segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Algo sobre como as coisas ficam insanas no natal



É 24 de dezembro, 3:47 da manhã, madrugada da véspera de natal. Tudo parece silencioso nas ruas. A loucura está chegando ao fim. A correria para comprar o peru, os assados, castanhas, as frutas de todos os tipos e cores e as uvas passas, as malditas uvas passas. As pessoas pararam de arrastar suas crianças pelas calçadas, finalizaram as buscas frenéticas e furiosas por presentes e merdas. Agora dormem em suas casas, entre pisca-piscas irritantes e bolas coloridas penduradas em arvores de plástico, esperando alucinadas pelo natal enquanto Victor detona uma garrafa de vinho e tem um bom sexo reconciliatório com Diana. 
Ela está por cima enquanto ele concentra o olhar em seus seios. Ela arrasta as unhas por seu peito, em meio aos pelos e diz “Monstro. Você é meu monstro.” O celular no criado mudo começa a tocar, a chamada vai até o fim e o toque cessa. Agora ele carrega Diana para baixo e começa a trabalhar mais rápido, uma gota de suor escorre pela têmpora direita dele e pinga entre os seios dela, a gota percorre todo aquele vale branco e mergulha no umbigo. Os dois gozam. Ele rola para um lado e Diana levanta, puxa o maço de cigarros de dentro da bolsa e vai ao banheiro. O celular toca outra vez. Número desconhecido. Victor atende. 
- Alô?
- Ela está aí com você, não é?  - A voz de Eva vaza pelo aparelho.
- Eu não disse para você parar de me ligar?
- Está ou não?
- Não. Estou dormindo. Deixe-me dormir.
- Estou indo aí.
- NÃO VENHA. VOCÊ NÃO TEM ESSE DIREITO. 
- Ela está aí. Eu sabia seu filho da puta.
- Eva, nós terminamos. Você precisa se afastar de mim, tomar um tempo só seu, ou isso vai te deixar doente.
- Você me prometeu que nunca voltaria pra ela. Você disse isso. 
- Escuta Eva, é melhor você ir dormir. São quase quatro da manhã...
- O que eu vou fazer sem você, Victor?
- Vai viver sua vida. Vai encontrar outro otário. Vai continuar fazendo o que você sempre fez. 
- OTÁRIO OTÁRIO OTÁRIO – ela grita - você adora essa palavra. Deve me achar uma otária também. O que você pensa seu cretino? Você acha que é uma espécie de gênio?  VOCÊ ACHA QUE É DEUS? QUE TODO MUNDO É OTÁRIO, MENOS VOCÊ?
- Eva, você está bêbada? 
- Eu vou me matar, ouviu bem? Vou matar meus cachorros, meu canário e depois me matar. E a culpa é sua. Você vai lembrar disso todo final de ano, nunca vai me esquecer. – Ela desliga
Diana sai do banheiro, jogando a longa cabeleira cor de caramelo para trás com as mãos.  O cigarro preso entre os lábios. Victor está sentado na beirada da cama, ainda segurando o celular.
- Quem era ligando tão tarde? – Diana quer saber
- Eva está bêbada. Disse-me coisas horríveis. Falou que ia matar os cachorros, o canário e depois se mataria. 
- Não é melhor ligar e falar com ela direito? 
- Já tentei, ela não vai me atender.
- Então é melhor ir até lá.
- Não. Ela não vai fazer nada, não tem colhões. 
- Bem, vou preparar um chá para relaxarmos. – ela joga o que resta do cigarro dentro da garrafa vazia ao pé da cama.
- Boa ideia. Depois dessa crise, seria mesmo bom.
Victor caminha até o banheiro e puxa uma revista de uma cesta que fica ao lado da pia. Levanta a tampa da privada e senta. Começa a ler uma matéria sobre submarinos clandestinos que transportam drogas, fabricados nos confins da floresta amazônica pela As FARC. Diana faz barulho na cozinha, parece que matou uma barata. O celular volta a tocar. Ele levanta da privada e corre atender. 
- Ainda não me matei. – Eva diz
- Estou vendo. Se tivesse se matado eu teria terminado minha cagada.
