sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Montanhas e ruas e entranhas

Aquele cômodo de paredes azuladas e janelas entreabertas que há muito fora sinônimo de refugio não era mais como esperar a agua ferver sobre a lenha em chamas, para o chá. Nem como enrolar um baseado em meio à calmaria de uma montanha no inverno, com a doce companhia da solidão dentro da pequena casa com lareira. Também não chegava perto da paz e da guerra que causava aquela voz agitada, tímida como a lua minguante fazendo cocegas nos ouvidos enquanto amarravam seus corpos entre as cobertas no ritmo da chuva que pingava lá de longe, escorrendo no vidro da janela, orquestrando no telhado e nas folhas das árvores e no asfalto. Tudo virou um menos tão grande por ali, que o rapaz deve ter começado a morrer do avesso desde o dia em que soltou a mão pequenina da moça do olhar de jabuticaba pra perdê-la no meio daquela floresta de prédios e fumaça e carros e gente cansada de sofrer na rua ou na rotina assassina dessa vida. Mas foi perceber isso tarde, quando aquele tudo resolveu pular num buraco e ficar escondido, rindo em silêncio. E no meio desse menos que deixou jogado em baixo da cama e esparramado nos lençóis e no sofá de dois lugares da sala, podia sentir o limbo formando nas paredes do estômago, nos pulmões e em cada glóbulo vermelho do corpo.
Ainda conseguia sentir a respiração quente da moça guardada lá dentro, naquele conjunto de nervos e sangue e vazio, vazio, vazio batendo no pescoço, quando escreveu com as lágrimas vermelhas da caneta bic de meio ano num pedaço de papel e pregou aquele amontoado de palavras na cabeceira da cama. “Perdão a você, perdão a mim mesmo. Não sei mais procurar. Nem ser encontrado.”

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Sua vida não é um enlatado americano

Nos perdemos entre as propagandas e os carros e a fumaça do combustível que queima nas ruas, nas pistas, nas garagens, nas fabricas, nos aeroportos, no mar, no coração da gente. Nos perdemos na demência sem limite de pessoas que se dizem normais e racionais, que fabricam bombas e bebem petróleo. Nos perdemos na busca de um amor que só existe na luz azul da televisão, nas historias clichês das novelas e series hollywoodianas e na porra toda que inventam pra tampar o grande buraco que é a nossa realidade. Nos perdemos nos anúncios dos jornais e nas notícias e nas fotos coloridas das revistas. Nos perdemos na fome, no frio, na sede, na solidão estampada nos olhos tristes de tantos outros seres humanos. E morremos uma vez, e morremos outra, perdidos.
No fim, todo aquele pessoal parado ali oferecendo essa espécie de amor portátil, esperando com um sorriso imundo grampeado na cara, enchendo o cu de dinheiro graças a nossa vida medíocre e alienada e cheia de necessidades desnecessárias criadas por essa mídia que dita perfeições mentirosas para mofar e apodrecer nosso cérebro ainda vão vomitar aquela coisa densa e fedida em cima de nós e vão nos mandar correr pra longe depois de arrancar nossas pernas com um serrote feito de sonhos corrompidos. É tanta gente querendo fugir por causa disso cara; tanta gente querendo meter uma bala na própria cabeça que somos forçados a fugir desses outros tantos fugitivos também, pra tentar não explodir antes da hora.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Não importa o quão asquerosa é a cidade, a madrugada sempre é bonita. Na rua, uma leve neblina formava-se por baixo das luzes dos postes, a lua quase cheia começara a dizer adeus da mesma forma em que eu, carregando minha mochila, tentava dizer à Marina. Dentre as muitas coisas que faltavam ali dentro daquele corpo de olhos caramelados e cabelos curtos que cobriam o pescoço, a única que de fato me incomodava era sua falta de espírito; acho mesmo que aquela coisinha ali sentada na varanda, segurando minha mão com a força de um gigante tornara-se muito urbana e muito apegada a um mundo de televisão, desses bem mentirosos. Dizia-me “eu te amo” todas as manhãs, quando eu tentava me levantar da cama sem fazer nenhum ruído, para trabalhar em algum dos meus trabalhos provisórios, mas ela nunca trocaria aquele conforto ilusório que conquistou ali, pela minha presença. Eu sabia disso.
Era como se vivesse dentro de mim um cão selvagem, e muitas vezes ele hibernava como um urso, mas cedo ou tarde acordaria dum pulo e minhas pernas teriam que caminhar mais uma vez. Marina tentava não chorar e também falar alguma coisa que talvez me fizesse ficar. O choro tornou-se mais fácil e escorreu como agua das nuvens naqueles dias pluviais. Abaixei-me, contendo suas lágrimas com os polegares:
- Não devia esconder sua beleza atrás dessa dor que te escorre pelos olhos.
- Pensei que não iria...
- Você sabia, Marina, você sabia.
Passei para trás de sua orelha uma mexa de cabelo que lhe cobria parte do rosto e toquei seus lábios com os meus pela ultima vez. Quando cheguei até o portão, ainda podia ouvir os soluços vindos da varanda. Caminhei um tanto desolado pela calçada até virar a esquina. “Ela bem que podia vir atrás de mim, bem que podia” pensei e por um momento quase voltei, mas logo me veio a cabeça que amor não é algo assim, que se prende.

