quinta-feira, 21 de junho de 2012

Dia de limpeza

Era uma terça feira de muita chuva. O chefe não aparecia na empresa durante as terças e sempre era um dia calmo na corretora. Trancado em sua sala, Oscar fumava um cigarro. Um pouco das cinzas caiu em cima da documentação de um cliente, ele assoprou tudo para o chão e deu uma espalhada com o sapato. O telefone tocou, era uma chamada da sala 23.
- Ei, Toni. Qual o problema?
- O homem está subindo.
- Quem?
- Sr. Marcone.
- Mas hoje não é terça?
- Mas ele está subindo.
- Oh merda. - Oscar desligou
Tentava esconder o cinzeiro quando a porta se abriu. O barulho dos paços do Sr. Marcone fazia parecer que ele estava calçando uma espécie de tamanco plataforma, porém continuava baixo como uma criança de doze anos. A sala fedia a cigarro, Oscar pousou o cinzeiro na mesa e foi abrir a janela.
- Deixe estar - disse o Sr. Marcone.
- Aconteceu alguma coisa? Hoje é terça...
- A política da empresa proíbe fumar no horário de serviço, independe do dia da semana... Mas não é por isso que estou aqui.
- Algum problema?
- Qual a sua relação com Bernadete, a recepcionista?
- Bem, às vezes almoçamos juntos.
- Só isso?
- Sim.
- Ela me disse que um dia você foi até a casa dela...
- Fui, mas ela me pediu para ajudar a carregar um fogão da casa da mãe até lá. E como tenho uma picape...
- Você sabe que não são tolerados relacionamentos amorosos entre os funcionários, não é?
- Não há relacionamento, sou casado, lembra Sr. Marcone?
- Bernadete me disse que você lança olhares estranhos para ela a todo o momento.
- O que? Isso é um absurdo!
- É melhor começar a juntar suas coisas, Oscar.
- Mas eu trabalho aqui há quinze anos. QUINZE ANOS!
- A política da empresa é muito clara...
- MAS ISSO É UM ABSURDO!
- Olha, se quiser posso fazer boas recomendações de você e logo arrumará outro emprego, agora por favor, seja o bom profissional que todos sabemos que você é, junte suas coisas e saia daqui sem dar uma palavra com Bernadete.
Oscar passou pela recepção carregando suas coisas, encarou Bernadete com o canto dos olhos. Tinha vontade de pular naquele corpo magro, branco e sardento e enche-lo de pancada, mas permaneceu calado e em linha reta em direção a porta, precisava de uma maldita recomendação. Cruzou o estacionamento até sua picape, o citroën do chefe estava parado logo ao lado. Entrou no carro, acomodou as coisas no banco do passageiro. Toni ligou.
- Ei, cara. Sinto muito.
- Oh, tudo bem. Marcamos de beber algo qualquer dia, Toni. Eu esqueci umas coisas no meu armário, você pode guardá-las para mim?
- Não vai ser possível, eles foram rápidos e já fizeram uma limpeza na sua sala, jogaram fora tudo o que você deixou. Eu estou arrumando minhas coisas agora.
- Puta que pariu. Mas como assim arrumando suas coisas? Foi demitido também?
- Deixe-me contar a novidade. Fui promovido! Agora ocupo o seu lugar. Isso não é legal? Tenho que desligar, eu te ligo mais tarde para tomarmos algo e falarmos sobre isso.
- Olha, Toni, vai se foder. Vai tomar no olho do seu cu! FILHO DA PUTA!
Desligou e arrancou com o carro e destruiu o retrovisor direito do citroën. Estava possesso; pro diabo com a política da empresa. Quinze anos enterrados na merda, servindo de fantoche e para quê? Aguentar ingratidão atrás de ingratidão. Era isso que pensava Oscar, a gente vem ao mundo para servir de boneco e o nome que dão pra essa coisa toda é política. Ele não sabia a quem queriam enganar, mas estavam conseguindo.