- Eu pensei que você estava fodendo com aquela outra, por isso liguei.
- Eva, concentre-se na sua vida. Você vai conseguir.
- Estava pensando em me matar, mas não há mais o que matar. VOCÊ MATOU TUDO O QUE EU PODIA MATAR EM MIM.
- Você ainda está bebendo?
Diana aparece na porta do quarto com duas canecas de chá. Atravessa o cômodo, os seios firmes apontando em direção a Victor. Ela sussurra “Então, é ela de novo?” Victor assente com a cabeça.
- Eu cheguei a pensar que você era diferente, Victor. Mas você é igual aos outros. Por que você fez isso comigo?
- É isso que os seres humanos fazem uns aos outros... É natural as coisas acabarem, entende?
Victor escuta um barulho do outro lado. Eva deve ter derrubado alguma coisa. Uma garrafa, talvez. Ela desliga.
Ele volta ao banheiro, recoloca-se na privada. Diana deixa uma das canecas em cima do criado mudo e da pequenos goles na outra. Acomoda-se na cama, encosta na cabeceira e cruza as pernas.  Victor termina o serviço no banheiro e volta para o quarto. 
- Falei com Vilma. Vamos até lá por volta das seis da tarde, para ajudar a arrumar as coisas. Ela disse que Todd não vê a hora de te mostrar sua nova espingarda. – Diana diz com uma voz mansa. 
- Odeio essa época do ano. Feliz natal? Feliz ano novo? Foda-se.
- Você odeia todas as coisas. Por isso é meu monstro. 
- Diana, podemos passar esse tormento de natal em casa. Terminamos os vinhos e fodemos e jogamos cartas... O que me diz?
- Não. Já está tudo combinado.
- Vilma tem um presépio gigante no quintal. Presépios me assustam.
- Lembra ano retrasado, Victor? Todd, bêbado, abateu um dos três reis magos com uma de suas espingardas, Vilma ficou furiosa. Agora são apenas dois.
- Ele devia é abater o presépio inteiro. Libertar a casa daquela coisa assustadora. 
- Bom, temos que estar lá às seis da tarde.
- Eu não sei se vou conseguir dormir, sabendo de toda essa loucura ao meu redor.  Se eu não conseguir dormir, não vou suportar. 
O celular toca pela quarta vez, Diana estica um dos braços e apanha o aparelho jogado na cama. 
- Número desconhecido. – ela diz
- De novo?
Victor atende. Ele faz algumas caras de espanto, passa uma das mãos sobre a cabeça. Eva havia começado um discurso interminável, ele quase não consegue uma brecha para falar.
- Eva... Estou ligando para sua mãe!
Eva desliga. 
- Santo deus! 
- O que aconteceu? – pergunta Diana.
- Ela disse que falou com Tommy. Que ele vai leva-la a Paris e que a ama de verdade
- Oh, isso não é ótimo?
- Seria, se Tommy não fosse um maldito urso de pelúcia de vinte e sete anos. E ela disse mais, falou que vai mandar flores francesas para o meu velório, quando você me matar.
- Nossa. E depois eu é que sou a louca.
- Mas você já me ameaçou com uma faca duas vezes. Na segunda abriu um rasgo no meu braço. Treze pontos... Lembra? 
- Eu e ela certamente somos muito diferentes. 
- Com certeza...
- Me diz, vai mesmo ligar pra mãe dela?
- É claro que não, Eva tem trinta e dois anos. Amanhã nem vai lembrar que isso aconteceu.  
Os dois terminaram o chá, apagaram a luz e deitaram. Victor envolveu Diana nos braços. Os corpos ainda suados se mesclavam sobre o colchão. Ficaram em silêncio durante quinze minutos.
- Diana? – ele sussurrou em meio ao breu silencioso do quarto.
- O que é?
- Eu não te disse quando estávamos no mercado? As pessoas ficam muito perigosas nessa época do ano. Completamente insanas...
Ele sentiu Diana suspirar. Ela ficou imóvel como uma pedra, imersa em sono profundo. Victor fechou os olhos. Pensou consigo mesmo, “o que diabos é isso que os seres humanos vivem fazendo a si mesmos e aos outros?” Uma hora depois, dormiu sem respostas.

