quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

As formigas plantaram coisas feias na colônia

É segunda-feira, o vento forte brande sua foice gélida contra a janela, o despertador de cabeceira tilinta num ruído frenético, sujo. Ele já está acordado, não dormiu essa noite. Estende um dos braços pra fora da cama e esmurra o aparelho portador das horas, fazendo o mesmo ficar sem voz. Abre a janela e elas já estão todas lá, naquele ritmo macabro dos dias; pessoas e carros aos montes correndo pela rua como formigas pertencentes a uma única e gigantesca colônia, trabalhando para uma só cabeça.
Dias e rotina e pessoas e dinheiro e amor. Tudo isso é demais para ser digerido em uma só vida. Essas coisas formam uma combinação mortal, uma mistura mais poderosa que a formula da bomba atômica, pensa ele. Nunca consegue encontrar um caminho para entender a sua própria raça estúpida que traça sorrindo um final precoce para a alegria alheia. As coisas bonitas ficam todas distantes da realidade que ele vê e sente.
Dezenove anos, está na maldita flor murcha e preta da idade, com a alma morta, sangrando por todos os orifícios, vendendo docinhos vencidos numa padaria escondida de esquina que mais parece um buraco fundo e húmido. Tem olhos tão negros quanto uma cova; eles indicam um precipício, mas no fundo, bem no fundo têm um brilho, uma luz amarela e cintilante que ninguém vê. Nem mesmo aqueles que tentam arrombar aos socos e pontapés a pequena porta da sua solidão sem saber que essa sempre está aberta, implorando por uma nuvem branca.
Gosta de calmantes e bebidas alcoólicas. Não se sente a ultima ovelha do rebanho quando está bêbado, nem o anormal e muito menos inferior a qualquer outro ser que também tenha cu. Quando encosta sua cabeça doente e bêbada no travesseiro e fecha os olhos para adormecer, sonha com uma overdose. Sempre acorda com metade do corpo espalhado para fora do colchão, olhando a mancha de bolor presente no teto irritada com o barulho do despertador, sente-se triste pelo que é, culpado pela preocupação inútil da sua mãe. Ele sabe que ela merecia o melhor filho do mundo, mas que nunca vai chegar perto disso e sente vontade de dizer “desculpa mãe, eu te amo” e vomita por ter bebido demais e por ter acordado outra vez. Tem também que sair catando os retalhos dele mesmo, do sonho, da lágrima que ficam espalhados ao redor da cama. E ele sempre o faz aos passos desanimados e silenciosos de uma dança sem fim, enquanto as formigas já estão lá fora.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O animal está também dentro do ralo

