Ontem parei aqui na janela do prédio e a iluminação alva dos postes parecia cobrir a rua com um véu de seda, como se ela fosse casar, talvez com o dia que não tardaria.
Aquelas luzes tão pulsantes quanto os ferimentos internos da minha carne refletiam lá fora minha palidez e meu cabelo negro, como um borrão em papel bem claro ao mesmo tempo em que atordoavam minha vista. Cada uma delas lembrava-me beija-flores, mas sem aquele bater de asas veloz e quase imperceptível que me deixava maravilhado quando criança. Eu ficava ali no quintal com a minha vó, tomando um pouco de sol e brincando com os meus sonhos que há tempos já morreram, enquanto esses pássaros tão magros quanto meus dedos bebericavam com seus bicos compridos e finos a agua com mel que ela pendurava no pé de acerola, num daqueles recipientes rodeados por flores de plástico. Nessa época eu ainda gostava do dia e inventava milhões de motivos para acordar bem cedo e abrir minha janela.
O sol tinha lá sua beleza excêntrica no lugar dessa coisa comum e ardida dos dias atuais e eu queria mais dela. Procurava por ela e sempre a encontrava; ou num doce, num inseto diferente ou em alguma das muitas jornadas pelos terrenos baldios e sujos e completamente tomados por mato em cima de mato da rua em que eu morava. Também gostava de conhecer gente e de falar. Os amigos daquela época? Não sei onde foram parar, mas desconfio que estejam juntos com os sonhos, a sete palmos de estrelas moldadas em merda e barro. Tentei cavar algumas vezes, tentei até minha pá imaginaria se perder no turbilhão de fantasmas que carrego comigo; tentei com as mãos também, até que as unhas descolaram, quebraram e meu veneno escorreu pela palma, no pulso, no braço.
Não lembro quando e como todas as coisas se perderam, mas elas não se foram todas de uma vez, isso é fato. Foram caindo uma a uma, das mais bonitas até as mais feias. Meu corpo deve ter um encanamento furado, pra deixar vazar tudo o que entra nele. Tudo sai, não só por bosta e mijo, mas também pela respiração. Cada partícula que circula nos meus pulmões, a hora que encontra o céu novamente, leva alguma coisa com a ajuda desse vento negro que balança as flores dos canteiros das madames do edifício aqui da frente.
Uma vez você tenta amizade, depois amor; tenta sorrisos e abraços e conversas e conversas e conversas. Mistura todos esses intentos pra ver se forma alguma coisa bonita, pra ver se deixa a si próprio bonito. Eis que você sente a ferida ficar maior em vez de diminuir e cobre os olhos pra não ter que ver a hemorragia e a carne toda cuspir na sua cara.
Tudo isso cansa, as pessoas cansam e você mesmo acaba cansando as pessoas e tudo isso e essa porra toda termina por te engolir. Mas sabe, é tanta vida morrendo dentro da gente. Tanta sujeira sendo escarrada das bocas que mais gostamos, que fica mesmo difícil sentir alguma coisa que não seja cansaço.
Aquelas luzes tão pulsantes quanto os ferimentos internos da minha carne refletiam lá fora minha palidez e meu cabelo negro, como um borrão em papel bem claro ao mesmo tempo em que atordoavam minha vista. Cada uma delas lembrava-me beija-flores, mas sem aquele bater de asas veloz e quase imperceptível que me deixava maravilhado quando criança. Eu ficava ali no quintal com a minha vó, tomando um pouco de sol e brincando com os meus sonhos que há tempos já morreram, enquanto esses pássaros tão magros quanto meus dedos bebericavam com seus bicos compridos e finos a agua com mel que ela pendurava no pé de acerola, num daqueles recipientes rodeados por flores de plástico. Nessa época eu ainda gostava do dia e inventava milhões de motivos para acordar bem cedo e abrir minha janela.
O sol tinha lá sua beleza excêntrica no lugar dessa coisa comum e ardida dos dias atuais e eu queria mais dela. Procurava por ela e sempre a encontrava; ou num doce, num inseto diferente ou em alguma das muitas jornadas pelos terrenos baldios e sujos e completamente tomados por mato em cima de mato da rua em que eu morava. Também gostava de conhecer gente e de falar. Os amigos daquela época? Não sei onde foram parar, mas desconfio que estejam juntos com os sonhos, a sete palmos de estrelas moldadas em merda e barro. Tentei cavar algumas vezes, tentei até minha pá imaginaria se perder no turbilhão de fantasmas que carrego comigo; tentei com as mãos também, até que as unhas descolaram, quebraram e meu veneno escorreu pela palma, no pulso, no braço.
Não lembro quando e como todas as coisas se perderam, mas elas não se foram todas de uma vez, isso é fato. Foram caindo uma a uma, das mais bonitas até as mais feias. Meu corpo deve ter um encanamento furado, pra deixar vazar tudo o que entra nele. Tudo sai, não só por bosta e mijo, mas também pela respiração. Cada partícula que circula nos meus pulmões, a hora que encontra o céu novamente, leva alguma coisa com a ajuda desse vento negro que balança as flores dos canteiros das madames do edifício aqui da frente.
Uma vez você tenta amizade, depois amor; tenta sorrisos e abraços e conversas e conversas e conversas. Mistura todos esses intentos pra ver se forma alguma coisa bonita, pra ver se deixa a si próprio bonito. Eis que você sente a ferida ficar maior em vez de diminuir e cobre os olhos pra não ter que ver a hemorragia e a carne toda cuspir na sua cara.
Tudo isso cansa, as pessoas cansam e você mesmo acaba cansando as pessoas e tudo isso e essa porra toda termina por te engolir. Mas sabe, é tanta vida morrendo dentro da gente. Tanta sujeira sendo escarrada das bocas que mais gostamos, que fica mesmo difícil sentir alguma coisa que não seja cansaço.