domingo, 4 de novembro de 2012

Clichês efêmeros

O conto a seguir sofreu pequenas alterações ao longo das últimas horas (05/11/2012 - 02:07).

Estamos numa noite nublada de quinta-feira. As nuvens estão um tanto carregadas, trovões e relâmpagos tomam parte da penumbra do céu formando desenhos e rabiscos luminosos que me riscam os olhos. Por um instante desvio o olhar do firmamento em direção ao chão, reparo numa moeda de cinco centavos presa entre as pedras da calçada, já tão gasta quanto as solas dos meus sapatos. Estava quase irreconhecível, parecia esquecida ali há muito tempo. Isso dispersa meu pensamento por instantes e me faz lembrar que precisava comprar calçados novos, e talvez umas meias.
Volto a olhar para o céu. Não transpiro muito, mas o calor dos últimos dias faz minha testa umedecer levemente. Não estaria mal que começasse a chover. Tento evitar olhar as horas, e é bom que elas me evitem também. Impaciência é uma coisa que não combina comigo, não é o tipo de negócio que costuma borbulhar dentro de mim. Na verdade mal sei o que é isso; se não fosse por estar parado aqui, na frente desse bar, no meio de um movimento incessante de pernas e mais pernas esperando por ela, provavelmente todo meu corpo estaria imerso em apatia e indiferença. Não existe substancia ou situação que eu conheça até então que me cause efeitos tão devastadores quanto essa mulher. Bizarro, colega. Eu não sei descrever o tipo de força que ela emana para me construir e me derrubar quase que ao mesmo tempo. Eu não sei descrever merda nenhuma quando se trata disso. É quase bestial. 
Tenho sede e vou para dentro do bar. Penso em comprar uma cerveja. Melhor, cerveja não. Não agora. Pego uma água. Lembro-me de algumas das várias discussões que tivemos no passado por causa do álcool. Está tudo bem, eu tento beber menos. Eu quero fazer as coisas certas uma vez na vida.
Planto-me outra vez na calçada, observo entre as cabeças, em meio às luzes e os relâmpagos. Não há sinal de chuva no céu e eis que a vejo virando a esquina, com seu pouco mais de 1 metro e 56 centímetros. Cabelos negros, de tamanho mediano balançando com a leve ventania que contorna as pessoas e os prédios. Faz aproximadamente oito meses desde o nosso último encontro, uma coisa corrida. Um quase adeus tão deprimente quanto a ausência que venho sentindo. Porra, eu não sei por que diabos tudo entre a gente ficou assim. Não entendo como deixei, ou deixamos tudo chegar nesse ponto nebuloso, nessa nuvem negra que separa vidas da mesma forma que separa o céu da terra. 
Agora Ana surge em minha cabeça. Por alguns instantes sinto-me como se estivesse sido transportado para um universo paralelo, como se tivesse perdido os sentidos, afogado em reminiscências desgastantes, é isso que certos erros fazem com a gente. Estou imaginariamente longe do bar, da calçada, do fedor da cidade. Ana foi mais um dos meus erros. Talvez o pior da minha vida até então e digo não só por mim, mas também por ela. Ana não tem culpa por ter sido uma coisa que plantei sem querer colher, e não devia sair machucada. Mas ainda assim dividi meu erro com ela e sou sujo por dividir minhas culpas, sujo por algum dia ter jogado metade dos meus sacos de merda nas costas dos outros. Sujo por em momentos de loucura ter alimentado vezes sem conta um ódio tão vil, tão porco, inclusive de mim mesmo. Dividi o peso, mas a capacidade de ter afundado aquilo que mais queria quando voltei para cá será sempre minha. Ana, uma brisa que soprou no canto errado, um pássaro que se perdeu no céu escuro dessa sujeirada que fiz e agora tento limpar. Isso tudo significa ser humano. Isso tudo significa ser humano por ser tão errado.
Se eu pudesse voltar naquela sexta, era começo do ano. Eu teria atendido aquele telefonema, Camile. Eu teria mudado o rumo dessa merda toda sem abrir feridas em ninguém, como devia ser. Mas fiz a coisa ao avesso e agora agonizo.
Começo a voltar ao mundo real. Estou novamente em pé na calçada esperando por Camile, que virou a esquina e agora já está tão próxima que posso olhar fundo em seus olhos, e mergulhar mais uma vez naquelas duas luas negras, os satélites do meu melhor planeta.