A conheci numa dessas tabacarias minúsculas que vendem mais revistas do que produtos relacionados ao tabaco em si. Vestia um apertado vestido vermelho decotado que terminava pouco antes dos joelhos e por cima usava um casaquinho preto, com as mangas arregaçadas até os cotovelos; seu corpo estava bem moldado em toda a vestimenta e tive a impressão que tinha aparecido ali só para terminar de afundar minha vida nos meus sonhos lúcidos e desajustados. Eu comprava dois maços de cigarros que deviam durar até o dia seguinte quando ela apoiou suas finas mãos brancas, donas de uma pele que mais parecia um veludo sobre o balcão, direcionou seu olhar amarelado de pantera para o velho vendedor, pedindo para que cobrasse uma revista de palavras cruzadas. Fiquei observando pelo canto dos olhos e notei todas as sardas por cima do nariz e a pequena cicatriz no supercílio. Muitos rapazes diriam que ela era magra demais e muito pálida, mas isso terminava de construir o retrato que acabara de me engolir pelas pernas. Seu nome era Clarice.
Tomamos um café nesse mesmo dia e duas semanas depois ela estava morando em meu apartamento. Fato que me fez constatar os sérios problemas mentais que carrego comigo desde a infância.
Os três primeiros meses foram terríveis. Eu tinha vontade de me afogar na pia toda vez que entrava no banheiro de manhã pra tomar banho antes de comer meu pão murcho de três dias, esquentado na chapa com manteiga, e calçar os sapatos empoeirados e gastos para caminhar em meio a toda aquela imundice mundana até o trabalho. Clarice tinha uma longa cabeleira ruiva que entupia o ralo do chuveiro pelo menos três vezes por mês e quando isso acontecia lá ia eu enfiar a mão naquele buraco seboso e fedido pra puxar para fora todo aquele emaranhado de fios e atirá-lo no lixo.
Decidi que era melhor que fosse embora e ela disse “ok cretino.” Mas continuou em casa como se fizesse parte do lugar, apenas dormia em outro quarto. Fiz-me de durão por dois dias e depois desses, sempre acabava indo parar no quarto dela durante a noite e nós transávamos e acordávamos atrasados para o trabalho. Uma semana nesse ritmo e aquilo continuava ali, entalando e entupindo.
Demorei um tempo para perceber que ele estava ali na ponta dos fios emaranhados dentro do meu ralo e até mesmo nos vãos dos tacos do piso. Esse animal chamado amor caiu de paraquedas por cima da minha cabeça e invadiu minha solidão sem nem dizer o sobrenome e logo um par de pernas e braços junto aos meus aquecendo os lençóis continuamente tinha ocupado o lugar de todas as coisas tristes que acumulei durante minha vida de sonhos estilhaçados e caminhos escuros. Clarice está de volta em minha cama e os cabelos nunca saíram de lá.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Menina dos olhos de jabuticaba:
Através de toda a agua e sal que se encontra entre nossos pés, te escrevo essa carta - que nunca enviarei - devido a minha covardia tão estúpida quanto eu mesmo fantasiado de pêra e dançando alguma merda no jardim de infância.
Eu podia encher esse papel de palavras bonitas, mas isso não vem ao caso e as palavras bonitas também já foram atiradas pra longe de mim, da mesma forma em que arremessamos ao nada uma garrafa vazia de vodka.
Aqui existem coisas tão belas que nem devem caber nos seus olhinhos de televisão; isso não significa que não existam coisas feias, muito pelo contrario já que fazem parte desse nosso mundo já abalado e sem volta, inclusive conheci algumas "favelas" e também encontrei gente pedindo esmola, mas disso já vemos aos montes por ai. Pensei em mandar alguns postais junto com essa carta; comprei um bem bonito do castelo dos mouros e outro que mostra vários pontos de Lisboa mas não me dei ao trabalho de sela-los pois como já disse, não enviarei e até acho que a sua parte nem se interessaria em receber. Estou quase arrumando um emprego temporário pra janeiro e pretendo fazer alguns cursos. Volto mesmo no carnaval, como se isso ainda te importasse alguma coisa.
Espero que essa sua mania de tentar ser grande sem crescer, ainda te sirva de alguma coisa num futuro próximo, ou distante que seja. No mais, continue enlatada nesses programas idiotas, á procura de algum personagem esdrúxulo e perfeito. Para isso, desejo-te toda a sorte e a coragem que você diz faltar a mim.
A saudade fica e a cerveja também.

Sinceramente,
Guilherme.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Amassou a bituca no cinzeiro, olhou para o teto e para o chão e para o teto novamente. Passou a mão no cabelo, suspirou tentando não perder a calma. Mal sabia que já havia perdido há um mês:
- Uma pessoa que não aceita ser ajudada não deve pedir ajuda, sabia?
- Sempre deixei claro que sou dessas que mudam fácil de opinião...
- O que você queria de mim fazendo todo aquele discurso, todo aquele drama barato então? Queria foder a minha vida? Queria?
- Mas eu falei sério...
- Antes não queria paz? Não te deixei em paz, porra? Por que me procurou?
- Você nunca me entende.
- Ouvi tudo o que tinha a dizer, mudei as coisas e corri e me joguei. Agora você vem com isso e diz que simplesmente mudou de ideia?
- É, foi... Foi isso.
- Sua fodida, vá a merda junto com suas mudanças, suas indecisões. Isso não é um jogo ou brinquedo! - Abriu a porta e gesticulou para a garota sair.
- Grosso, idiota. Nunca me entende.
- Vá! E nem perca tempo pensando em mais um monte de lixo pra me falar!
Bateu a porta com tamanha brutalidade que a chave desprendeu-se da fechadura e foi de encontro ao piso, provocando um ruído agudo.
Sentou na poltrona e deixou aquela coisa estúpida vazar pelos olhos caídos; cinco anos de choro engasgado, preso na imundice de seu interior.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Vomitando em margaridas

