não ser uma sucessão inacabável de fracassos e
desinteresses.

tenho assisto aos jogos olímpicos de Londres
como quem tenta escapar do fundo de um balde
transbordando de merda, e isso me tem feito algum bem;
procuro apreciar Londres cinza e chuvosa,
bonita como tem de ser,
também as modalidades e suas disputas com toda a força
que isso possa significar, e a beleza,
especialmente das garotas da ginástica artística com suas séries
e movimentos quase mágicos.
é só quando penso no passado que uma pontada
atravessa o corpo.
as vezes se eu tivesse continuado a nadar - e como eu era bom -
talvez hoje pudesse estar lá
mostrando que em algum lugar de mim ainda existe
uma alma pulsante, pronta para brigar.
quase me arrependo dos doze anos de natação
jogados no lixo, e das tantas outras coisas que joguei e
ainda vou jogar

é só que não tenho sonhos
não consigo sonhar;

mas o mergulho no breu
na falsa superfície do presente,
com as recordações azedas e pontiagudas
pesando feito chumbo,
é o que resta
enquanto luto para não sucumbir em filas de espera,
para não perder os papéis coloridos
antes que seja decretada
a última sentença

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Porque quatro dias é demais

O barulho daquela avenida numa manhã de domingo assim como em todos os outros dias era um tormento, os motores dos carros que passavam pelas duas vias nunca sessavam e apesar da cidade não ser tão grande, era chato. Era como ter uma maquina de engrenagens dentro da cabeça. No caso de Alex, isso já tinha se convertido em algo quase inaudível. Vivia ali desde o nascimento e já não sustentava esperanças de encontrar silêncio naquele lugar, aliás, nem em parte alguma. O homem estava mesmo fadado a conviver com barulho e loucura, seja ele de maquinas, televisores, rádios, animais ou do próprio ser humano e sua boca fedida.
Raios de sol se infiltravam pelas frestas da persiana, iluminando parcialmente o quarto. Marcela já devia estar acordada há umas duas horas, ela sempre acordava primeiro.
- Alex? Tá acordado?
- Hmmm ahn hmmmm
- Al? Já são quase 13:00. Você não vai levantar? Al.. Eu estou enjoada de ficar deitada.
- Pode levantar, pode fazer o que quiser. Você não está amarrada, amor. Mais um pouco e saio da cama...
- Então tudo bem.
Alex soltou um longo suspiro, sem abrir os olhos. Coçou o rosto e virou para o outro lado. Marcela começou a acariciar suas costas, descendo e subindo com o dedo indicador. Depois deu um cutucão, e outro.
- O que é, porra? - Disse Alex - É impossível dormir com você aqui e já se vão TRÊS DIAS E TRÊS NOITES assim. Maldito seja esse feriado prolongado.
- Mas já são quase 13:00. Você dormiu demais. Parece que não sabe pensar em outra coisa. Dorminhoco.
- Pro caralho com isso. Você mal me deixa dormir a noite. E nem por isso eu te acordo quando, no meio da madrugada, começo a sentir um calor do inferno e preciso levantar para não morrer queimado.
- Por que tá falando assim comigo? Não me quer aqui? Há dois dias você estava diferente.
- Olha, você vem e fica sempre dois dias. Quatro dias é demais pra mim. Posso suportar dois, mas quatro é demais.
- Você não me ama mais? Não quer estar comigo?
- Eu posso te amar quando você está de boca fechada. Você fala o tempo todo, minha cabeça, meus ouvidos estão doendo. É demais pedir um pouco de silêncio?
- Eu sou chata?
- Santo Cristo.
- O que foi?
- Não é isso. Você tá parecendo uma parasita. Você me esgota. Sinto-me doente. Eu posso dormir por oitenta e seis dias seguidos, mas se você estiver do meu lado em todos eles, grudada feito uma sanguessuga eu vou sempre estar cansado e acabado. Sem contar essas perguntas infinitas.
- HAHAHAHAHAHA Exagerado. Aliás, você arrumou o carro? Queria dar uma volta...
- Estou falando sério. Não se faça de desentendida.
- Qual o problema? Meu aniversário está chegando e...
Alex levantou, procurou a cueca no meio do lençol, vestiu-a e foi até a cozinha. Abriu uma cerveja, pegou a frigideira. Uma mancha negra e grudenta se formava bem no meio dela, parecia mais um tumor. Jogou óleo por cima da mancha, colocou no fogo a frigideira e quebrou um ovo dentro. Marcela veio do quarto e sentou à mesa.
- Tô cansada. - ela disse
- Só pode ser piada...
- Não, acho que é fome.
- Marcela, você não gosta de nada que tem aqui. Não gosta de ovos, não gosta de frutas e nem das bolachas que estão no armário. Nada serve pra você.
- Idiota.
- Pega uma cerveja. Depois vamos ao mercado.
- Não quero mais saber.
- Ok. Foda-se.
- Eu vou embora.
- Vá. Você está dois dias atrasada.
Marcela fechou a cara, correu para o quarto. Dava para ouvi-la juntando suas coisas, vestindo a roupa enquanto balbuciava alguns insultos. O estalo que fazia a velha maçaneta da porta principal ecoou pela casa.
- SEU FILHO DUMA PUTA! ESPERO QUE VOCÊ SUBA SONAMBULO NO TELHADO, CAIA E QUEBRE TODOS OS OSSOS E MORRA! - Ela gritou, e bateu a porta.
Alex terminou a cerveja, comeu o ovo frito e voltou a dormir. Nada se comparava à tranquilidade de estar só, em meio aos motores na avenida. A própria respiração servindo de companhia, flutuando em meio à luz solar fosca que iluminava o quarto.
O romance se arrastou por mais duas semanas, mas só nos sábados e domingos.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Epílogo