Instintivamente pego o maço de cigarros do bolso, levo um a boca e acendo. Não me parece a melhor coisa a ser feita, mas não levo nenhum jeito para reaproximações. Nunca levei. Só percebo que estou realmente fumando quando dou lá a terceira tragada. Camile agora está parada em minha frente e estica seus bracinhos finos de pele meio morena em minha direção. É um abraço gelado, como aquele de oito meses atrás. Ela olha em minha direção e deixa escapar um sorriso falso, quase rasgado.
- E pensar que antes você dizia que eu estava carregado de falsos sorrisos... - eu digo
- O que quer dizer com isso, err Diego?
- Nada.
- Você não tinha parado de fumar?
- Achei que tinha.
- Tá aí uma coisa que não muda em ti. Vive achando demais.  O que tu faz com as certezas?
Eu não respondo. Procuro uma mesa e faço sinal para sentarmos. Amasso o que sobra do cigarro numa lixeira próxima. Ela parece impaciente, não para de brincar com um cordãozinho da bolsa e evita olhares diretos. Ela sabe se esquivar como ninguém e sempre acaba me desarmando.
- Todo ano é a mesma situação. - eu digo
- Acho que dessa vez é diferente.
- Em que sentido?
- Não sei. Nem sei o que você quer dizer com isso...
Tento desconversar, ela tem o controle de tudo. Não demoro em perceber o quão fodido estou.
- Camile... Eu sinto sua falta.
- Eu também sinto a sua, mas não acho boa ideia a gente voltar a se falar. - ela ataca dessa vez, sem flanquear.
- Por que não?
- Porque eu já passei por isso duas vezes e não quero passar uma terceira.
- Se você acreditasse...
- Mas eu não acredito, Diego. Não acredito. Isso nunca funcionaria. E também não quero falar sobre tudo o que a gente já conversou antes. Então não comece um monólogo.
- Não seja egoísta. Tô me encontrando com você porque sempre quis as coisas diferentes.
- Egoísta o caralho, entendeu? Já se esqueceu das outras vezes? Eu tô cansada das suas merdas. E isso nem sequer é um encontro. – ela olha para o teto, leva uma mecha do cabelo para trás da orelha e continua. – Sabe, você deve ser o cara mais estagnado que eu conheço. Das coisas que você queria, chegou a concluir alguma? Você desiste de tudo. Você morre pelo caminho toda vez.
- E o que é que você sabe sobre as coisas que eu quero? 
- Agora estamos fazendo avanço. Você desistiu de mim inconscientemente. Apenas não descobriu ainda, Diego. 
Dou uma golada na garrafa de agua. Espero em silêncio para ver se ela solta mais alguma bofetada verbal. Ela voltou a se posicionar na defensiva. Penso em atacar, mas não tenho forças. 
- O único avanço que eu queria fazer aqui era me acertar com você.
Tento investir com um beijo, ela se inclina para trás e vira o rosto. Sinto o cheiro da maquiagem, a leveza de sua pele. Como me faz falta aquele toque... Eu recuo por um segundo. Agora tento abraçar seu rosto levemente com uma das mãos. Ela levanta: 
- Já estamos acertados, de certa forma.  Eu vou indo agora.
Camile começa a andar. Eu a acompanho, desviando dos transeuntes que aparecem em minha frente. Viramos a esquina. O metrô está logo ao lado, ela desce as escadas quase levitando, como se eu não estivesse ali. Continuo atrás. Sinto por dentro um desespero fora do normal subindo pela boca do estomago e girando no esôfago. Essa coisa é tão incomum para mim que mal consigo acionar um mecanismo de defesa. Estou completamente rendido e em segredo não sei o que fazer. Compramos os bilhetes, passamos as catracas. A merda do trem já esta lá. Ela vai irredutível até a porta:
- Camile, espera!
 Ela me olha pela última vez, antes de entrar:
- Eu disse que se você terminasse com ela, ia ficar sozinho. Otário.
- Fico sozinho então, porra, fico sozinho! – nesse momento eu perco a paciência e começo a gritar. – Isso não me faz mais ou menos fudido do que já estou, Camile!
Algumas pessoas olham um pouco assustadas enquanto passam pela plataforma.
- Então tá bom. A gente se vê.
Ela embarca no trem, sem olhar para trás. Agora estou impotente, gritando do lado de fora. Começo a andar de costas, sem tirar o olho da janela onde ela está sentada. O trem parte e some na escuridão do túnel. Tudo indica o último minuto, a última vez. Eu acabo de perder algo insubstituível. 
Tenho vontade de vomitar, mas minhas pernas querem correr. Saio do metrô, acendo um cigarro. Tento caminhar normalmente, enquanto praguejo em silêncio. “Vai pra puta que pariu, então. Vai...” 
O metrô mais uma vez leva uma parte de mim, enquanto apanho um táxi para a rodoviária. 
Desmembrado, estou voltando para casa. 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Às 5 da manhã