P resolveu acompanhar seu amigo. O bar era supostamente um lugar incrível e cheio de gente interessante. Ficar em casa num sábado à noite era um absurdo dizia A, que chegou buzinando. P olhou pelas frestas da veneziana e lá estavam em meio à escuridão da rua, as luzes do Astra preto, esperando impacientemente. Ele desceu as escadas, pegou a chave da casa, acenou para seus avós que assistiam alguma merda dessas que passam na televisão e sumiu pela porta da frente.
Já no carro, apertou o cinto e bateu a porta com força. Estava irritado por sentir-se praticamente obrigado a sair da cama. A sorriu e foi arrancando enquanto começava com a ladainha de sempre.
- Então cara, que bom que vai hoje, open bar... 25 reais!
- Hm.
- Sem contar que vai estar lotado, muita mulher!
- É...
- Até você vai pegar alguém hoje!
- Tá, tá.
Deram duas voltas no quarteirão para conseguirem estacionar o carro. O lugar realmente estava lotado, muitas eram as rodas de amigos, varias garotas acompanhadas e também sozinhas... Garotas bonitas. Ainda assim, tudo aquilo parecia outro mundo para P, todos ali pareciam bestas de saliva corrosiva. Verdadeiros monstros prontos para o ataque e tudo o que ele queria era uma garrafa de rum, as paredes do quarto e sua cama e suas músicas, chuva também, muita chuva.
Encontraram ali mais alguns amigos e foram em direção ao balcão. Open bar de tequila era uma coisa mágica naquele momento, P virou duas logo de cara e já arrematou uma cerveja.
- Ei cara, vai com calma – falou algum dos rapazes
Pouco a pouco a roda foi sumindo, desintegrando. Vez ou outra, algum dos amigos que antes estavam ali passava com alguma menina bonita nos braços.
P já estava na oitava lata de cerveja, depois de algumas outras doses de tequila, parado sozinho em frente ao balcão quando apareceu A e duas garotas.
- Bom, esse é o meu amig... Oh merda, outra vez?
- Qual é? Não me incomode!
As garotas começaram a dar risinhos sarcásticos e seus belos olhos ficaram carregados de deboche.
- Olha, ele só está um pouco bêbado, mas é um cara legal.
- Eu acho que ele vai vomitar... – disse uma das meninas.
- Que nojo, eu acho que ele babou cerveja, vejam na camiseta. – falou a outra
- Não vou vomitar vadias, saiam daqui todos vocês! – gritou P.
- Ele é poeta, escreve... Não sei por que faz isso, juro que é um cara legal. Semana que vem ele não estará bêbado, eu prometo Priscila.
Os três foram se afastando e desaparecendo pouco a pouco no meio do povo, A abraçava a outra menina e dava alguns beijos em seu pescoço, até que sumiram da vista opaca de P, alterada pela bebida.
P resolveu sair fumar um cigarro. Vomitou no canteiro de margaridas, procurou nos bolsos algum dinheiro, achou 10 reais. Caminhou pela avenida a passos tortos e antes de ir para casa gastou o resto da grana em pó. No caminho, vomitou mais duas vezes, arranhou os joelhos e a testa e os braços. Quando viu-se trancado no quarto as 4:30 da manhã, todo sujo e completamente dopado pôde sentir-se um pouco melhor, um pouco seguro, talvez feliz. Tentou escrever no caderno que sempre ficava aberto em cima da bancada, antes de cair.
Acordou às duas da tarde, com a batendo na porta. O lugar cheirando azedo e álcool, a cabeça pregada no caderno. Nas folhas todas as palavras estavam borradas por vomito e talvez algumas lágrimas.