sábado, 13 de novembro de 2010

Noites

Minhas noites sempre foram longas; não sei se pelo fato da minha dificuldade em dormir ou se pelos cigarros que acabam sendo sempre poucos quando a madrugada entra no quarto a passos pesados, sem bater na porta. Lembro-me com um sorriso bobo cravado na face, daquela noite fria e iluminada em que o tempo não parou. No gramado, você sentada por entre minhas pernas com a cabeça encostada em meu peito enquanto tentava aquecer-te com os braços. Eu não tinha mais cigarros e nem precisaria deles para suportar meus pés congelados e as infinitas horas daquele breu estrelado, que terminou por ser mais finito que minha própria vida. E la estavam dois conjuntos de ossos e carne e pele. Uma lua. Sei la quantas estrelas. E um relógio filho da puta anunciando o fim. Cada corpo caminhou para um lado e a noite assim terminou mais rápida que o piscar triste dos meus olhos, dos olhos de muita gente; justo quando desejei que durasse como as outras tantas que teimam em me tirar o sossego, o sono.
Toda essa falta que sinto desse castanho dos seus olhos sorrindo para os meus, que transborda e me afoga aqui dentro algum dia ainda vai virar motivo de morte. Minha própria morte.

domingo, 7 de novembro de 2010

Uma semana sem álcool. As coisas em minha cabeça tornaram-se tão perturbadoras depois daquele episódio que resolvi dar um tempo. Vaguei por ruas e vielas durante dias e noites a fim de tentar arrumar uma forma de pedir desculpas. Por vezes passei em frente a bares; resisti a todos. Comprava cigarro no mercado e me jogava em qualquer banco de qualquer praça. Tentava dormir, tentava pensar e acabava voltando para a casa, passando mais uma vez no mercado. Nos primeiros três dias, sentia que minha cabeça ia explodir, assim como o resto do corpo. Ela não ligaria, eu não saberia o que dizer pra poder ligar. Escrevi uma despedida, uma carta, era disso que precisávamos; quase optei por deixa-la em sua porta e sumir no mundo, ou me matar e acabar de vez com tudo isso, com esses erros estúpidos, com essa rotina idiota. Ainda tenho duvidas se suicídio não seria mesmo a melhor opção. Mais dois dias passaram e me descobri um covarde.
Além de vagar por ai socando árvores e paredes e postes arrumei alguns textos para traduzir, graças ao meu segundo idioma fluente; era uma forma de ganhar algum dinheiro e também de desviar o curso dos meus pensamentos, mesmo sempre fracassando involuntariamente nessa coisa de desviar cursos. No sexto dia, eu tinha 38 textos traduzidos, prontos para serem entregues. Já com o dinheiro no bolso e de volta a casa, me sentei no sofá, acendi um cigarro. O telefone estático ao meu lado, ali, sugando-me a cada segundo era naquele momento um objeto de tortura. Foram precisos mais dois cigarros para encher meu peito de coragem e fumaça. Tirei do gancho o aparelho, decidido a telefonar. Telefonei. Cada toque me agonizava, eu não sabia ao certo o porque de estar ligando, nem o que diria, e de alguma forma era melhor assim.
- Alô?
Isabela atendeu, sua voz tinha poder pra me curar ou me matar de vez.
- Isabela... - Comecei a falar, sem tempo de concluir.
- Você deve achar que sou palhaça, né?
- Escuta, eu queria...
Ela desligou, pude ouvir o bater do telefone.
Amarrei os sapatos, peguei uma jaqueta e a chave do carro em cima da mesa, lembrei que ele estava sem gasolina há mais ou menos um mês. Esqueci a ideia do carro. Por sorte minhas pernas funcionavam perfeitamente, diferente da minha cabeça. Ela nem morava tão longe, mas chovera a manhã inteira, e eu acabei tropeçando numa parte esburacada da calçada, fui de peito numa possa de agua e barro, levantei rápido com aquela lama toda escorrendo pela roupa. Corri por cerca de meia hora até chegar em frente a casa de Isabela. A rua ja estava escura, um feixe de luz passava pela janela da frente. A casa era simples e bonita, diferente do meu apartamento e também não tinha muro ou portão, apenas um caminho de pedras que passava pelo jardim e levava até a porta principal. Me aproximei e toquei a campainha, ouvi passos pelo assoalho lá dentro. A porta abrira vagarosamente. Ela estava descalça, usava um shorts azul, desses de dormir e uma camiseta branca. Fui recebido por algumas lágrimas e vários socos contra o peito. Logo eles cessaram e ela me abraçou sem importar-se com a sujeira:
- Seu idiota, seu idiota - dizia
- Isa, desculpa
- Seu idiota - continuou a dizer.
Pedi desculpas mais uma vez, acho que podia contar nos dedos as vezes em que pedi desculpas em toda a minha vida. Ergui seu rosto, dei um beijo na testa depois outro, explorando seus lábios. Naquela noite tomamos banho juntos e também dormi por lá. Nunca antes havia deitado ali, naquela cama; isso deixou as coisas com outro gosto, não sei ao certo explicar. Havia amanhecido e seguíamos deitados, eu olhava para o teto, dessa vez livre daqueles pensamentos dolorosos; Isabela rolou novamente para cima de mim. Estava sorrindo, mal sabia ela o quanto eu precisava daquele sorriso:
- Somos loucos, não somos? - perguntou ela
Eu franzi as sombrancelhas e a abracei.
- Bom, acho bem provável...
- Melhor assim - ela riu.
Beijou meu rosto por inteiro varias vezes e dormimos novamente; da forma em que eu desejava dormir para sempre. Corpos nus. Corpos entrelaçados.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Duas semanas. Duas semanas que não encontro nem céu, nem inferno aqui dentro dessa poça vermelha em que noite após noite costumo me afogar. Afundo-me na coberta, sem frio, sem calor, sem amor, sem nada de nada. As vezes é como se eu fosse uma alma perdida e cega, que deixa esse corpo esculpido de carne e ossos e sangue na margem do esquecimento para flutuar numa galeria circular e escura, caótica, na espera de coisas que nunca vão aparecer, nem retornar e que só vão aumentar a invalidez dos gestos que tenho tomado mesmo pensando num sorriso sem mascara. Te aviso agora, antes que passes por aqui; quando possível abandone a esperança, ela é uma espécie de duvida e muitas vezes não depende apenas de ti, ela abre feridas profundas, doloridas que talvez nunca mais fechem. Perceba que o que resta a fazer é abraçar a certeza, ela por mais indigesta que seja, te arrancará menos pedaços.
Mas aqui dentro, nesse lugar em que me perdi, descobri que não é preciso morrer para estar morto. Nem nascer para chegar até a morte. E a única coisa que espera tão paciente quanto a esperança e o sol que se diz tão poderoso mas gosta de mentir, é a lua com sua força tímida, pequena, mas que ilumina até mesmo as noites mais escuras.
O ultimo dia há de ser feio como nunca antes algum outro dia chegou a ser, o sol irá apagar e só ela, a lua, terá forças para continuar espiando.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Finados

Miguel dormiu o dia inteiro, jogado em sua cama que ficava colada na parede do lado esquerdo do seu casebre de um comodo e meio (meio para o cubículo, conhecido como banheiro). Se via nocauteado a cada feriado e o melhor que podia fazer, já que não tinha dinheiro, nem paciência pra muita gente, era dormir.
Dizia ele que a fonte do seu cansaço corriqueiro não vinha apenas da sua rotina sórdida de trabalho naquela maldita usina, mas também dos seguidos infortúnios em que tinha o dom de se meter durante toda sua vida mal resolvida. Tinha uma mãe tão obcecada em religião e santos estúpidos que uma vez, quando ainda era pequeno, foi esquecido por ela dentro da igreja e uma freira suja e mal cheirosa, como disse ele, teve de levá-lo pra casa, ela foi reclamando o caminho inteiro, enquanto Miguel arrastava os pés e chutava pedrinhas para o meio da rua. Depois do acontecido, prometeu a si mesmo que nunca mais entraria numa igreja. Cumpriu.
Por volta das seis da tarde se viu obrigado a levantar já que o maldito telefone resolveu brincar com seus tímpanos. Levantou, esfregou os olhos, resmungou umas coisas ignorantes em voz baixa e caminhou até o aparelho:
- Fala
- Miguel, rapaz tentei falar com você o dia todo, o que andou fazendo?
- Andei dormindo feito um morto mesmo.
- Baita homenagem não? - riu o cara do outro lado da linha
E Miguel pigarreou, estufou o peito e respondeu calmo, com todo o seu bom humor.
- Realmente, mas a verdadeira tragédia é que sempre aparece um cretino pra estragar meu sono eterno.
Desligou. Ele nunca soube quem era.