coisas batendo na cabeça
às 5 da manhã
talvez um tijolo ou
uma garrafa vazia,
um estalo no cranio e
avencas brotando pelas orelhas
em meio ao calor.

acomodo-me no sofá
ao mesmo tempo em que alguém tenta vender
modernos utensílios
dentro da minha TV muda
igual um tumulo formado por luzes

percorro os canais
e lá estão mais utensílios
ou previsões do tempo e
telejornais carregados de "bom dia"
prestes a começar

o mundo nunca parece tão feito
de televisores e coisas batendo
em cabeças como é
às 5 da manhã
enquanto o tempo faz questão de morrer
sem passar.

um murro num velho filme de ação bate
o uísque barato
canções desconhecidas batem
e o resto descansa
numa especie de sono
interminável
e estou tão acordado
quanto jamais estive

desligo a TV.

vou até o banheiro
jogo água no rosto e
encaro o espelho, não há nada a fazer.
caminho para o quarto
não acendo a luz
ligo o ventilador.
atiro-me na cama e faço um casulo com o lençol.

mantenho os olhos fechados.

as janelas batem,
e as portas
e os pássaros
e sol

você também bate em minha cabeça
com toda a força que o silêncio pode ter
às 5 da manhã.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Alissa não precisava morrer

Alissa tinha essa forte tendência suicida. Já havia tentado de tudo. Uma mangueira conectada no escapamento do carro inundando o interior do veículo com monóxido de carbono. Uma forca improvisada numa viga de madeira do rancho da casa, que por sinal estava podre e se rompeu quando ela pulou da cadeira. Tentou remédios, vários deles e álcool. Até mesmo um veneno ou sabe se lá o que diabos era aquilo que encontrara enquanto dava fim nas coisas da mãe, já falecida a oito anos. " Eu precisava de espaço no armário e então resolvi jogar a velharia fora. Separei apenas uma boneca de porcelana, que ela gostava muito e então me deparei com um frasco avermelhado, cheio de bolinhas laranjas e ásperas. Pensei que aquele era um bom momento e tomei tudo, mas aquilo só me fez cagar e vomitar por uma semana. Tive que dormir sentada na privada, um horror." Ela contou certa vez enquanto fazia uma omelete para o café da manhã. E numa noite, após o sexo, quando tomei coragem para perguntar das marcas nos pulsos ela respondeu "a primeira vez é sempre a mais idiota." Fiquei em silêncio por alguns segundos tentando entender o que ela quis dizer com idiota, matutando sobre as outras tantas vezes. Terminei por mudar de assunto.
Não sei bem se Alissa não tinha mesmo sorte com esse lance de suícidio ou se no fundo da sua alma nebulosa coberta por aquele manto de pele cristalina, ela na verdade não queria morrer. Talvez fosse isso, ela odiava em silêncio e por mais ódio que pudesse sentir da vida, odiava a morte igualmente como se buscasse um mundo paralelo entre as duas coisas. Algo que cultivara na infância e que sobrevivera até então, infinito. Possuía também grandes olhos cor de caramelo, um nariz fino, pequenino, levemente arrebitado que parecia sempre querer, com certa timidez, apontar para a lua. Uma boca avermelhada por natureza, nem muito fina, nem muito grossa terminava o contraste com aquela cabeleira obscura, num tom preto quase de cegueira.
Nos conhecemos por acaso, na sessão de filmes de horror de uma locadora alternativa numa noite de sexta. Eu procurava coisas trash do gênero Grindhouse, quando ela veio com um filme na mão. Apontou a capa para mim.
- Já assistiu esse?
Olhei para o título. Era um filme japônes chamado Suicide Club. Uma colegial estava em primeiro plano na capa e atrás dela varias outras.
- Não. - respondi.
- Eu estava pesquisando, me pareceu muito bom.
- É, talvez...
- Você não é muito falante, não é?
- A maior parte do tempo, não.
- Bom assim. Se quiser assistir comigo... Está convidado.
- Você nem me conhece.
- Você não me parece perigoso. Apesar de justamente isso indicar o contrário - ela abriu um sorriso.
- Olha...
- Então o rapaz vai me seguir? – perguntou, interrompendo.
- Com certeza.
Morava perto dali e no caminho, pouco foi dito. Ela contou coisas sobre a vizinhança e disse que há uma semana a policia federal havia cercado o bairro para prender seu vizinho, que era pedófilo.
Vivia com o irmão, ele trabalhava com alguma coisa de supervisão e controle de hidrelétricas e estava viajando a trabalho. Um portão grande e cinza que se abriu fazendo um barulho agudo levava pela garagem até uma porta grossa de madeira que dava para a sala. E ali estávamos sentados, assistindo o filme japonês. Tudo começou numa estação de metrô de Tóquio, onde varias colegiais estavam indo apanhar o trem, mas antes que ele chegasse até a plataforma, todas elas deram as mãos e pularam nos trilhos ao mesmo tempo. E aí veio aquele banho de sangue e carne triturada na tela, na multidão. E gritos, muitos gritos. Uma serie de suicídios começou a acontecer no decorrer do filme e um detetive resolve investigar tudo isso. Logo descobriu que existia um grupo de música, teoricamente infantil e de muito, mas muito mal gosto japonês que estava por trás disso. Bem, nessa altura eu já não estava nem mais ligando para o filme. Não conseguia tirar os olhos daquele pedaço de gente ao meu lado. Ela ejetou o dvd.
- Gostou?
- Na verdade achei todos esses cretinos um bando de adolescentes influenciados pela mídia. Nada mais que isso. Sei lá, aquele grupo era horrível. Parecia uma coisa tipo Xuxa. Talvez se partirmos desse ponto podemos entender as mortes. Por outro lado, Japão é meio assim mesmo. Muita gente bitolada com esse tipo de coisa...
Ela riu.
- Também esperava mais, – disse – eu já tentei.
- Tentou o que?
- Suicídio, oras.
- Por quê?
- Acho que falta do que fazer. Ou falta de vontade de fazer... Quer uma cerveja?
- Mas é claro.
E assim passei o final de semana na casa dela, acordando atrasado para o trabalho na segunda feira. As pessoas desequilibradas sempre me atraíram.