sábado, 11 de dezembro de 2010

9/12/2010

Sentou ao meu lado uma moça. Nossas poltronas ficavam bem na asa, estávamos no voo TP 4198, noturno com destino à Lisboa. A garota falava bem baixinho e fez algumas perguntas sobre a bagagem de mão e o sinto de segurança.
- É seu primeiro voo, não? Perguntei sorrindo. Muitas vezes careço de simpatia, mas não dessa vez.
- Uhum, e meu irmão disse que isso aqui era mais confortável que ônibus, tá me parecendo mais apertado, isso sim.
- As poltronas que se transformam em cama só existem na primeira classe. Nós aqui da várzea temos que sofrer um pouco mais com os pés inchados e as dores nas pernas...
- E esses cintos são feitos só pra gente bem magrinha né?
Eu ri, e a ensinei como regular.
As aeromoças começaram a explicar os procedimentos de segurança, gesticulando e dizendo para acompanharmos pela televisão presente em cada uma das poltronas. Logo o avião estava em movimento, direcionando-se para a pista de decolagem.
- E então é sua primeira vez e já vai na asa, bem onde da pra ver as coisas todas balançando...
Ela riu tentando disfarçar a ansiedade.
- Não fique me assustando, vamos viajar juntos por bastante tempo e eu ainda quero gostar de você!
A comissária anunciou no auto-falante para mantermos as poltronas retas e os cintos apertados. Senti a nave acelerar na pista até os trens de pouso deixarem o chão, e a vista de Campinas pela janela foi ficando pequena e pequena, lá de cima ela parecia uma maquete iluminada para o natal. A moça logo voltou a falar:
- Então prazer, Ana! – me esticou a mão.
- Prazer... Guilherme.
Conversando um pouco mais, descobri que ela estava indo para a Inglaterra visitar um irmão. Também que era chilena, mas morava desde muito pequena no Brasil. Seu espanhol era fluente, já que em casa todos conversavam apenas em castellano. Fato que aproveitei para praticar um pouco meu espanhol também. Chutei que tivesse uns 22 anos, por causa da voz e da aparência, mas tinha 28.
Passávamos de uma hora de voo e as garotas do avião vieram trazer o jantar. Uma tentativa de frango, acompanhada por arroz e um pão. De sobremesa um bolinho meio seco e uma salada de frutas sem gosto. Aliás, tudo no avião acaba ficando meio sem gosto depois da primeira vez. Comida, banheiros, poltronas, gente que ronca, turbulências... Pedi um vinho para acompanhar o banquete.
Como viajávamos anoite, após o jantar as luzes foram apagadas e aqueles não afortunados com o sono, iguais a mim ficaram apenas com a companhia da pequena televisão touchscreen. Entrei na seção de filmes e passei o resto das minhas primeiras horas de prisão no ar assistindo um, que foi interrompido umas três ou quatro vezes com avisos sobre áreas de turbulência, e eu dizia mentalmente “pro inferno as turbulências, deixem-me ver o filme em paz.” Ana dormiu fácil, o medo tinha ido embora rápido.
Quando o filme acabou, resolvi tentar ao menos cochilar um pouco. Entrei na seção de musicas e lá estava disponível o CD Death Magnetic do Metallica, coloquei pra tocar. De olhos fechados eu pensava demais na viagem, o que trouxe das nuvens para dentro de mim certa nostalgia e medo de coisas velhas, tão novas e nenhuma motivação para dormir. O sono sempre foi um cara durão comigo e costuma ser pior, principalmente quando deixo do outro lado do oceano uma coisinha estática e inacabada, me fazendo cara feia.
Pensei num aviso sobre turbina pegando fogo, e toda aquela gente gritando “MEU DEUS MEU DEUS MEU DEUS, OH VAMOS MORRER” enquanto eu tentaria curtir alguma musica ou filme tão estupido quanto eu, no lugar das malditas turbulências. Mas se o avião começa a cair, desligariam todo aquele programa de entretenimento e eu não teria outra saída a não ser ficar rindo ao som dos berros desesperados para o senhor coisa nenhuma até o momento do BUM! Acabei por conseguir dormir... Um pouco.
Despertei após umas duas horas, com a certeza de que apesar daquele aviso tardio sobre a viagem e toda a história e aquela falação que saiu de ti e me fodeu de alguma forma, devia ter enfiado você na mala. Uma aeromoça passou no escuro do corredor oferecendo agua, pedi mais um vinho, e logo estava tudo bem.
Amanheceu e nos entregaram o café da manhã, tão sem gosto quanto às outras coisas. Logo o avião começou a baixar e já pude avistar a costa de Lisboa, linda com todos os seus barcos e praias e pedras. Sobrevoamos parte da cidade e ele estava pronto para aterrissar. Ouvi um menino vomitar num daqueles saquinhos para enjoo e uma senhora da fileira do meio também acabou passando mal. Terminei por pensar em você ali no lugar da Ana e em como poderia ficar ainda mais bonita essa Lisboa.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Isabela sempre acordava primeiro e me fazia cocegas nos pés. Eu resmungava baixinho, mas no fundo amava de verdade tudo aquilo, amava cada fio de cabelo que ficava abandonado pela cama. Seus dedos finos e suas unhas, a maioria das vezes pintadas de preto ou de algum tom azul correndo pela sola do pé, de alguma forma faziam todo o ferro do meu corpo circular rapidamente. E logo eu estava sentado, com as pernas encolhidas e os olhos murchos de sempre, admirando aquele sorrisinho sonolento tão ali para mim, parado ao pé da cama.
Levantei para alcançar minhas roupas que estavam jogadas sobre uma cadeira que ficava ali no quarto, acho mesmo que sua única utilidade era aquela: facilitar a vida pela manhã.
- Sabe, sonhei com um lugar bonito – disse Isabela enquanto vestia um vestido daqueles bem caseiros.
- Ah é? Que espécie de lugar?
- Era um bosque, a relva mesclava-se em verde e um quase azul, tinha muitas árvores frutíferas e muitos pássaros pretos e brancos e vermelhos. Tinha até um urso imenso, marrom escuro que tentava pegar frutinhas de uma das árvores e não estava nem ai pra gente sentado ali, quase do lado dele.
- Conheço um lugar mais bonito que esse – fui até a janela e acendi um cigarro.
- Se sonhou com algum melhor, escreva algo sobre ele.
- Posso até escrever, mas o lugar que eu estou falando, é esse quarto aqui.
- Puta merda, isso aqui?!
- Tem uma diferença grande entre o meu lugar bonito e o seu, viu... É isso que faz o meu valer bem mais.
- Que diferença?
- Isso aqui é real, você é real, aquela cadeira ali também é real. Nada aqui dentro é ilusório. Apesar de que às vezes eu duvido que você esteja mesmo metida na minha vida.
Queria dizer que Isabela transava bem, abraçava bem, sorria bem, bebia bem e tinha uma porção de defeitos. Ali dentro, naquele quarto apertado eu me sentia feliz como poucas vezes me senti; e aquele amontoado de paredes e guarda roupas e cama e janela e cadeira porta roupas era pra mim o lugar mais bonito jamais visto em sonhos ou fotografias ou museus, era onde eu estava livre de qualquer mentira, de qualquer suicídio mental que por vezes me vi obrigado a cometer, livre também de olhos famintos e sangue e vomito e toda a merda que cai do céu, direto pra dentro da gente. Eu olhava aquela imensidão pra fora da janela, a cidade toda e aquela fumaça e aqueles prédios todos e as pessoas mais desesperadas que o motor de seus carros e tinha certeza: O lugar bonito era o quarto, nada mais além.
Isabela caminhou até mim e me beijou a nuca. Parou ao meu lado apontando para o céu e me contou algumas coisas sobre as nuvens e suas formas e como sua mãe lhe fazia dormir quando pequena, poucos dias depois do pai morrer num acidente de carro; ela lhe dizia que durante a noite os pedacinhos de nuvem no céu se juntavam com o vento e quando o sol apontasse lá longe, já poderia enxergar o rosto do pai numa grande nuvem que tomaria todo aquele azul infinito.
- E sempre que eu acordava conseguia mesmo ver, até quando não tinha nuvem nenhuma e aquilo me deixava menos triste. Minha mãe sempre foi uma mulher muito forte... – concluiu.
- Você deve ser parecida com ela...
Acariciei seu rosto com o polegar direito e ganhei mais um sorriso, acompanhado de um beijo antes de calçar os sapatos para ir à padaria.
- E vê se da um jeito de trazer um vinho também! - gritou Isabela lá do quarto, quando encostei a mão na maçaneta da porta que ligava a sala com a rua.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Montanhas e ruas e entranhas

