quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Formigas por todos os lados


Desvio da fila dos caixas eletrônicos. O calor ali se mescla com a respiração e o burburinho das pessoas que se espremem pelo banco, o que faz a atmosfera começar a ficar perturbadora. Uma leve dor me sobe pela nuca e eu respiro fundo e estalo os dedos da mão direita. Enfio a mão no bolso, tiro o celular e o deposito no pequeno compartimento para objetos metálicos. Tento atravessar a porta giratória. Ela apita e trava. O guarda do outro lado do vidro me encara de cima a baixo, com suas olheiras pendendo pelo rosto. Dou um passo atrás com certa irritação, começo a vasculhar os outros bolsos, encontro o isqueiro, as chaves, o maço de Marlboro. Meto tudo no compartimento, junto com o celular. Atravesso a porta e recolho meus objetos no compartimento, ao lado do guarda que tem um bigode amarelado de nicotina e sorri dizendo “bom dia”.
Antes de pegar a senha do caixa, passo pelas mesas de atendimento ao cliente e vou até um filtro de água mineral parado num canto. Bebo três copos de água gelada. Volto até a maquininha das senhas e aperto o botão: “pagamentos e recebimentos”. A máquina cospe o papel: “senha número 87, previsão de espera: 15 minutos”. Olho ao meu redor, todas as cadeiras estão ocupadas, olho para o monitor que mostra as senhas chamadas e ele marca o número 43. “15 minutos? 15 minutos o caralho...” falo comigo. Atravesso outra vez o recinto e encosto ao lado do filtro. “Somente o ser humano mesmo pode ser tão estúpido a ponto de inventar essas burocracias, esses compromissos. Só nossa raça pra acabar com o simples que era pra ser a vida”, penso.   
Puxo um desses encartes de benefícios e serviços do banco que estava numa espécie de prateleira de papelão e cinco minutos da minha manhã já se foram pelo esgoto. Olho para o encarte que tem como ilustração a foto de uma família acompanhada pelo slogan: “Invista na família. Mude agora o seu futuro”. A mulher loira, vitoriosa, vibrante como uma raridade, uma escultura única. O homem igual, se não fosse pelo cabelo castanho escuro. No meio dos dois, uma menina e um menino. Todos estão bem arrumados, despreocupados e aparentemente cheirosos fazendo um piquenique num jardim repleto de cores pulsantes, num dia ensolarado de primavera. Todos sorrindo descaradamente com os seus dentes a mostra, brancos e limpos, impecáveis e vitoriosos. Desvio o olhar do encarte e acompanho com os olhos as pessoas que estão por ali, em sua grande maioria desesperadas e enlouquecidas, sem tempo para cuidar dos dentes, ou sem chances para juntar um pouco que seja de tempo livre. Elas estão fatalmente vitimadas e humilhadas por qualquer coisa errada no mundo. São pessoas reais, vivendo, respirando, comendo realidade e perdendo a compostura diariamente enquanto enfrentam a labuta. A ironia que escorre pelos muros e grades da nossa pequena e frágil existência as vezes é tão escancarada, tão grotesca que se mistura em meio ao resto da sujeira e passa despercebida pelos olhos mais cansados. Eu devolvo o encarte no lugar e tento distrair meu pensamento com algo que não seja o calor do outro lado ou cheiro de bunda, quando escuto alguém dizer meu nome.
- Diego? Que aconteceu que nunca mais te vi por aí?
- Ando ocupado. O tempo está curto, César. 
César costumava frequentar os mesmos bares que eu. É pintor, além de vendedor. Vive tentando expor suas telas em eventos pelo país, mas ainda não conseguiu. Ele fala demais quando não está bêbado, o que deve ser uma forma de vomitar a ansiedade crônica que corre em suas veias. É um bom sujeito, mas unicamente chato.
- Sei como é. Eu também estou passando apertado. Eu e a Patrícia estamos morando juntos agora. – ele diz, suspirando.
- É mesmo?
- Vai fazer duas semanas.
- Que bom, cara.
- Você estava deplorável no fim do ano, enquanto entornava garrafas e contava sobre aquela história das duas mulheres. Você conseguiu se acertar com aquela lá, cheia das tempestades?
- Não.
- Oh, sinto muito...
- Não sinta.
- Mas a outra sumiu, pelo menos?
- As duas sumiram. 
Ficamos em silêncio. César parece um pouco impaciente e logo volta a falar. 
- Sabe... Eu acho que não gosto mais da Patrícia. Na verdade, acho mesmo que estou começando a odiá-la.  
- Por quê?
- Eu não sei. Sinto que estou no limite. 
- Entendo você.
- Eu a amava há duas semanas. A coisa estava exatamente aqui dentro – ele aponta com a mão esquerda para o próprio peito – até quarta feira da semana passada. Era noite e estávamos transando, sabe? 
- Sim...