*

Uma semana se passou. Madrugada seca. Estávamos no meu apartamento bebendo sem parar durante umas quatro horas, quando Alissa aproximou-se da janela e voltou-se para mim.
- Vamos fazer um teste.
- Que teste?
- Eu vou subir no ar condicionado do vizinho de baixo, está logo aqui. – ela se debruçou na janela para olhar o ar condicionado.
- Estamos no décimo quarto andar...
- E daí?
- Para com essa merda.
- Eu vou subir, vamos ver se ele me aguenta.
- Não ouse meter sequer uma perna pra fora dessa janela.
Ela era pequena, 1,57 de altura e pesava 48 quilos. Vinte e três anos de muitas historias. Apoiou uma perna no ar condicionado e me fitou com olhos de provocação.
- Volte essa perna para dentro AGORA MESMO! – gritei, me contorcendo no sofá.
- Parece firme, acho que não vai cair.
- Não...
- Já estou indo! Já estou indo!
- Escuta aqui...
- Atenção!
- Foda-se também. É isso que você quer? Vá em frente. Tomara que se arrebente lá em baixo.
Alissa gargalhou, deixou cair a garrafa para fora. Eu pensei que ela iria recuar.
- Nossa, é alto mesmo!
Nesse momento já estava em pé no ar condicionado, completamente fora. Eu só podia ver a calça jeans preta pela janela. Levantei-me para puxa-la para dentro, mas ela voltou por conta própria.
- Viu? Me aguentou.
- Você é louca ou o que? Podia ter caído de bêbada também.
- Não sei.
Ela foi até o banheiro, pude ouvi-la vomitar, depois escutei o som de seus passos se arrastando pelo assoalho até o quarto. Abandonei minha garrafa e a segui. Ela já estava deitada, de barriga para baixo, fez um esforço para me olhar.
- Você pode me comer se quiser, mas eu vou dormir. Hoje você finge que é um necrófilo.
Não consegui conter o riso, mas sabia que de alguma forma ela iria gostar da experiência.

*

As coisas correram bem a partir daí. A indiferença de Alissa perante a vida e os riscos e qualquer coisa que envolvesse certo tipo de ação inesperada me encantou. Ela começou a passar a maior parte do tempo em meu apartamento, o que não era ruim. Sua presença desfilando pelos cômodos todas as manhãs e todas as noites era como uma obra de arte viva. Também sua voz baixa e suave como uma nuvem ecoando pelas paredes feito uma melodia composta só para mim. E seu sorriso quase inexistente, como uma Mona Lisa comtemporânea, louca e suicida me dava forças para ressuscitar da cama todos os dias e correr para o trabalho. Já levávamos dois meses juntos. Suicídio não era decepar a própria cabeça numa guilhotina, mas sim abandonar Alissa.
Estávamos numa manhã de domingo nublada e tudo indicava uma boa chuva. Já fazia mais ou menos um mês que não víamos agua cair, a cidade estava em clima de deserto. Sentei na cama e acendi um cigarro, olhei para a janela e acariciei levemente os cabelos de Alissa, que voltou o olhar para mim.
- Parece que finalmente vai chover. – eu disse
- Já não é sem tempo. Posso morrer afogada, seca jamais.
Ela se levantou, foi até o banheiro e jogou agua no rosto. Pude ouvir barulhos na cozinha e um cheiro de café logo começou a navegar pela atmosfera. Fui até lá.
- Já era pra ter resultado, não é? – olhou para mim e sorriu.
- O que?
- A morte.
- Vai começar com isso de novo? Alissa, você nunca quis morrer de verdade.
- Não vou. Até acho que você tem razão, mas porra, que tudo é uma verdadeira merda, isso é. E morrer é supostamente uma coisa boa...
- Não discordo, mas faltando a capacidade de comprovar isso, a gente morre de mentira por aqui. Pra mim tem funcionado muito bem, apesar de ainda termos que calçar nossos sapatos e enfrentar meia cidade para trabalhar.
Alissa tirou o café do fogo, serviu duas xícaras.
- Pelo menos é certeza que aqui a gente pode foder e fazer nossas guerras e criar nossos personagens. – ela riu
- Certeza é sempre uma vantagem! – alcancei uma xícara e dei um gole no café.
- Se é! E das grandes.
Alissa sabia, a gente só precisava matar um demônio de cada vez. E os primeiros pingos de chuva já começavam a encharcar os vidros das janelas.