Aquele cômodo de paredes azuladas e janelas entreabertas que há muito fora sinônimo de refugio não era mais como esperar a agua ferver sobre a lenha em chamas, para o chá. Nem como enrolar um baseado em meio à calmaria de uma montanha no inverno, com a doce companhia da solidão dentro da pequena casa com lareira. Também não chegava perto da paz e da guerra que causava aquela voz agitada, tímida como a lua minguante fazendo cocegas nos ouvidos enquanto amarravam seus corpos entre as cobertas no ritmo da chuva que pingava lá de longe, escorrendo no vidro da janela, orquestrando no telhado e nas folhas das árvores e no asfalto. Tudo virou um menos tão grande por ali, que o rapaz deve ter começado a morrer do avesso desde o dia em que soltou a mão pequenina da moça do olhar de jabuticaba pra perdê-la no meio daquela floresta de prédios e fumaça e carros e gente cansada de sofrer na rua ou na rotina assassina dessa vida. Mas foi perceber isso tarde, quando aquele tudo resolveu pular num buraco e ficar escondido, rindo em silêncio. E no meio desse menos que deixou jogado em baixo da cama e esparramado nos lençóis e no sofá de dois lugares da sala, podia sentir o limbo formando nas paredes do estômago, nos pulmões e em cada glóbulo vermelho do corpo.
Ainda conseguia sentir a respiração quente da moça guardada lá dentro, naquele conjunto de nervos e sangue e vazio, vazio, vazio batendo no pescoço, quando escreveu com as lágrimas vermelhas da caneta bic de meio ano num pedaço de papel e pregou aquele amontoado de palavras na cabeceira da cama. “Perdão a você, perdão a mim mesmo. Não sei mais procurar. Nem ser encontrado.”