Não é de hoje, não é novidade. O que eu tiro daqui é só cansaço, é apenas uma coisa que vem e volta com o tempo, com o clima e o ar, no cheiro do orvalho em meio ao odor cinza da cidade ou no oco do silêncio dessa madrugada crua e insone. Também não é tristeza da mais pura, não. Longe disso. É só essa ideia que parece uma faca afiada e certeira, dando pontadas na boca do estômago. Hoje até meu travesseiro é uma navalha. Eu encosto a cabeça e sinto o couro rasgando por dentro e por fora, mas isso nem importa tanto, já que há tempos carrego um peso extra pra dormir. Acho que o pior peso de todos é acordar e antes mesmo de sair da cama, já mergulhar de cabeça nessa piscina vazia que é a rotina incrustada nos dias. Isso é sair da cama, vestir-se, correr para o trabalho que você odeia ou finge gostar, receber uma merda dum dinheiro a cada mês e aguentar conversa batida dos colegas durante seis ou mais horas a cada dia. Achar tempo para os amigos. Ir ao mercado, rechear de porcaria o carrinho. Fazer turismo na TV mudando freneticamente os canais. Comprar roupa nova, celular novo, carro novo quando der. Tirar satisfação desse monte de lixo comprado que a gente na verdade mal precisa. Limpar a casa. Ir ao médico, dentista. Atender telefone, mandar sms ilimitada por causa do plano que você fez com a operadora. Ir ao banco pagar a fatura do cartão, as contas da casa e impostos. Fila nisso, fila nos mercados, nos cinemas, nos aeroportos. Intermináveis salas de espera. Pedágio na estrada. Pegar transito no frio, no calor, na puta que pariu. Às vezes transar pra pensar que tem uma válvula de escape. Até dormir demais cai na rotina. O lado bom é que dormindo a gente nem percebe. Isso, dia após dia após dia. Mas tudo bem, a gente se acostuma, e acostumar-se a tal coisa também é rotina. A vida é pura adaptação, tem quem diga. E de certa forma, já estou mesmo adaptado. O problema na verdade nem é tanto esse monte de coisas que estão aí, pra ficar. Não é essa ilha tão grande que a gente tem que percorrer, dando voltas. O problema é só ausência.
Sabe que outro dia sonhei que estava morando em Barcelona e as coisas estavam indo realmente bem, era aquele inverno gostoso de fim de ano e eu encontrava você, assim ao acaso, caminhando pelas Ramblas no meio de todos aqueles cafés e lojas de pequenos souvenires e estátuas humanas excêntricas. Os mesmos olhos castanhos, bem escuros e críticos e os passos leves, que vinham como uma neblina pronta para me abraçar. Acordei enquanto inclinava-me para jogar uma moeda para uma das estátuas, e quando olhei para o relógio no criado mudo, percebi que só tinha dormido três horas. Grande merda o sono, nessa altura a única coisa que eu podia fazer era calçar os chinelos e dar uma espiada no quintal. Fumar um cigarro, pegar algum livro do meu escritor favorito. Ficar ali, uma ou duas horas, junto com a minha cretinice. É assim que venho parar aqui, com uma carta na mão, um texto, qualquer merda dessas que nunca vão sair do lugar.
Ah, pequena. Podemos remar em correntezas diferentes, mas só queria dizer que sinto falta da alegria irresponsável que eu tinha com você; até mesmo dos relâmpagos que por vezes, muitas vezes, saltavam entre as falhas. Eles também foram esplêndidos.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Dia de limpeza