domingo, 12 de agosto de 2012

Um poema áspero

a estupidez te domina tão rápido
quanto exércitos de homens enfurecidos pela pátria
mal colocada na
história e
não importa a quantidade
de garrafas entornadas
as coisas não vão mudar.

é isso que Otávio diz
enquanto termina outro copo,

elas simplesmente não vão mudar
e vão te atormentar ano após ano,
ele continua.

não preciso de ninguém
não quero saber de nada - digo -
vamos apenas continuar na pegada.

Otávio pede mais duas doses de conhaque
e solta uma tímida gargalhada.

não só quer como lamenta a ausência
feito um cão,
você é sujo - solta outra gargalhada
é tão sujo que não pode viver sóbrio
você é sujo e fraco
e não aguenta um segundo
na escuridão

por um momento penso em fugir das coisas ruins
e ligo para Marília,
ao mesmo tempo que a chamada se propaga por meus ouvidos e
o som percorre meu corpo como uma corrente de vapor,
penso se há realmente algo a ser dito.

as coisas estão morrendo,
é tudo morte, uma sequência assassina,
lembro de quantas coisas matei pelo caminho
e
desligo antes que alguém atenda, sem pensar no meu número
cravado como uma chaga ali no aparelho que pertence a ela.

eu, uma chaga.
Marília, uma bênção.
uma paisagem tão longínqua quanto posso
imaginar.

derrotado outra vez
abandono a mesa enquanto Otávio
mergulha em outra
dose

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Um mergulho no breu

existe uma superfície infinita
que bate em mim
com a força de cem punhos
de homens banguelos, bêbados e
insanos, que gritam com o mesmo terror e
silêncio de um vulcão em erupção
existe uma superfície de loucura e de
contas à pagar
bancos
desemprego
fome
filas enormes nos hospitais
no caixa do mercado
dinheiro por comida
roupa
casa
saúde
dinheiro por cagar,
trabalhos horríveis por quantias
de dinheiro mais horríveis ainda
e bocas, muitas bocas trazendo o inferno.
tente encontrar o real significado para
tudo isso e você terminará
tão louco como jamais
foi.

é provável que esse seja o motivo
pelo qual não consigo levar nada adiante,
a não ser uma sucessão inacabável de fracassos e
desinteresses.

tenho assisto aos jogos olímpicos de Londres
como quem tenta escapar do fundo de um balde
transbordando de merda, e isso me tem feito algum bem;
procuro apreciar Londres cinza e chuvosa,
bonita como tem de ser,
também as modalidades e suas disputas com toda a força
que isso possa significar, e a beleza,
especialmente das garotas da ginástica artística com suas séries
e movimentos quase mágicos.
é só quando penso no passado que uma pontada
atravessa o corpo.
as vezes se eu tivesse continuado a nadar - e como eu era bom -
talvez hoje pudesse estar lá
mostrando que em algum lugar de mim ainda existe
uma alma pulsante, pronta para brigar.
quase me arrependo dos doze anos de natação
jogados no lixo, e das tantas outras coisas que joguei e
ainda vou jogar

é só que não tenho sonhos
não consigo sonhar;

mas o mergulho no breu
na falsa superfície do presente,
com as recordações azedas e pontiagudas
pesando feito chumbo,
é o que resta
enquanto luto para não sucumbir em filas de espera,
para não perder os papéis coloridos
antes que seja decretada
a última sentença