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Sua vida não é um enlatado americano

Nos perdemos entre as propagandas e os carros e a fumaça do combustível que queima nas ruas, nas pistas, nas garagens, nas fabricas, nos aeroportos, no mar, no coração da gente. Nos perdemos na demência sem limite de pessoas que se dizem normais e racionais, que fabricam bombas e bebem petróleo. Nos perdemos na busca de um amor que só existe na luz azul da televisão, nas historias clichês das novelas e series hollywoodianas e na porra toda que inventam pra tampar o grande buraco que é a nossa realidade. Nos perdemos nos anúncios dos jornais e nas notícias e nas fotos coloridas das revistas. Nos perdemos na fome, no frio, na sede, na solidão estampada nos olhos tristes de tantos outros seres humanos. E morremos uma vez, e morremos outra, perdidos.
No fim, todo aquele pessoal parado ali oferecendo essa espécie de amor portátil, esperando com um sorriso imundo grampeado na cara, enchendo o cu de dinheiro graças a nossa vida medíocre e alienada e cheia de necessidades desnecessárias criadas por essa mídia que dita perfeições mentirosas para mofar e apodrecer nosso cérebro ainda vão vomitar aquela coisa densa e fedida em cima de nós e vão nos mandar correr pra longe depois de arrancar nossas pernas com um serrote feito de sonhos corrompidos. É tanta gente querendo fugir por causa disso cara; tanta gente querendo meter uma bala na própria cabeça que somos forçados a fugir desses outros tantos fugitivos também, pra tentar não explodir antes da hora.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Não importa o quão asquerosa é a cidade, a madrugada sempre é bonita. Na rua, uma leve neblina formava-se por baixo das luzes dos postes, a lua quase cheia começara a dizer adeus da mesma forma em que eu, carregando minha mochila, tentava dizer à Marina. Dentre as muitas coisas que faltavam ali dentro daquele corpo de olhos caramelados e cabelos curtos que cobriam o pescoço, a única que de fato me incomodava era sua falta de espírito; acho mesmo que aquela coisinha ali sentada na varanda, segurando minha mão com a força de um gigante tornara-se muito urbana e muito apegada a um mundo de televisão, desses bem mentirosos. Dizia-me “eu te amo” todas as manhãs, quando eu tentava me levantar da cama sem fazer nenhum ruído, para trabalhar em algum dos meus trabalhos provisórios, mas ela nunca trocaria aquele conforto ilusório que conquistou ali, pela minha presença. Eu sabia disso.
Era como se vivesse dentro de mim um cão selvagem, e muitas vezes ele hibernava como um urso, mas cedo ou tarde acordaria dum pulo e minhas pernas teriam que caminhar mais uma vez. Marina tentava não chorar e também falar alguma coisa que talvez me fizesse ficar. O choro tornou-se mais fácil e escorreu como agua das nuvens naqueles dias pluviais. Abaixei-me, contendo suas lágrimas com os polegares:
- Não devia esconder sua beleza atrás dessa dor que te escorre pelos olhos.
- Pensei que não iria...
- Você sabia, Marina, você sabia.
Passei para trás de sua orelha uma mexa de cabelo que lhe cobria parte do rosto e toquei seus lábios com os meus pela ultima vez. Quando cheguei até o portão, ainda podia ouvir os soluços vindos da varanda. Caminhei um tanto desolado pela calçada até virar a esquina. “Ela bem que podia vir atrás de mim, bem que podia” pensei e por um momento quase voltei, mas logo me veio a cabeça que amor não é algo assim, que se prende.

sábado, 13 de novembro de 2010

Noites

Minhas noites sempre foram longas; não sei se pelo fato da minha dificuldade em dormir ou se pelos cigarros que acabam sendo sempre poucos quando a madrugada entra no quarto a passos pesados, sem bater na porta. Lembro-me com um sorriso bobo cravado na face, daquela noite fria e iluminada em que o tempo não parou. No gramado, você sentada por entre minhas pernas com a cabeça encostada em meu peito enquanto tentava aquecer-te com os braços. Eu não tinha mais cigarros e nem precisaria deles para suportar meus pés congelados e as infinitas horas daquele breu estrelado, que terminou por ser mais finito que minha própria vida. E la estavam dois conjuntos de ossos e carne e pele. Uma lua. Sei la quantas estrelas. E um relógio filho da puta anunciando o fim. Cada corpo caminhou para um lado e a noite assim terminou mais rápida que o piscar triste dos meus olhos, dos olhos de muita gente; justo quando desejei que durasse como as outras tantas que teimam em me tirar o sossego, o sono.
Toda essa falta que sinto desse castanho dos seus olhos sorrindo para os meus, que transborda e me afoga aqui dentro algum dia ainda vai virar motivo de morte. Minha própria morte.

