domingo, 31 de outubro de 2010

Mordia os lábios pedindo ao céu carregado de nuvens negras e mórbidas que derrubasse toda a agua em cima do corpo, como num diluvio em que é preciso sair por ai, remando sem barco na tentativa de não se afogar. E era só tentar, no caso sempre se afogava rápido demais, tudo para ele era rápido demais, menos sua vida. O pai vivia dizendo: “Rapaz, você anda meio morto.” Ele respondia: “Não pai, ando mais que morto e minha carcaça ainda teima em respirar.” Nunca gostou de falar muito e o pouco que falava já o cansava de tal forma que o fazia sentir uma vontade desmedida de arrancar a própria língua. Na ultima vez em que resolveu dar um tipo de discurso, munido de coragem numa mão e amor na outra, falou por horas sem parar e terminou perguntando a si mesmo e para o nada que sempre insistiu em ficar ao lado, frio:
- O que fazer quando você fala, fala, fala e leva um tempo enorme pra perceber que passou ele todo falando com uma pedra?

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Apartamento 103

Dobradiças abrem e fecham no apartamento 103.
Os ruídos agudos escorrem pelas frestas da porta, pelas paredes
assim como o choro silencioso, desesperado.
Existe uma vida lá dentro.
E
ninguém quer saber o que acontece ali.
E
ninguém quer saber quem vive no apartamento 103.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Náufrago

Eu queria, por uma única vez, escrever uma coisa bonita, dessas que podemos transformar numa paisagem de outono, com todas as suas folhas secas, amareladas, voando vagarosamente entre os velhos bancos do bosque no ritmo da brisa quase gélida que em pequenos intervalos de tempo tende a soprar.
Devia descrever seus olhos e cílios, seus lábios, seu sorriso incomum em contraste com o céu negro ou azul, podia ser rubro, até verde porque a cor dele tanto faria. Devia escrever uma página inteira apenas com o seu nome a navegar pelas linhas e transbordar pelas margens numa correnteza certeira que acabaria em meus braços confortando e esquentando seu corpo num naufragado abraço.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Contraponto

Metaforicamente falando, seus anseios eram como um poço no qual eu tinha que mergulhar diversas vezes por dia sem saber nadar. Todas as suas frases citadas letra por letra continham um sentido raro, uma verdade um tanto falsificada que me esgotava de uma forma tão boa que eu terminava por sorrir sem perceber. Sorrisos tão raros em mim, tão fáceis com você.
Algumas vezes perdia-me e encontrava-me na beleza dos teus olhos tão aborrecidos, sonolentos e frios que pediam carinho negando aquela dor que se esconde ai por dentro entre veias e artérias, aquela coisa miúda, ao mesmo tempo forte que machucava a mim também á cada vez que você inventava de inverter as infinitas palavras sinceras que lhe dizia tentando com todo o meu ser meio problemático tapar os buracos que a vida foi deixando na tua alma.
Resistiria por muito tempo nessa ideia, se não fosse pela sua mania boba de querer parecer forte usando todo o medo contido nas suas fraquezas para construir um muro em volta de si. Alguém um dia tinha que te falar mesmo que não queira ouvir, esconder-se atrás duma muralha construída de receio não é força guria.
Irremediável tornou-se tudo isso, que cheguei sem querer ao ponto de fugir, recolher-me. Não é nem de longe a melhor coisa a se fazer nem o que quero, mas é sim a única coisa que posso fazer sozinho.