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Porque quatro dias é demais

O barulho daquela avenida numa manhã de domingo assim como em todos os outros dias era um tormento, os motores dos carros que passavam pelas duas vias nunca sessavam e apesar da cidade não ser tão grande, era chato. Era como ter uma maquina de engrenagens dentro da cabeça. No caso de Alex, isso já tinha se convertido em algo quase inaudível. Vivia ali desde o nascimento e já não sustentava esperanças de encontrar silêncio naquele lugar, aliás, nem em parte alguma. O homem estava mesmo fadado a conviver com barulho e loucura, seja ele de maquinas, televisores, rádios, animais ou do próprio ser humano e sua boca fedida.
Raios de sol se infiltravam pelas frestas da persiana, iluminando parcialmente o quarto. Marcela já devia estar acordada há umas duas horas, ela sempre acordava primeiro.
- Alex? Tá acordado?
- Hmmm ahn hmmmm
- Al? Já são quase 13:00. Você não vai levantar? Al.. Eu estou enjoada de ficar deitada.
- Pode levantar, pode fazer o que quiser. Você não está amarrada, amor. Mais um pouco e saio da cama...
- Então tudo bem.
Alex soltou um longo suspiro, sem abrir os olhos. Coçou o rosto e virou para o outro lado. Marcela começou a acariciar suas costas, descendo e subindo com o dedo indicador. Depois deu um cutucão, e outro.
- O que é, porra? - Disse Alex - É impossível dormir com você aqui e já se vão TRÊS DIAS E TRÊS NOITES assim. Maldito seja esse feriado prolongado.
- Mas já são quase 13:00. Você dormiu demais. Parece que não sabe pensar em outra coisa. Dorminhoco.
- Pro caralho com isso. Você mal me deixa dormir a noite. E nem por isso eu te acordo quando, no meio da madrugada, começo a sentir um calor do inferno e preciso levantar para não morrer queimado.
- Por que tá falando assim comigo? Não me quer aqui? Há dois dias você estava diferente.
- Olha, você vem e fica sempre dois dias. Quatro dias é demais pra mim. Posso suportar dois, mas quatro é demais.
- Você não me ama mais? Não quer estar comigo?
- Eu posso te amar quando você está de boca fechada. Você fala o tempo todo, minha cabeça, meus ouvidos estão doendo. É demais pedir um pouco de silêncio?
- Eu sou chata?
- Santo Cristo.
- O que foi?
- Não é isso. Você tá parecendo uma parasita. Você me esgota. Sinto-me doente. Eu posso dormir por oitenta e seis dias seguidos, mas se você estiver do meu lado em todos eles, grudada feito uma sanguessuga eu vou sempre estar cansado e acabado. Sem contar essas perguntas infinitas.
- HAHAHAHAHAHA Exagerado. Aliás, você arrumou o carro? Queria dar uma volta...
- Estou falando sério. Não se faça de desentendida.
- Qual o problema? Meu aniversário está chegando e...
Alex levantou, procurou a cueca no meio do lençol, vestiu-a e foi até a cozinha. Abriu uma cerveja, pegou a frigideira. Uma mancha negra e grudenta se formava bem no meio dela, parecia mais um tumor. Jogou óleo por cima da mancha, colocou no fogo a frigideira e quebrou um ovo dentro. Marcela veio do quarto e sentou à mesa.
- Tô cansada. - ela disse
- Só pode ser piada...
- Não, acho que é fome.
- Marcela, você não gosta de nada que tem aqui. Não gosta de ovos, não gosta de frutas e nem das bolachas que estão no armário. Nada serve pra você.
- Idiota.
- Pega uma cerveja. Depois vamos ao mercado.
- Não quero mais saber.
- Ok. Foda-se.
- Eu vou embora.
- Vá. Você está dois dias atrasada.
Marcela fechou a cara, correu para o quarto. Dava para ouvi-la juntando suas coisas, vestindo a roupa enquanto balbuciava alguns insultos. O estalo que fazia a velha maçaneta da porta principal ecoou pela casa.
- SEU FILHO DUMA PUTA! ESPERO QUE VOCÊ SUBA SONAMBULO NO TELHADO, CAIA E QUEBRE TODOS OS OSSOS E MORRA! - Ela gritou, e bateu a porta.
Alex terminou a cerveja, comeu o ovo frito e voltou a dormir. Nada se comparava à tranquilidade de estar só, em meio aos motores na avenida. A própria respiração servindo de companhia, flutuando em meio à luz solar fosca que iluminava o quarto.
O romance se arrastou por mais duas semanas, mas só nos sábados e domingos.