Era uma terça feira de muita chuva. O chefe não aparecia na empresa durante as terças e sempre era um dia calmo na corretora. Trancado em sua sala, Oscar fumava um cigarro. Um pouco das cinzas caiu em cima da documentação de um cliente, ele assoprou tudo para o chão e deu uma espalhada com o sapato. O telefone tocou, era uma chamada da sala 23.
- Ei, Toni. Qual o problema?
- O homem está subindo.
- Quem?
- Sr. Marcone.
- Mas hoje não é terça?
- Mas ele está subindo.
- Oh merda. - Oscar desligou
Tentava esconder o cinzeiro quando a porta se abriu. O barulho dos paços do Sr. Marcone fazia parecer que ele estava calçando uma espécie de tamanco plataforma, porém continuava baixo como uma criança de doze anos. A sala fedia a cigarro, Oscar pousou o cinzeiro na mesa e foi abrir a janela.
- Deixe estar - disse o Sr. Marcone.
- Aconteceu alguma coisa? Hoje é terça...
- A política da empresa proíbe fumar no horário de serviço, independe do dia da semana... Mas não é por isso que estou aqui.
- Algum problema?
- Qual a sua relação com Bernadete, a recepcionista?
- Bem, às vezes almoçamos juntos.
- Só isso?
- Sim.
- Ela me disse que um dia você foi até a casa dela...
- Fui, mas ela me pediu para ajudar a carregar um fogão da casa da mãe até lá. E como tenho uma picape...
- Você sabe que não são tolerados relacionamentos amorosos entre os funcionários, não é?
- Não há relacionamento, sou casado, lembra Sr. Marcone?
- Bernadete me disse que você lança olhares estranhos para ela a todo o momento.
- O que? Isso é um absurdo!
- É melhor começar a juntar suas coisas, Oscar.
- Mas eu trabalho aqui há quinze anos. QUINZE ANOS!
- A política da empresa é muito clara...
- MAS ISSO É UM ABSURDO!
- Olha, se quiser posso fazer boas recomendações de você e logo arrumará outro emprego, agora por favor, seja o bom profissional que todos sabemos que você é, junte suas coisas e saia daqui sem dar uma palavra com Bernadete.
Oscar passou pela recepção carregando suas coisas, encarou Bernadete com o canto dos olhos. Tinha vontade de pular naquele corpo magro, branco e sardento e enche-lo de pancada, mas permaneceu calado e em linha reta em direção a porta, precisava de uma maldita recomendação. Cruzou o estacionamento até sua picape, o citroën do chefe estava parado logo ao lado. Entrou no carro, acomodou as coisas no banco do passageiro. Toni ligou.
- Ei, cara. Sinto muito.
- Oh, tudo bem. Marcamos de beber algo qualquer dia, Toni. Eu esqueci umas coisas no meu armário, você pode guardá-las para mim?
- Não vai ser possível, eles foram rápidos e já fizeram uma limpeza na sua sala, jogaram fora tudo o que você deixou. Eu estou arrumando minhas coisas agora.
- Puta que pariu. Mas como assim arrumando suas coisas? Foi demitido também?
- Deixe-me contar a novidade. Fui promovido! Agora ocupo o seu lugar. Isso não é legal? Tenho que desligar, eu te ligo mais tarde para tomarmos algo e falarmos sobre isso.
- Olha, Toni, vai se foder. Vai tomar no olho do seu cu! FILHO DA PUTA!
Desligou e arrancou com o carro e destruiu o retrovisor direito do citroën. Estava possesso; pro diabo com a política da empresa. Quinze anos enterrados na merda, servindo de fantoche e para quê? Aguentar ingratidão atrás de ingratidão. Era isso que pensava Oscar, a gente vem ao mundo para servir de boneco e o nome que dão pra essa coisa toda é política. Ele não sabia a quem queriam enganar, mas estavam conseguindo.