domingo, 7 de novembro de 2010

Uma semana sem álcool. As coisas em minha cabeça tornaram-se tão perturbadoras depois daquele episódio que resolvi dar um tempo. Vaguei por ruas e vielas durante dias e noites a fim de tentar arrumar uma forma de pedir desculpas. Por vezes passei em frente a bares; resisti a todos. Comprava cigarro no mercado e me jogava em qualquer banco de qualquer praça. Tentava dormir, tentava pensar e acabava voltando para a casa, passando mais uma vez no mercado. Nos primeiros três dias, sentia que minha cabeça ia explodir, assim como o resto do corpo. Ela não ligaria, eu não saberia o que dizer pra poder ligar. Escrevi uma despedida, uma carta, era disso que precisávamos; quase optei por deixa-la em sua porta e sumir no mundo, ou me matar e acabar de vez com tudo isso, com esses erros estúpidos, com essa rotina idiota. Ainda tenho duvidas se suicídio não seria mesmo a melhor opção. Mais dois dias passaram e me descobri um covarde.
Além de vagar por ai socando árvores e paredes e postes arrumei alguns textos para traduzir, graças ao meu segundo idioma fluente; era uma forma de ganhar algum dinheiro e também de desviar o curso dos meus pensamentos, mesmo sempre fracassando involuntariamente nessa coisa de desviar cursos. No sexto dia, eu tinha 38 textos traduzidos, prontos para serem entregues. Já com o dinheiro no bolso e de volta a casa, me sentei no sofá, acendi um cigarro. O telefone estático ao meu lado, ali, sugando-me a cada segundo era naquele momento um objeto de tortura. Foram precisos mais dois cigarros para encher meu peito de coragem e fumaça. Tirei do gancho o aparelho, decidido a telefonar. Telefonei. Cada toque me agonizava, eu não sabia ao certo o porque de estar ligando, nem o que diria, e de alguma forma era melhor assim.
- Alô?
Isabela atendeu, sua voz tinha poder pra me curar ou me matar de vez.
- Isabela... - Comecei a falar, sem tempo de concluir.
- Você deve achar que sou palhaça, né?
- Escuta, eu queria...
Ela desligou, pude ouvir o bater do telefone.
Amarrei os sapatos, peguei uma jaqueta e a chave do carro em cima da mesa, lembrei que ele estava sem gasolina há mais ou menos um mês. Esqueci a ideia do carro. Por sorte minhas pernas funcionavam perfeitamente, diferente da minha cabeça. Ela nem morava tão longe, mas chovera a manhã inteira, e eu acabei tropeçando numa parte esburacada da calçada, fui de peito numa possa de agua e barro, levantei rápido com aquela lama toda escorrendo pela roupa. Corri por cerca de meia hora até chegar em frente a casa de Isabela. A rua ja estava escura, um feixe de luz passava pela janela da frente. A casa era simples e bonita, diferente do meu apartamento e também não tinha muro ou portão, apenas um caminho de pedras que passava pelo jardim e levava até a porta principal. Me aproximei e toquei a campainha, ouvi passos pelo assoalho lá dentro. A porta abrira vagarosamente. Ela estava descalça, usava um shorts azul, desses de dormir e uma camiseta branca. Fui recebido por algumas lágrimas e vários socos contra o peito. Logo eles cessaram e ela me abraçou sem importar-se com a sujeira:
- Seu idiota, seu idiota - dizia
- Isa, desculpa
- Seu idiota - continuou a dizer.
Pedi desculpas mais uma vez, acho que podia contar nos dedos as vezes em que pedi desculpas em toda a minha vida. Ergui seu rosto, dei um beijo na testa depois outro, explorando seus lábios. Naquela noite tomamos banho juntos e também dormi por lá. Nunca antes havia deitado ali, naquela cama; isso deixou as coisas com outro gosto, não sei ao certo explicar. Havia amanhecido e seguíamos deitados, eu olhava para o teto, dessa vez livre daqueles pensamentos dolorosos; Isabela rolou novamente para cima de mim. Estava sorrindo, mal sabia ela o quanto eu precisava daquele sorriso:
- Somos loucos, não somos? - perguntou ela
Eu franzi as sombrancelhas e a abracei.
- Bom, acho bem provável...
- Melhor assim - ela riu.
Beijou meu rosto por inteiro varias vezes e dormimos novamente; da forma em que eu desejava dormir para sempre. Corpos nus. Corpos entrelaçados.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Duas semanas. Duas semanas que não encontro nem céu, nem inferno aqui dentro dessa poça vermelha em que noite após noite costumo me afogar. Afundo-me na coberta, sem frio, sem calor, sem amor, sem nada de nada. As vezes é como se eu fosse uma alma perdida e cega, que deixa esse corpo esculpido de carne e ossos e sangue na margem do esquecimento para flutuar numa galeria circular e escura, caótica, na espera de coisas que nunca vão aparecer, nem retornar e que só vão aumentar a invalidez dos gestos que tenho tomado mesmo pensando num sorriso sem mascara. Te aviso agora, antes que passes por aqui; quando possível abandone a esperança, ela é uma espécie de duvida e muitas vezes não depende apenas de ti, ela abre feridas profundas, doloridas que talvez nunca mais fechem. Perceba que o que resta a fazer é abraçar a certeza, ela por mais indigesta que seja, te arrancará menos pedaços.
Mas aqui dentro, nesse lugar em que me perdi, descobri que não é preciso morrer para estar morto. Nem nascer para chegar até a morte. E a única coisa que espera tão paciente quanto a esperança e o sol que se diz tão poderoso mas gosta de mentir, é a lua com sua força tímida, pequena, mas que ilumina até mesmo as noites mais escuras.
O ultimo dia há de ser feio como nunca antes algum outro dia chegou a ser, o sol irá apagar e só ela, a lua, terá forças para continuar espiando.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Finados