- Foi magnifico como sempre. Estávamos felizes. Terminamos o negócio e fomos tomar um banho juntos. Até aí tudo bem, então deitamos para dormir. Eu precisava realmente dormir, vinha passando por noites intermináveis de insônia e sentia que ali, naquele momento poderia dormir como nunca. Realmente consegui, acho que dormi profundamente durante uns trinta minutos e aí ela me acordou dizendo que havia formigas pelo colchão. Acendi a luz, não tinha nada. Apaguei a luz, virei pro lado e fechei os olhos. Estava quase pegando no sono novamente quando ela começou a me cutucar, falando sobre as formigas. Levantei, acendi a luz mais uma vez. Eu disse que não havia formigas, que ela devia estar com algum tipo de alergia. Então ela me disse que as formigas estavam escondidas em baixo da cama, eu dei uma olhada e não tinha nada lá. Nisso ela se levantou e atirou o lençol pro chão e gritou: “Elas tem que estar em algum lugar!” Aí ela foi pra cozinha e voltou com uma daquelas facas de churrasco e começou a triturar o colchão e a roupa de cama. Enfiava a faca e rasgava com uma destreza realmente assassina. Quando o colchão ficou totalmente destruído e com as molas expostas feito vísceras, ela olhou pra mim e disse calmamente: “Não estão aqui”, e foi guardar a faca. Eu tentava digerir o que tinha acontecido quando ela me chamou na cozinha. Fui até lá, ela apontava para todos os lugares. Pra pia, pra parede, pra mesa, pro doce de abobora da mãe em cima do fogão. “Estão aí as danadas, eu apenas sonhei que elas estavam na cama”, ela disse. Eu fiquei claramente irritado, ela tinha destruído um colchão praticamente novo. Tinha feito um escândalo e eu odeio esse tipo de coisa. Então começamos a discutir e eu não consegui dormir outra vez. Passei a noite praguejando enquanto ela dormia no sofá.
- Olha... Eu entendo você.
- Não, eu estou enlouquecendo. Ela também mudou meus quadros de lugar. Todo dia de manhã olha pra eles e diz que eu devia usar mais cores nas pinturas, enquanto tomamos leite naquelas canecas horríveis que ela trouxe pra minha casa. Às vezes tenho a impressão de que ela só está me parasitando. É como se ela sugasse até a minha merda.
- Eu passei por isso ano passado.
- Verdade?
- Sim.
- Não sei mesmo o que pode ter dado errado, Diego. Veja bem – ele faz uma pausa para coçar a garganta - ontem mesmo ela começou outra vez com o assunto sobre as formigas. Disse que eu devia comprar algum veneno, porque as malditas apareciam no açúcar e no arroz e estavam por todas as partes. Disse que estava farta de comer formigas e que eu precisava tomar alguma providencia.
- E você tomou?
- Então eu disse para que ela mesma comprasse o veneno, que não me esperasse por tudo porque ela já é grande o suficiente para fazer coisas por conta própria e eu já tenho que passar o dia trabalhando e preciso de tempo para pintar. E ela me encarou, começou a gesticular com os braços pra lá e pra cá, de forma enlouquecedora, dizendo que eu não dou valor suficiente a ela, não ouço o que ela diz e que eu só penso em pintar e gosto mais dos quadros do que dela, essas merdas todas, sabe? Daí eu falei que era bom ela procurar alguma ocupação e me ajudar a por dinheiro na casa, me ajudar com qualquer coisa, porque eu estou cansado de ver a cara dela em casa o tempo todo, batucando teclas no computador enquanto eu enlouqueço. 
- E ela?
- Começou a chorar. Depois ela berrava histericamente sobre valores e princípios, e desejou que as formigas comessem todas as minhas telas. Você precisava ver, fez um verdadeiro teatro. Aí foi pra casa da mãe dela e então minha sogra me ligou. 
- Minha nossa. Queria te apedrejar pelo telefone?
- Não exatamente. Ela queria me passar o nome de um ótimo veneno para formigas, veja só que piada. Pediu para que eu tivesse mais paciência... Disse que a minha personalidade estava mudando por causa das formigas e que tão logo as mesmas fossem eliminadas tudo ficaria bem. Então eu pensei em perguntar se a filha dela era uma formiga, mas disse apenas “ok” e desliguei, porque naquele momento precisava dar uma cagada. A Patrícia voltou meia hora depois como se nada tivesse acontecido e ainda veio dizendo que o aniversário dela está chegando e então quer um presente magnifico.
- O presente é fácil... Você pode pintar uma tela de uma formiga. Uma tela grande. Podem ser várias formigas ao invés de uma.
- Porra, você quer me ajudar ou não?
- Estou te ajudando.
- Hoje, antes de eu sair de casa ela estava prestes a começar a falar das formigas mais uma vez. Eu disse pra ela ir embora se não estava satisfeita. Que eu não era obrigado a sustenta-la. E ela disse que se fosse embora, eu nunca mais a veria. Você acha que as coisas vão melhorar se eu matar as formigas? 
- Não, eu não acho. Esse tipo de coisa ou é boa ou é ruim, independe das formigas. Matar as criaturas só faz você entrar no jogo, e depois das formigas vão aparecer besouros, moscas, baratas e qualquer outra coisa pior e é você que vai ter que lidar com tudo isso.
- Mas eu não queria perde-la. Eu sentia mesmo que a gente tinha algum futuro.
- Parece que você se enganou.
- É... Ela é louca. Acho que vou mesmo dizer pra ela fazer as malas hoje. 
- Pode ser melhor para ambos. 
- Mas isso vai me deixar deprimido por dias. Acho que nunca vou arrumar uma foda tão boa outra vez. E ela também é muito bonita, uma verdadeira raridade, você sabe. Tínhamos tudo pra vingar, não sei o que aconteceu.  
- Essas coisas acontecem o tempo todo.
- Acontecem?
- Estamos sempre procurando nos enterrar num buraco cada vez mais fundo, César.  A única coisa é que tem gente que leva tempo demais pra perceber isso.
- Como assim?
- Deixa pra lá.
Sei que ele voltará atrás com a merda toda e não tenho mais nada a dizer. Olho novamente para o monitor das senhas. Está lá o número 58. Eu amasso minha senha e penso comigo: “pro inferno com isso.” Digo a César que preciso ir e saio do banco. O centro da cidade nunca esteve tão feio e quente. Atravesso a avenida em direção a praça, sento num banco protegido pela sombra de uma arvore. Acendo um cigarro enquanto vejo pernas cansadas atravessarem os jardins, quase perdidas. Formigas.