Oscar chegou a casa, guardou a picape na garagem, enxugou os pés no tapetinho amarelo e abriu a porta. O cheiro de água sanitária misturado com álcool logo inundou suas narinas. Susan deu um salto do sofá, seus 130kg divididos em pouco mais de 1 e 63 de altura fizeram as paredes tremer, a cabeleira loira, espichada até os ombros balançou como folhas ao vento. Ela espirrou álcool nos sapatos do marido.
- Tire os sapatos. Quantas vezes tenho que dizer?
- Querida, o chão foi feito para ser pisado. Caso o contrário flutuaríamos...
- Você pode pisar de meias. – borrifou mais do álcool pra cima de Oscar.
Ele já ia encostando os sapatos num canto perto da porta quando a mulher interrompeu, aflita.
-Oh, espere! Tire essas meias também, elas estão imundas! Você é um porco, eu me casei com um porco. Por que, Deus?
- Está chovendo, as coisas estão todas úmidas...
- Você vai infectar a casa, vamos adoecer e morrer. É isso que você quer?
Oscar tirou as meias. Susan saiu correndo pela casa com um tubo de veneno e um pano na mão, ela disse que alguns insetos haviam entrado e não escapariam vivos. Ele resolveu fazer um lanche enquanto vivia seu pesadelo por mais um dia. Voltar para casa já era um pesadelo e agora isso, estava desempregado e traído por Toni e Bernadete, aquela vadia; que olhos verdes enganosos ela tinha. Até o Sr. Marcone, o filho da puta que esteve ao seu lado durante quinze anos resolveu deixar a mascara cair.. Que vida de merda estava fadado a levar. Por um instante se imaginou na áfrica, metido num campo de refugiados em algum lugar do Quênia, mas isso não amenizou sua preocupação, só o fez afundar ainda mais na perversão do ser humano. Estava deprimido.
Não sabe ao certo quando ou porque a mulher ficara assim, com essa paranoia toda. Já faz uns dois anos que não tem paz dentro da própria casa com a mulher comendo e limpando sem parar. Fazer compras é um tormento, ele quase poderia alimentar o mundo todo com os gastos em mercado.
Não pode lembrar-se das crises de pânico e limpeza da mulher e da forma como ela quase morre quando estão juntos na rua, ou quando ela resolve ir ao mercado usando luvas e mascaras. E os teatros, os malditos teatros que ela faz quando se joga contra as paredes e bate com a cabeça no chão ao encontrar uma gota de mijo na borda da privada, ou quando ele derruba café na toalha da mesa, entre outras coisas... Peidar na cama com ela por perto então, nem pensar. Como se ela não peidasse enquanto dormia. Estava louca e hoje ia passar um bom tempo mais louca ainda, atrás dos insetos.
Depois de terminado o lanche, Oscar levou o prato até a sala, com todo cuidado para não ser visto, passou na ponta dos dedos sobre o tapete persa de Susan. O tapete era só mais um problema, uma mancha, uma cor a mais além dos traços próprios dele e a casa vinha a baixo e a mulher agonizaria a troco de nada, mais uma vez. Estava preste a ligar a TV para assistir as noticias do esporte quando Susan apareceu bufando, sua pele clara ficava vermelha com facilidade e os cabelos loiros pareciam até mais brancos quando ela estava com raiva.
- Seu miserável! O que é aquela mancha amarela na toalha da cozinha? E você está comendo aqui, em cima do meu sofá? Nem eu como no sofá, porque ODEIO isso.
- O sofá é nosso...
- Mais um motivo para você cuidar bem dele, seu porco nojento!
- Susan...
- Você não me ama, higiene é a única coisa que te peço, a única! Você não me ama!
Oscar levantou com o prato e o lanche e disse:
- Olha, amor... Não é melhor procurarmos um psiquiatra? Pode ser bom para você... Estou tendo um dia difícil e ainda tenho que chegar em casa e aguentar essa ladainha toda. VOCÊ ESTÁ ME MATANDO DIA APÓS DIA, SUSAN.
- O que? Está me chamando de louca? O louco aqui é você! Quem é que gosta de viver na imundice? Seu canalha, não tem respeito pela sua mulher?
Ele ia levando tudo para a cozinha, quando encarou o pequeno vaso de violetas que ficava junto ao telefone. Ouviu a mulher resmungando "dia difícil, mal sabe o que é dia difícil, esse pilantra." Ela tinha que acordar dessa doença por bem ou por mal. Ele sabia que ela pararia de gritar se derrubasse o vaso, ela teria mais uma crise de pânico e tão logo se acalmaria. Então esbarrou propositalmente no vaso. La se foi tudo de encontro ao piso branco e brilhante com cheiro de água sanitária. Terra, flores, vaso, prato, pão, presunto, queijo, mostarda tudo condensado numa poça colorida... Oscar agora encarava a expressão raivosa da mulher com um sorriso de canto. Expressão essa que foi murchando, desaparecendo como uma rosa no frio, indo ao encontro do arco-iris de sujeira formado no piso. O pânico tomou conta do rosto de Susan, ela calou. Começou a tremer e colocou as mãos no rosto. Oscar por fim, disse:
- Esses seus ataques de pânico não me enganam mais. Vamos querida, pare com isso, era só um vaso...
Susan não respondeu. Caiu de joelhos e em seguida desabou babando sobre o tapete persa, de 3.600 reais.
- Vamos lá, isso já foi longe demais. Você está babando a porra do tapete todo, querida. Não quer sujar seu tapete persa com saliva, quer? Os germes vão entrar pela sua boca, levanta daí meu amor.
- Aaaargh, aaaaaah, uuuuh – respondeu Susan apertando intercaladamente o peito e o pescoço
- Você precisa de ajuda. Entenda de uma vez... Se não for ajuda profissional, que seja divina. Ouviu? Espero que os deuses estejam ouvindo também...
- Aaaaaaargh, aaaaaarght
- Ora, foda-se. Fique aí então. Vou ao mercado comprar umas cervejas.

Voltou duas horas depois. Uma mosca caminhava tranquilamente sobre os lábios levemente arroxeados de Susan. Oscar pulou toda a sujeira e o corpo da mulher , deixou uma marca de barro no tapete e foi até a cozinha, abriu uma garrafa. A mosca agora passeava pela casa. Ele sentou-se no sofá. Soltou um peido, derrubou um pouco da cerveja, procurou na TV as noticias do esporte, mudou para um canal de filmes. O telefone tocou.
- Alô?
- Oscar Rocha, corretor?
- Ele mesmo.
- Sou Aline Quaresma da L&A corretora. Estamos aqui com uma recomendação, gostaríamos de contratá-lo de imediato.
- Oh, que ótimo, então para quando fica a entrevista?
- De imediato, senhor. Já estamos com o seu currículo e não será necessária entrevista.
- Mas isso é maravilhoso. Muito obrigado.
- Nos vemos amanhã de manhã, as 8:00. Até logo.
- Até logo.
As coisas pareciam começar a voltar ao normal, enquanto a mulher continuava deitada, feito uma colina enraizada no tapete. A mosca voltou a pousar em seu rosto, Susan nada fez. Agora Oscar estava ansioso pelo novo emprego, e também por conhecer Aline, que tinha uma voz adorável. Tudo o que ela falava parecia poesia. Ele então suspirou.
- Vamos meu bem, acabou a brincadeira! Ainda preciso te contar sobre o trabalho...
Susan nunca mais respondeu.

sábado, 2 de junho de 2012

Prepare seus ouvidos

eu tentava dormir as 2:30 da manhã
quando meu celular tocou,
consegui alcança-lo
com muito custo

"ela me deixou" disse uma voz
"ela me deixou de novo,
aquela puta"
"foda-se" eu respondi e
desliguei.

virei-me para o outro lado
acomodando a cabeça no travesseiro
tentando fabricar um sonho bom e
o celular tocou novamente -
eu atendi

"não desligue, fale comigo!" era a mesma voz
"ela me deixou, cara"
num suspiro percebi que o dono da voz era Allan,
ele estava bebado demais e soluçava
"olha, todas elas se vão" eu disse

"você está com uma voz péssima, cara,
o que está fazendo?"
"estou tentando dormir"
"mas não desligue agora, eu vou morrer,
ela entrou no carro de outro e foi embora"
alguma música tocava ao fundo e eu podia ouvir
pessoas conversando.

