sábado, 28 de abril de 2012

Versos para uma madrugada insone

4:57 e alguns carros passam
por entre a iluminação alaranjada da rua
e não me sinto muito bem;
a novidade é que algumas raras vezes posso abrir a janela
para que ela entre cantando sua mais bonita
canção.

esse é o dia,

e eu mantenho o silêncio
pelas minhas próprias palavras tristes
e aperto o peito com as duas mãos
enquanto um cachorro late ao longe
desesperado e talvez
faminto

estou deitado com
minhas pernas envoltas em cobertas
e esse não é o mesmo frio
de anos atrás, nem as vozes são as
mesmas

"não é tão ruim quanto
podia ser", penso afinal.

apenas o cachorro ecoa
melancólico e tão longínquo quanto
flocos de neve
e
montanhas brancas
com cabanas feitas de
troncos de pinheiros
e um machado pendurado
ao lado do
sofá

e eu mantenho o silêncio
pelas minhas próprias palavras tristes,
mas hoje abri a janela para esse pouco de felicidade
caminhar por essa escuridão e
se aquecer também.

é que eu gosto de
me sentir curado as vezes
mesmo que essa cura
seja tão breve quanto
uma dose de rum.

existem dias que a alma de um homem
morto ou não,
precisa voar

acompanhar a correnteza
flutuar pelo azul,
inexorável.

domingo, 22 de abril de 2012

Você, Vinicius

Você está parado agora, Vinicius. É só a sua mente que navega por outro mundo. Seu barco é sua vida escura, podre, suja. Sua jornada é para lugar nenhum. Você apenas da voltas por esse plano já conhecido em outras épocas que é pequeno e vazio, triste como um pássaro acorrentado, preso, ferido em uma gaiola. Não existe cheiro de mar, nem fumaça por perto. O álcool longe de suas mãos, as pílulas, seu maldito remédio levitando ao lado de grossas manchas de enxofre. Você se sente perdido e uma sensação de afogamento te inunda os olhos e os ouvidos e a boca e o resto do corpo. É só a sensação, porque não vai te matar. Você vai viver com isso Vinicius, vai dormir com isso. Vai carregar isso, afogado.
Nesse lugar existem prédios ao redor de ti e muitas janelas, pessoas olham por cada uma delas. Essa gente não tem olhos, os rostos de todas elas apenas se transformaram num aglomerado de massa disforme, uma mistura de carne moída e filetes de pele. Você encara essas cabeças, essas carcaças quase desumanas. A atmosfera tem gosto de ferro, e o vento vem pesado como chumbo. Parece que não há diferenças entre aqui e aí.
O relógio não anda, os ponteiros estão enferrujados e sua sombra também parou no tempo, assim como as coisas que você tentou fazer e fracassou. Você desistiu de tudo o que queria, deixou, esqueceu, esquivou. Até o amor, o verdadeiro, você deixou escapar. Veja como você ama aquela garota, como ela é importante e como você a fez desaparecer, assim mesmo sem querer, mas o sem querer não justifica burrice, Vinicius. Ela tinha desligado a marcha fúnebre que nunca para de tocar em sua cabeça enquanto você vive, e o que foi que você fez? Estragou tudo, triturou isso como se fosse nada. Você se arrepende, você se contorce de dor quando deita na cama e pensa nisso, mergulha nessa dor condensada em delírios e sonhos. É claro que sente saudade e sabe que é só o começo. Voltar no tempo, você quer. Já é tarde, Vinicius. Parece que sua montanha era de areia, afinal, e virou um gigantesco deserto morto e seco, com esse vento que te levou até a consciência.
Agora tem um sol nascendo lá fora, não é visível porque o tempo está nublado. Também não faz diferença. Por mais amarelo e brilhante que ele esteja, você nunca vê cor, nunca vai ver. Você mal sabe o que veio fazer nesse planeta. Por que nasceu? Por que você? Por que assim? Não tem que saber. Agora tanto faz, Vinicius. Você volta pra esse mundo, feito uma alma penada. Alma afogada. O relógio está correndo, porque agora você está no mundo real, e tem um sol lá fora. Você está metido nisso, quer queira, quer não. Você não é um moleque, é um homem. Homens fazem coisas grandes e você está aí vivendo de mentiras, mentindo pra você, mentindo para essa nova moça que está ao seu lado, para esse compromisso que caiu do céu como uma bomba, fruto da sua cabeça defeituosa, da sua burrice. O que ela tem a ver com isso? Seus problemas são só seus, você não tem o direito de passar o seu sofrimento para os outros, mas não controla isso. Você faz um mundo de gente sofrer com você, sofrer do seu sofrimento. Você até pode gostar dela, mas sabe que não é da forma como ela espera. É por isso que você está estagnado, provando dessa coisa sem sal. Você já está morto. Só te falta uma lápide, Vinicius.
Você está enlouquecendo não é mesmo? Nunca vai escapar desse ciclo vicioso, não quer nem abrir a janela. Por que você levanta? Poupe-se. Esqueça a terapia. Esqueça o sistema, os bancos, as contas, o dinheiro, o trabalho, o sucesso, o fracasso e a merda do futebol e a politica também. Esqueça a loteria, os malditos shoppings e suas vitrines de bosta nenhuma, os automóveis. Os bares, as festas, o lixo da televisão e suas emissoras de merda, cus abertos em forma de satélite. Esqueça a internet, os video games, os lugares bonitos e os feios também porque as coisas boas são raras e não valem a pena quando está tudo colocado na balança. Esqueça a podridão, esqueça a fome mundial, a miséria, o amor, o ódio, o câncer e as doenças todas. Viver é uma doença maior, suprema. Mas você não pode, não vai esquecer da sua própria cabeça. Seu crânio comprimindo seu cérebro como se fosse uma morça dessas de bancada amassando um bolo de carne, uma mera bolota de sebo estourando em partículas minúsculas iguais a confetes. Você não dorme há dois dias, aqueles cochilos breves são quase piscadelas momentâneas. Não arruma emprego, nem encontra mais os amigos. Você é um lixo que não tem dinheiro nem para própria cachaça. Ta aí o seu resumo; e quem se importa? Foda-se, Vinicius, você não precisa aturar isso, nem assistir a humanidade se tornar radiotiva e caminhar cada vez mais fundo nesse buraco energético. Não precisa ver essas pessoas todas explodirem em ruína, não precisa sofrer de amor, tentar erguer alguma coisa que não quer ou carregar culpas, mesmo sendo responsável. Esqueça a Responsabilidade. Acabou, acabou, acabou, é o que pisca na sua cabeça e diante dos seus olhos agora. De fodido já basta você.
Ainda existe aquilo no guarda roupas, você sabe, essa merda recém adquirida, o fruto de uma pequena economia secreta, muito bem guardada. Por que não usa suas mãos para algo que presta pelo menos uma vez, Vinicius? Vamos lá, presenteia-te com essa dádiva. Pega essa coisa e segura firme, como se fosse seu coração e talvez seja mesmo. Carregue-a, não precisa mais que uma bala. Coloca isso na boca, encosta o cano bem no céu da boca até o gosto de metal se espalhar pela lingua, assim, aperta forte até fazer doer, até seus olhos de nuvem negra piscarem em sintonia com essa canção que não para. Você sabe o que é dor Vinicius, isso você conhece muito bem. Aperta esse gatilho Vinicius, não durma agora, aperta esse gatilho. Larga essa caneta, você não precisa escrever nada, uma despedida? Não, nem uma carta se quer. Guarde o discurso falido para o inferno. A única coisa que você precisa agora, é de um buraco do tamanho de uma laranja bem no meio da cabeça.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Poema pascal