Oscar chegou a casa, guardou a picape na garagem, enxugou os pés no tapetinho amarelo e abriu a porta. O cheiro de água sanitária misturado com álcool logo inundou suas narinas. Susan deu um salto do sofá, seus 130kg divididos em pouco mais de 1 e 63 de altura fizeram as paredes tremer, a cabeleira loira, espichada até os ombros balançou como folhas ao vento. Ela espirrou álcool nos sapatos do marido.
- Tire os sapatos. Quantas vezes tenho que dizer?
- Querida, o chão foi feito para ser pisado. Caso o contrário flutuaríamos...
- Você pode pisar de meias. – borrifou mais do álcool pra cima de Oscar.
Ele já ia encostando os sapatos num canto perto da porta quando a mulher interrompeu, aflita.
-Oh, espere! Tire essas meias também, elas estão imundas! Você é um porco, eu me casei com um porco. Por que, Deus?
- Está chovendo, as coisas estão todas úmidas...
- Você vai infectar a casa, vamos adoecer e morrer. É isso que você quer?
Oscar tirou as meias. Susan saiu correndo pela casa com um tubo de veneno e um pano na mão, ela disse que alguns insetos haviam entrado e não escapariam vivos. Ele resolveu fazer um lanche enquanto vivia seu pesadelo por mais um dia. Voltar para casa já era um pesadelo e agora isso, estava desempregado e traído por Toni e Bernadete, aquela vadia; que olhos verdes enganosos ela tinha. Até o Sr. Marcone, o filho da puta que esteve ao seu lado durante quinze anos resolveu deixar a mascara cair.. Que vida de merda estava fadado a levar. Por um instante se imaginou na áfrica, metido num campo de refugiados em algum lugar do Quênia, mas isso não amenizou sua preocupação, só o fez afundar ainda mais na perversão do ser humano. Estava deprimido.
Não sabe ao certo quando ou porque a mulher ficara assim, com essa paranoia toda. Já faz uns dois anos que não tem paz dentro da própria casa com a mulher comendo e limpando sem parar. Fazer compras é um tormento, ele quase poderia alimentar o mundo todo com os gastos em mercado.
Não pode lembrar-se das crises de pânico e limpeza da mulher e da forma como ela quase morre quando estão juntos na rua, ou quando ela resolve ir ao mercado usando luvas e mascaras. E os teatros, os malditos teatros que ela faz quando se joga contra as paredes e bate com a cabeça no chão ao encontrar uma gota de mijo na borda da privada, ou quando ele derruba café na toalha da mesa, entre outras coisas... Peidar na cama com ela por perto então, nem pensar. Como se ela não peidasse enquanto dormia. Estava louca e hoje ia passar um bom tempo mais louca ainda, atrás dos insetos.
Depois de terminado o lanche, Oscar levou o prato até a sala, com todo cuidado para não ser visto, passou na ponta dos dedos sobre o tapete persa de Susan. O tapete era só mais um problema, uma mancha, uma cor a mais além dos traços próprios dele e a casa vinha a baixo e a mulher agonizaria a troco de nada, mais uma vez. Estava preste a ligar a TV para assistir as noticias do esporte quando Susan apareceu bufando, sua pele clara ficava vermelha com facilidade e os cabelos loiros pareciam até mais brancos quando ela estava com raiva.
- Seu miserável! O que é aquela mancha amarela na toalha da cozinha? E você está comendo aqui, em cima do meu sofá? Nem eu como no sofá, porque ODEIO isso.
- O sofá é nosso...
- Mais um motivo para você cuidar bem dele, seu porco nojento!
- Susan...
- Você não me ama, higiene é a única coisa que te peço, a única! Você não me ama!
Oscar levantou com o prato e o lanche e disse:
- Olha, amor... Não é melhor procurarmos um psiquiatra? Pode ser bom para você... Estou tendo um dia difícil e ainda tenho que chegar em casa e aguentar essa ladainha toda. VOCÊ ESTÁ ME MATANDO DIA APÓS DIA, SUSAN.
- O que? Está me chamando de louca? O louco aqui é você! Quem é que gosta de viver na imundice? Seu canalha, não tem respeito pela sua mulher?
Ele ia levando tudo para a cozinha, quando encarou o pequeno vaso de violetas que ficava junto ao telefone. Ouviu a mulher resmungando "dia difícil, mal sabe o que é dia difícil, esse pilantra." Ela tinha que acordar dessa doença por bem ou por mal. Ele sabia que ela pararia de gritar se derrubasse o vaso, ela teria mais uma crise de pânico e tão logo se acalmaria. Então esbarrou propositalmente no vaso. La se foi tudo de encontro ao piso branco e brilhante com cheiro de água sanitária. Terra, flores, vaso, prato, pão, presunto, queijo, mostarda tudo condensado numa poça colorida... Oscar agora encarava a expressão raivosa da mulher com um sorriso de canto. Expressão essa que foi murchando, desaparecendo como uma rosa no frio, indo ao encontro do arco-iris de sujeira formado no piso. O pânico tomou conta do rosto de Susan, ela calou. Começou a tremer e colocou as mãos no rosto. Oscar por fim, disse:
- Esses seus ataques de pânico não me enganam mais. Vamos querida, pare com isso, era só um vaso...
Susan não respondeu. Caiu de joelhos e em seguida desabou babando sobre o tapete persa, de 3.600 reais.
- Vamos lá, isso já foi longe demais. Você está babando a porra do tapete todo, querida. Não quer sujar seu tapete persa com saliva, quer? Os germes vão entrar pela sua boca, levanta daí meu amor.
- Aaaargh, aaaaaah, uuuuh – respondeu Susan apertando intercaladamente o peito e o pescoço
- Você precisa de ajuda. Entenda de uma vez... Se não for ajuda profissional, que seja divina. Ouviu? Espero que os deuses estejam ouvindo também...
- Aaaaaaargh, aaaaaarght
- Ora, foda-se. Fique aí então. Vou ao mercado comprar umas cervejas.