"escute Allan, você está numa festa, arrume outra garota"
"eu vou morrer" começou a chorar
"compre outra cerveja então"
"oh, boa ideia"
ele desligou.

Allan precisava saber,
não importam as novas manhãs
nem as garrafas,
é adeus o que
mais vamos ouvir
durante toda a
vida

por fim fechei os olhos e dormi -
ao meu lado a velha ausência
que nunca se vai.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Eu canso de ver as bocas abrindo e fechando

era um maldito sábado
de um maldito feriado prolongado e
me convenceram a sair de casa.

fomos parar em um sitio,
estava anoitecendo e chovia.
eu não me sentia animado o suficiente
e havia acabado de romper um relacionamento
turbulento ao ponto de me fazer querer ficar
entrincheirado por um ano.
alguém que já estava bêbado
repetia sem parar "você vai ao show com a gente"
"não tenho dinheiro" eu disse, "não arrumo emprego,
estou ficando sem dinheiro até pra cachaça"
"mas eu pago, você vai com a gente"
"ok" respondi, porque sabia que no dia seguinte
isso já não teria mais acontecido

estavamos todos sentados em uma mesa
conversando sobre coisas que eu
fingia interesse e um outro bêbado igual ao primeiro
contava sobre três garotas que ele não podia foder
por causa do amor pela namorada.
"mas elas querem, as três querem e eu também" ele dizia.

com o auxilio de uma garrafa de rum
eu ficava imaginando o quanto meus
próprios amigos me cansam e lutei
dentro da minha cabeça para tentar descobrir
o que há de errado comigo ou
com eles

o fato é que ainda
não descobri.

mas lá a batalha estava dura,
vomitei duas vezes sem abandonar o copo
e sentia minhas palavras e meus
ouvidos morrerem de fome e
frio enquanto se arrastavam por
pastagens e casas queimadas em meio a nevasca
como se fizessem parte do exercito de Napoleão ao
tentar domar a Rússia.

concentrei-me na garrafa
e logo retirei o que sobrou do exercito
para uma cama com um
colchão gasto,
solitário em meio as vozes.

eu sabia que assim
estaria bem,
pelo menos
até a hora de
despertar

sábado, 28 de abril de 2012

Versos para uma madrugada insone

4:57 e alguns carros passam
por entre a iluminação alaranjada da rua
e não me sinto muito bem;
a novidade é que algumas raras vezes posso abrir a janela
para que ela entre cantando sua mais bonita
canção.

esse é o dia,

e eu mantenho o silêncio
pelas minhas próprias palavras tristes
e aperto o peito com as duas mãos
enquanto um cachorro late ao longe
desesperado e talvez
faminto

estou deitado com
minhas pernas envoltas em cobertas
e esse não é o mesmo frio
de anos atrás, nem as vozes são as
mesmas

"não é tão ruim quanto
podia ser", penso afinal.

apenas o cachorro ecoa
melancólico e tão longínquo quanto
flocos de neve
e
montanhas brancas
com cabanas feitas de
troncos de pinheiros
e um machado pendurado
ao lado do
sofá

e eu mantenho o silêncio
pelas minhas próprias palavras tristes,
mas hoje abri a janela para esse pouco de felicidade
caminhar por essa escuridão e
se aquecer também.

é que eu gosto de
me sentir curado as vezes
mesmo que essa cura
seja tão breve quanto
uma dose de rum.

existem dias que a alma de um homem
morto ou não,
precisa voar

acompanhar a correnteza
flutuar pelo azul,
inexorável.