encontrei Samuel no mercado semana passada.
estávamos na fila do caixa e enquanto carregávamos
nossas cervejas em caixas de papelão,
ele desviou o olhar para um ovo que havia sido abandonado
junto à uma bancada que sustentava
inúmeros vasilhames de plástico.

"sempre tive nojo da pascoa", ele disse
"por quê?", perguntei, mais interessado
na integridade das cervejas
"são esses ovos de chocolate, cara.
olhe o tamanho deles,
eu quando criança ficava imaginando
um coelho botando aquilo pelo cu,
aquele ânus pequenino no meio da penugem branca
desabrochando como uma flor.
um grande e gigantesco girassol de merda
expelindo um ovo gigante"
"HAHAHAHAHAHAHAHA", peguei um pacote de chicletes
e joguei dentro da caixa

nesse momento, uma mulher de olhos claros e cabelo caramelado,
bastante esbelta, com a bunda empinada e um vestido
vermelho, de renda,
uma dessas que vão ao mercado
como se subissem em uma passarela de moda,
sem saber que na verdade são a atração principal
da casa dos horrores, saiu da nossa frente tapando
as orelhas do filho e foi em direção a outra fila.

"é serio", Samuel continuou
"esse lixo devia ser proibido,
ainda bem que aprendemos: coelhos não botam ovos.
se não a coisa toda seria pior.
juro por Jesus, que vai morrer daqui dois dias,
que eu vomitava quando minha mãe colocava
um treco desses na minha frente."
"HAHAHAHAHAHAHA"

“eu só sentia que tinha que me salvar”, fez uma pausa para
alcançar um pacote de amendoim “eu sempre senti isso,
mas ninguém nunca se salva”, atirou o pacote dentro da caixa,
"nem disso, nem de nada nesse mundo. terrível essa existência."
"salvação só existe mesmo depois que a gente morre,
no enterro. e até lá, ainda podemos beber", eu disse,
tentando encerrar a conversa.

eu estava há muito tempo dentro do mercado, cercado de gente e
mais gente, suas vozes terríveis em minha cabeça,
seus corpos se enroscando nos corredores, calor e
aquele teatro mundano todo cheio de cores falsas,
o que me deprimia e aumentava minha sede.
essas são as pessoas e isso é o que elas fazem
comigo.

a vez de Samuel chegou e nos despedimos enquanto
ele jogava suas cervejas e o pacote de amendoim
para dentro da caixa outra vez.

voltei ao mercado mais tarde
e fiquei olhando para o túnel de ovos de pascoa
antes de correr novamente para a sessão
de bebidas.

o filho da puta
tinha razão,
me parece que por mais que me sinta,
não estou sozinho afinal.

a insanidade, as vísceras,
estão todas jogadas por aí
pelo ar, nos absurdos do mundo
e
nos ovos de pascoa
também