Voltou duas horas depois. Uma mosca caminhava tranquilamente sobre os lábios levemente arroxeados de Susan. Oscar pulou toda a sujeira e o corpo da mulher , deixou uma marca de barro no tapete e foi até a cozinha, abriu uma garrafa. A mosca agora passeava pela casa. Ele sentou-se no sofá. Soltou um peido, derrubou um pouco da cerveja, procurou na TV as noticias do esporte, mudou para um canal de filmes. O telefone tocou.
- Alô?
- Oscar Rocha, corretor?
- Ele mesmo.
- Sou Aline Quaresma da L&A corretora. Estamos aqui com uma recomendação, gostaríamos de contratá-lo de imediato.
- Oh, que ótimo, então para quando fica a entrevista?
- De imediato, senhor. Já estamos com o seu currículo e não será necessária entrevista.
- Mas isso é maravilhoso. Muito obrigado.
- Nos vemos amanhã de manhã, as 8:00. Até logo.
- Até logo.
As coisas pareciam começar a voltar ao normal, enquanto a mulher continuava deitada, feito uma colina enraizada no tapete. A mosca voltou a pousar em seu rosto, Susan nada fez. Agora Oscar estava ansioso pelo novo emprego, e também por conhecer Aline, que tinha uma voz adorável. Tudo o que ela falava parecia poesia. Ele então suspirou.
- Vamos meu bem, acabou a brincadeira! Ainda preciso te contar sobre o trabalho...
Susan nunca mais respondeu.

sábado, 2 de junho de 2012

Prepare seus ouvidos

eu tentava dormir as 2:30 da manhã
quando meu celular tocou,
consegui alcança-lo
com muito custo

"ela me deixou" disse uma voz
"ela me deixou de novo,
aquela puta"
"foda-se" eu respondi e
desliguei.

virei-me para o outro lado
acomodando a cabeça no travesseiro
tentando fabricar um sonho bom e
o celular tocou novamente -
eu atendi

"não desligue, fale comigo!" era a mesma voz
"ela me deixou, cara"
num suspiro percebi que o dono da voz era Allan,
ele estava bebado demais e soluçava
"olha, todas elas se vão" eu disse

"você está com uma voz péssima, cara,
o que está fazendo?"
"estou tentando dormir"
"mas não desligue agora, eu vou morrer,
ela entrou no carro de outro e foi embora"
alguma música tocava ao fundo e eu podia ouvir
pessoas conversando.

"escute Allan, você está numa festa, arrume outra garota"
"eu vou morrer" começou a chorar
"compre outra cerveja então"
"oh, boa ideia"
ele desligou.

Allan precisava saber,
não importam as novas manhãs
nem as garrafas,
é adeus o que
mais vamos ouvir
durante toda a
vida

por fim fechei os olhos e dormi -
ao meu lado a velha ausência
que nunca se vai.