domingo, 22 de abril de 2012

Você, Vinicius

Você está parado agora, Vinicius. É só a sua mente que navega por outro mundo. Seu barco é sua vida escura, podre, suja. Sua jornada é para lugar nenhum. Você apenas da voltas por esse plano já conhecido em outras épocas que é pequeno e vazio, triste como um pássaro acorrentado, preso, ferido em uma gaiola. Não existe cheiro de mar, nem fumaça por perto. O álcool longe de suas mãos, as pílulas, seu maldito remédio levitando ao lado de grossas manchas de enxofre. Você se sente perdido e uma sensação de afogamento te inunda os olhos e os ouvidos e a boca e o resto do corpo. É só a sensação, porque não vai te matar. Você vai viver com isso Vinicius, vai dormir com isso. Vai carregar isso, afogado.
Nesse lugar existem prédios ao redor de ti e muitas janelas, pessoas olham por cada uma delas. Essa gente não tem olhos, os rostos de todas elas apenas se transformaram num aglomerado de massa disforme, uma mistura de carne moída e filetes de pele. Você encara essas cabeças, essas carcaças quase desumanas. A atmosfera tem gosto de ferro, e o vento vem pesado como chumbo. Parece que não há diferenças entre aqui e aí.
O relógio não anda, os ponteiros estão enferrujados e sua sombra também parou no tempo, assim como as coisas que você tentou fazer e fracassou. Você desistiu de tudo o que queria, deixou, esqueceu, esquivou. Até o amor, o verdadeiro, você deixou escapar. Veja como você ama aquela garota, como ela é importante e como você a fez desaparecer, assim mesmo sem querer, mas o sem querer não justifica burrice, Vinicius. Ela tinha desligado a marcha fúnebre que nunca para de tocar em sua cabeça enquanto você vive, e o que foi que você fez? Estragou tudo, triturou isso como se fosse nada. Você se arrepende, você se contorce de dor quando deita na cama e pensa nisso, mergulha nessa dor condensada em delírios e sonhos. É claro que sente saudade e sabe que é só o começo. Voltar no tempo, você quer. Já é tarde, Vinicius. Parece que sua montanha era de areia, afinal, e virou um gigantesco deserto morto e seco, com esse vento que te levou até a consciência.
Agora tem um sol nascendo lá fora, não é visível porque o tempo está nublado. Também não faz diferença. Por mais amarelo e brilhante que ele esteja, você nunca vê cor, nunca vai ver. Você mal sabe o que veio fazer nesse planeta. Por que nasceu? Por que você? Por que assim? Não tem que saber. Agora tanto faz, Vinicius. Você volta pra esse mundo, feito uma alma penada. Alma afogada. O relógio está correndo, porque agora você está no mundo real, e tem um sol lá fora. Você está metido nisso, quer queira, quer não. Você não é um moleque, é um homem. Homens fazem coisas grandes e você está aí vivendo de mentiras, mentindo pra você, mentindo para essa nova moça que está ao seu lado, para esse compromisso que caiu do céu como uma bomba, fruto da sua cabeça defeituosa, da sua burrice. O que ela tem a ver com isso? Seus problemas são só seus, você não tem o direito de passar o seu sofrimento para os outros, mas não controla isso. Você faz um mundo de gente sofrer com você, sofrer do seu sofrimento. Você até pode gostar dela, mas sabe que não é da forma como ela espera. É por isso que você está estagnado, provando dessa coisa sem sal. Você já está morto. Só te falta uma lápide, Vinicius.
Você está enlouquecendo não é mesmo? Nunca vai escapar desse ciclo vicioso, não quer nem abrir a janela. Por que você levanta? Poupe-se. Esqueça a terapia. Esqueça o sistema, os bancos, as contas, o dinheiro, o trabalho, o sucesso, o fracasso e a merda do futebol e a politica também. Esqueça a loteria, os malditos shoppings e suas vitrines de bosta nenhuma, os automóveis. Os bares, as festas, o lixo da televisão e suas emissoras de merda, cus abertos em forma de satélite. Esqueça a internet, os video games, os lugares bonitos e os feios também porque as coisas boas são raras e não valem a pena quando está tudo colocado na balança. Esqueça a podridão, esqueça a fome mundial, a miséria, o amor, o ódio, o câncer e as doenças todas. Viver é uma doença maior, suprema. Mas você não pode, não vai esquecer da sua própria cabeça. Seu crânio comprimindo seu cérebro como se fosse uma morça dessas de bancada amassando um bolo de carne, uma mera bolota de sebo estourando em partículas minúsculas iguais a confetes. Você não dorme há dois dias, aqueles cochilos breves são quase piscadelas momentâneas. Não arruma emprego, nem encontra mais os amigos. Você é um lixo que não tem dinheiro nem para própria cachaça. Ta aí o seu resumo; e quem se importa? Foda-se, Vinicius, você não precisa aturar isso, nem assistir a humanidade se tornar radiotiva e caminhar cada vez mais fundo nesse buraco energético. Não precisa ver essas pessoas todas explodirem em ruína, não precisa sofrer de amor, tentar erguer alguma coisa que não quer ou carregar culpas, mesmo sendo responsável. Esqueça a Responsabilidade. Acabou, acabou, acabou, é o que pisca na sua cabeça e diante dos seus olhos agora. De fodido já basta você.
Ainda existe aquilo no guarda roupas, você sabe, essa merda recém adquirida, o fruto de uma pequena economia secreta, muito bem guardada. Por que não usa suas mãos para algo que presta pelo menos uma vez, Vinicius? Vamos lá, presenteia-te com essa dádiva. Pega essa coisa e segura firme, como se fosse seu coração e talvez seja mesmo. Carregue-a, não precisa mais que uma bala. Coloca isso na boca, encosta o cano bem no céu da boca até o gosto de metal se espalhar pela lingua, assim, aperta forte até fazer doer, até seus olhos de nuvem negra piscarem em sintonia com essa canção que não para. Você sabe o que é dor Vinicius, isso você conhece muito bem. Aperta esse gatilho Vinicius, não durma agora, aperta esse gatilho. Larga essa caneta, você não precisa escrever nada, uma despedida? Não, nem uma carta se quer. Guarde o discurso falido para o inferno. A única coisa que você precisa agora, é de um buraco do tamanho de uma laranja bem no meio da cabeça.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Poema pascal

encontrei Samuel no mercado semana passada.
estávamos na fila do caixa e enquanto carregávamos
nossas cervejas em caixas de papelão,
ele desviou o olhar para um ovo que havia sido abandonado
junto à uma bancada que sustentava
inúmeros vasilhames de plástico.

