segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Ponte aérea

O voo era o TP97 com destino a Lisboa, e o dia em Campinas estava negro como se quisesse virar noite prematuramente. Eu subia no avião com pés pesados, enquanto passava todos aqueles degraus da pequena escada. Ao meu lado uma das turbinas implorava aos céus para se tornar um buraco negro e eu pensei “é, estamos do mesmo lado”. Não escolho, mas quase sempre sou colocado numa poltrona de alguma das asas e a vista daquilo tremendo, parecendo querer romper a qualquer momento me fascina, isso é, um desastre aéreo seria o suficiente para por fim em todas aquelas ideias que um dia surgem na cabeça e lá permanecem no outro dia e em todos os outros também. Essas ideias e vontades que nunca vamos concretizar. Acabaria também com todas essas outras coisas que nunca queremos deixar para trás, mas deixamos. Sem falar nessa minha dificuldade em me fixar em lugares, em coisas. E também meus pequenos e constantes erros que juntos se tornam maiores que o mundo. De todas as coisas que não suporto talvez a pior delas seja estar sempre no “quase” e isso acabaria também.
A tripulação saudava todos na porta. O piloto esbanjava um sorriso de tigre enquanto guardava no bolso as vidas de duzentas e tantas pessoas. Como seria isso? Qual a sensação de carregar tanta coisa assim por cima do mar? Sei que o “tanta coisa” já depende do ponto de vista. Eu nunca vejo muito enquanto levito por todas aquelas pessoas arrumando suas malas no bagageiro e apertando seus cintos de segurança e checando a programação de filmes.
Meu assento 28B ficava bem próximo aos banheiros, naquela divisória que tem uma cortina. Depositei minha bagagem de mão no maleiro, minha poltrona era a do corredor. Na janela sentava uma moça de cabelos loiros e compridos, bem magrinha; ela desligava o celular. Tinha olhos em tom castanho claro, bem vivos e um perfume suave como sua pele. Ela me recebeu com um sorriso, eu devolvi metade. Assustam-me as pessoas desconhecidas nos aviões, e seus olhos medindo aquilo que não tenho. É pavoroso pensar no que pode sair daquelas bocas e penetrar como fumaça pelos ouvidos durante o percurso todo. Difícilmente consigo me relacionar de forma saudável, mas não quero ser outra pessoa. É fácil saber o que não quero, é difícil querer alguma coisa.
A garota parecia muito tímida e carregava consigo um livro em francês. Hesitou varias vezes antes de abrir a boca.
- Oi. Ele treme muito? – Ela rompeu o silencio.
- Como? - indaguei
- O avião treme?
- Eu na verdade não sinto nada...
- É que é a primeira vez que voo... – Disse fazendo uma expressão serena e inocente e eu sorri de verdade pela primeira vez no dia.
- Quando atravesso o corredor do avião procurando minha poltrona com sua televisão portátil e suas revistas e manuais com guias de segurança, sempre olho das janela para as asas imaginando aqueles grandes pedaços de metal rompendo no ar como se fossem de papel, como se fossem ossos despedançando. Todos os gritos e pedidos de salvação começam a ecoar pela a aeronave. Uma mulher desmaia e cai, o carrinho da comida vem deslizando a toda velocidade com a inclinação projetada pela queda e atinge em cheio alguma cabeça desesperada. Malas e mascaras de oxigênio caem por todos os lados. Alguns pensam que o piloto pode fazer algo, mas não importa o quanto ele seja bom, vamos todos morrer. Outras ainda pensam num deus qualquer com poderes menores que o próprio nome, porque é isso que o medo faz com a maioria das pessoas. Nessa cena toda, eu apenas permaneço sentado em meio ao caos, tentando contar os segundos para o impacto. E guarde o pãozinho que vem junto com o almoço caso não comer, você pode ficar com fome depois.
- Que horror! Você é louco!
- Todo voo pede um acidente e eu sempre espero o meu, se é que ele ainda não aconteceu. Se parar para pensar que sua vida pode não passar de um mero acidente, o pior de todos, isso nem vai parecer tão terrível assim.
Ela virou para o lado e apertou o cinto como pediu a aeromoça. Não trocamos mais palavras durante o resto do voo, mas ela guardou o pão. Parecia mesmo uma boa pessoa, eu teria conversado um pouco mais.