sábado, 16 de outubro de 2010

Acordei com o zunir da mosca que voava em círculos sobre meu rosto. Olhei ao redor, estava jogado em um canto da sala. Aquele aposento marcado por inúmeras sentenças cruéis decretadas por mim a mim mesmo em noites de bebedeiras e indagações mentirosamente verdadeiras cada vez mais parecia me acomodar para uma morte bem-vinda. Um feixe de luz entrava leviano por uma fresta da janela, aquela havia sido mais uma. Em meus braços a garrafa vazia aninhada como um bebê, daqueles mais pequeninos e calmos sussurrava coisas que só eu podia ouvir. Por um momento, lembrei que meus livros patéticos não estão rendendo como antes e preciso procurar qualquer trabalho que não me mate de fome, mas cá estou bêbado, caído. Lembrei também de quando era criança. Se naquele tempo eu fazia de simples pedras ou tocos, brinquedos; hoje faço canetas e garrafas de bebida transformarem-se em armas fatais, bombas atômicas que explodem apenas aqui dentro desse corpo corrompido e apodrecido por um sistema onde abutres carregam no bico toda a nossa carne e alegria, e nas garras o poder.
Deixei de lado as lembranças e a garrafa, me apoiei na pequena mesa onde descansava o telefone para tentar levantar. As pernas bambas e a náusea dificultaram a tarefa, mas na segunda tentativa me coloquei em pé. Entre sofás, mobílias, telefones, janelas, paredes que saltavam girando em minha visão, notei que as varias latas de cerveja que antes estavam jogadas pelo chão, já não se encontravam mais ali.
Às vezes ela era assim, aparecia em silêncio, invisível. Eu podia perceber o odor daquele perfume no meio do cheiro de cigarro que estava alastrado pelo ambiente. Dirigi-me até a cozinha, na esperança de encontrar um pouco de agua na geladeira. Deparei-me com ele, o bilhete delicadamente colocado em cima da mesa, escrito com aquelas letrinhas miúdas em tinta preta, as palavras eram fortes e rancorosas, mas ainda assim carregadas de ternura, tão leves quanto o próprio papel:

"Seu cretino,
recolhi as latas de cerveja. Essa garrafa de rum, essa mesmo que acordou em seus braços, você não soltou...
O banheiro deixei vomitado, porque sei que assim que acordar, vai vomita-lo todo de novo
Eu esperava pelo menos te encontrar acordado, não sei porque ainda fico decepcionada com isso
Tu é um grande filha da puta, mas bem que gosto de você.
Isabela"


Percebi pequenas manchas amarrotadas no guardanapo, provavelmente gotas secas, lagrimas que percorreram todo aquele rosto amável de garota solitária e pingaram com a leveza de uma tonelada de tristeza enquanto o escrito era concluído.
As palavras de Isabela levaram embora toda a minha sede, andei até o banheiro, ele realmente estava lamentável e cheirava a azedo. Olhei para minha imagem refletida no espelho, ela sempre parece rir da minha cara. Já não me pergunto mais o porquê das coisas estarem como estão, nem porque Isabela se dedica tanto a um fracassado idiota como eu. Queria ser um tanto mais forte para conseguir pedir desculpas, para gaguejar um tal de “eu amo você”. Pensei em telefonar, dizer para nunca me deixar sozinho, para vir até aqui me abraçar, me beijar. Pensei nas tantas canalhices da minha parte e concluí que nada mereço.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Toda manhã quando acordo é a mesma luta, a coberta tão confortavel, me prende no colchão. Quando finalmente consigo remove-la e fixar os pés no piso gelado do quarto, me vejo forçado a abrir a janela e então outra luta começa. O céu claro, tão escuro para os meus olhos me assusta. O ar da cidade cherando a estrume me incomoda.As conversas desinteressantes das pessoas fazem meus ouvidos doerem.
Não tenho vontade de sair do meu buraco, não tenho se quer um motivo para sair dele.
Eu perco as horas, perco todo o tempo que antes caminhava a passos de tartaruga entre um ou dois cigarros, mas agora embalado pelo seu rosto tímido, passa despercebido por mim, pelo relógio.
No seus olhos receosos, sempre carregados de duvida, tento encontrar uma única brecha de certeza para poder me apoiar, estender minhas mãos frias em sua direção e envolver teu corpo inteiro num abraço daqueles bem apertados.
Sabe guria, você consegue me livrar desse espirito todo feito de medo que há anos me atormenta e tritura minha capacidade de afeto, de querer buscar.
Não te digo esse mundo, mas meus supostos pesadelos nunca foram tão bonitos.