"sempre tive nojo da pascoa", ele disse
"por quê?", perguntei, mais interessado
na integridade das cervejas
"são esses ovos de chocolate, cara.
olhe o tamanho deles,
eu quando criança ficava imaginando
um coelho botando aquilo pelo cu,
aquele ânus pequenino no meio da penugem branca
desabrochando como uma flor.
um grande e gigantesco girassol de merda
expelindo um ovo gigante"
"HAHAHAHAHAHAHAHA", peguei um pacote de chicletes
e joguei dentro da caixa

nesse momento, uma mulher de olhos claros e cabelo caramelado,
bastante esbelta, com a bunda empinada e um vestido
vermelho, de renda,
uma dessas que vão ao mercado
como se subissem em uma passarela de moda,
sem saber que na verdade são a atração principal
da casa dos horrores, saiu da nossa frente tapando
as orelhas do filho e foi em direção a outra fila.

"é serio", Samuel continuou
"esse lixo devia ser proibido,
ainda bem que aprendemos: coelhos não botam ovos.
se não a coisa toda seria pior.
juro por Jesus, que vai morrer daqui dois dias,
que eu vomitava quando minha mãe colocava
um treco desses na minha frente."
"HAHAHAHAHAHAHA"

“eu só sentia que tinha que me salvar”, fez uma pausa para
alcançar um pacote de amendoim “eu sempre senti isso,
mas ninguém nunca se salva”, atirou o pacote dentro da caixa,
"nem disso, nem de nada nesse mundo. terrível essa existência."
"salvação só existe mesmo depois que a gente morre,
no enterro. e até lá, ainda podemos beber", eu disse,
tentando encerrar a conversa.

eu estava há muito tempo dentro do mercado, cercado de gente e
mais gente, suas vozes terríveis em minha cabeça,
seus corpos se enroscando nos corredores, calor e
aquele teatro mundano todo cheio de cores falsas,
o que me deprimia e aumentava minha sede.
essas são as pessoas e isso é o que elas fazem
comigo.

a vez de Samuel chegou e nos despedimos enquanto
ele jogava suas cervejas e o pacote de amendoim
para dentro da caixa outra vez.

voltei ao mercado mais tarde
e fiquei olhando para o túnel de ovos de pascoa
antes de correr novamente para a sessão
de bebidas.

o filho da puta
tinha razão,
me parece que por mais que me sinta,
não estou sozinho afinal.

a insanidade, as vísceras,
estão todas jogadas por aí
pelo ar, nos absurdos do mundo
e
nos ovos de pascoa
também

sexta-feira, 30 de março de 2012

(...)
Sarah rompeu o silêncio.
- Uma pessoa precisa de muitas coisas para que olhem bem pra ela, ou é simplesmente lixo.
- Eu sei, ela precisa ser estúpida o suficiente. O mundo exige muito disso.
- Você precisa se movimentar mais. Largar esse copo, sabe? Viver - ela disse enquanto pedia mais uma dose de conhaque com canela.
- Tem gente que só acha a vontade de viver depois que morre...
- Mas aí não é preciso achar mais nada, terminam-se as buscas.
- É por isso!
Naquele momento, brindamos a ruína e toda a merda que cercava nossas vidas empoeiradas, sujas e lamacentas. Uma sequência de fatos, a rotineira catástrofe humana e suas inutilidades e futilidades. Fome de alimento, fome de amor e dor; corpos fedorentos, podres por dentro. Brindamos ao homem como uma raça morta, e ao sono como única esperança.
- Que seja eterno, que seja eterno... - sussurramos, por fim.
A noite caía lá fora, e todo o resto caía também.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Das coisas

da morte e
das árvores contorcidas
em forma de monstro
da estrada cinza, da penumbra
no abismo

do seu sorriso,
do seu ódio paralelo
e de todo o arrependimento discreto
vou lembrar

minha vida sem luz
na coisa toda que é a existência
na ausencia do toque, do tato
vou lembrar que mesmo sem sorrisos
sorri por você uma vez,
duas, três vezes
e ainda, sem querer, desculpa
se falhei.

de quando te conheci
por pele, por corpo
por gente e nunca, jamais, quis
abandonar

era noite, eu sei
era quase isso e melhor
não podia ser.

do buraco e
da terra, das cinzas todas
que você jogou na minha cara,
minha mente humana sem sinal do real
vou lembrar

da sua existência pequena
tão grande para mim,
e eu formei tantos planos,
confiei sozinho e
paguei o preço.

das vezes tentadas,
e ganhadas.
das vezes perdidas por
orgulho de quem,
agora não importa

das salivas em combustão,
da rodoviaria suja que
não podia, em branco,
passar e ainda a presença quase oculta,
os abraços de alguém que
não pode julgar, culpar

de alguém que não terminou, mas
afogou, afoguei, matei em termos
por não querer, não resistir e
ainda, diria Cazuza,
nessas horas pega mal sofrer

do meu fim eterno,
dos fantasmas e
dos sorrisos
vou lembrar

desse poema segundo,
pois o primeiro só a mim (e a você)
pertence.
da sua ignorância latente, sim
porque existe essa marca qualquer em mim também

num desabamento continuo de letras,
palavras mornas e mortas e a maneira
como te amo, te amarei
vou lembrar

como um tigre lembra da presa
na seca, no mais fundo vazio
do espírito,
de você e de mim, se acabou assim
guria
vou lembrar.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Você, Cesar

Seu nome é Cesar Costa Magno, mas com o passar dos anos a maioria resolveu te chamar de Cezinho. Você não sabe a origem do apelido, nem mesmo lembra quem ao certo o inventou, mas tem certeza que o odeia e nunca se viu em posição de recusa-lo, apenas para preservar seu autocontrole sobre sua personalidade insana e enlouquecedora. É só vez ou outra que ela desliza de seu interior para as luzes do mundo, geralmente em seus momentos mais solitários, pois não gosta de chamar a atenção, não suporta olhos presos em seus movimentos. Você prega a invisibilidade e é fadado a viver num mundo de aparências. Todos esses patifes e suas autogabações causam coisas dentro de ti; é a morte deles que você espera, que você quer provocar. Você vê futilidade em tudo, Cesar. Você não suporta superioridade ao seu redor, não quer sentir-se inferior de forma alguma, mas anda por aí com o fracasso rabiscado nas costas. Pode ser coisa do seu psicológico e até uma fraqueza maior entre todas as suas fraquezas ou simples capricho do seu eu maléfico. E que palavra forte essa, você pensa, mas entende que todos necessitam de coisas más e boas para chegar ao autoconhecimento, e você fala disso como um professor. Autoconhecimento você já teve o suficiente e sabe que não vai mudar.
Você está assistindo um filme agora. Deitada ao seu lado se encontra sua nova namorada, com os braços ela parece dar um nó em seu tronco. Você sente calor, mas a garota quer estar sempre próxima e ela sorri uma porção de vezes também. O nome dela é Pâmela e ela acredita nos seus falsos sorrisos, Cesar. Você tem a sua certeza de que nunca ou raramente vale a pena sorrir verdadeiramente. Nunca se sentiu capaz de esboçar sorrisos aos ventos e a maioria faz isso. Você sempre se pergunta: Por quê? Você não sabe e continua odiando com todas as forças os sorrisos em excesso. Também não está acostumado com os relacionamentos e nem deve. Você sabe que no fim, pouco importa a diferença em suas expressões de felicidade, ou a maneira com que te olham e até mesmo seus perfumes exalando de suas peles suaves e incomparáveis. Uma mulher sempre está pronta para ir embora, para cavar seu tumulo e te jogar lá dentro. A pergunta incansável que vem até sua cabeça é: Quantos túmulos teria de ter até a morte? Você não pode dizer uma quantidade exata, mas pode torna-los mínimos. Relacionamentos quando não são cansativos, são passageiros e vice-versa, ou ambos.
Pâmela tem amigos que você odeia sem nem mesmo os conhecer. Não há nada a ser feito perante isso, e você aceita os fatos, mas não confia plenamente na mulher e acha que nunca vai confiar. Tem sempre uma pontada em seu cérebro, uma coisa que quer inibir seu sistema respiratório e te incinerar por dentro como um cadáver no crematório. Pâmela também ficou amiga de Tomás, de uma hora para outra. Na verdade foi Tomás quem a procurou, o que te deixa mais irritado e cheio de ódio que qualquer outra vez em sua vida. E não é só por isso, você sabe que não é a primeira vez que Tomás vai atrás de uma mulher sua.
Tomás tem todo o jeito de modelo, com suas malditas tatuagens, ao contrário do seu, desengonçado e magricelo. Você sabe que não tem inveja, inveja é uma coisa muito baixa, você só admira o podre e quer acabar com o belo, também não é só isso, outros dos seus ódios são essas pessoas que falam muito para o pouco que fazem, ele é assim. Sua implicância perante Tomás e todas as coisas que ele faz só aumenta. A mania de aparecer em todos os lugares que ele tem, seu rosto bonito desafiando sua vontade de destruir coisas belas, Cesar. Aquela mania dele, de querer parecer malvado nas redes sociais, mesmo distribuindo bondade por todas as frestas do corpo. Parece mesmo que agora é moda ser mal na internet, você pensa. E bancar o revolucionário também. Imagens sobre a politica são tão inúteis quanto os balbucios de um padre numa igreja, porra. Tudo o que ele faz te causa náuseas de ódio, todas essas coisas estúpidas que acabam vindo dele, com aquele corpo enfeitado. Todos ao redor achando isso uma maravilha, aplaudindo a falsa moral e aquelas atitudes todas que nada condizem com as palavras que saem da boca, inclusive Pâmela. Isso te leva á loucura, te leva ao mais profundo abismo da raiva. Pâmela nunca perceberá, e isso nunca te deixa em paz, não sai da cabeça. Ele ainda se faz de seu amigo, Cesar, e você ri. Ri por fora, mata por dentro. É você se escondendo mais uma vez, tapando suas feridas na escuridão do seu espirito em desespero, da sua vontade translúcida de acabar com toda essa palhaçada. Reconhecimento desmerecido para os vermes é o que mais existe no planeta e isso paira bem no fundo do seu encéfalo agora.
O filme já está no final e você o passou navegando em sua consciência. Pâmela em seus braços, seus pensamentos naufragando na realidade. A TV, os rostos carregados de morte, a rotina, o trabalho que nunca basta, o planeta transformado em máquina, a chaga recente que aquela outra mulher lhe causou que nunca cicatriza. Tanto para odiar, pouco para amar é o que resume a sua vida. Você vê com antecedência as coisas boas tomarem distancia e dissiparem na atmosfera. Você sente que tudo te deixa para trás e agora até seus poemas que nunca serão reconhecidos resolveram fugir, Cesar.