Miguel dormiu o dia inteiro, jogado em sua cama que ficava colada na parede do lado esquerdo do seu casebre de um comodo e meio (meio para o cubículo, conhecido como banheiro). Se via nocauteado a cada feriado e o melhor que podia fazer, já que não tinha dinheiro, nem paciência pra muita gente, era dormir.
Dizia ele que a fonte do seu cansaço corriqueiro não vinha apenas da sua rotina sórdida de trabalho naquela maldita usina, mas também dos seguidos infortúnios em que tinha o dom de se meter durante toda sua vida mal resolvida. Tinha uma mãe tão obcecada em religião e santos estúpidos que uma vez, quando ainda era pequeno, foi esquecido por ela dentro da igreja e uma freira suja e mal cheirosa, como disse ele, teve de levá-lo pra casa, ela foi reclamando o caminho inteiro, enquanto Miguel arrastava os pés e chutava pedrinhas para o meio da rua. Depois do acontecido, prometeu a si mesmo que nunca mais entraria numa igreja. Cumpriu.
Por volta das seis da tarde se viu obrigado a levantar já que o maldito telefone resolveu brincar com seus tímpanos. Levantou, esfregou os olhos, resmungou umas coisas ignorantes em voz baixa e caminhou até o aparelho:
- Fala
- Miguel, rapaz tentei falar com você o dia todo, o que andou fazendo?
- Andei dormindo feito um morto mesmo.
- Baita homenagem não? - riu o cara do outro lado da linha
E Miguel pigarreou, estufou o peito e respondeu calmo, com todo o seu bom humor.
- Realmente, mas a verdadeira tragédia é que sempre aparece um cretino pra estragar meu sono eterno.
Desligou. Ele nunca soube quem era.

domingo, 31 de outubro de 2010

Mordia os lábios pedindo ao céu carregado de nuvens negras e mórbidas que derrubasse toda a agua em cima do corpo, como num diluvio em que é preciso sair por ai, remando sem barco na tentativa de não se afogar. E era só tentar, no caso sempre se afogava rápido demais, tudo para ele era rápido demais, menos sua vida. O pai vivia dizendo: “Rapaz, você anda meio morto.” Ele respondia: “Não pai, ando mais que morto e minha carcaça ainda teima em respirar.” Nunca gostou de falar muito e o pouco que falava já o cansava de tal forma que o fazia sentir uma vontade desmedida de arrancar a própria língua. Na ultima vez em que resolveu dar um tipo de discurso, munido de coragem numa mão e amor na outra, falou por horas sem parar e terminou perguntando a si mesmo e para o nada que sempre insistiu em ficar ao lado, frio:
- O que fazer quando você fala, fala, fala e leva um tempo enorme pra perceber que passou ele todo falando com uma pedra?

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Apartamento 103

Dobradiças abrem e fecham no apartamento 103.
Os ruídos agudos escorrem pelas frestas da porta, pelas paredes
assim como o choro silencioso, desesperado.
Existe uma vida lá dentro.
E
ninguém quer saber o que acontece ali.
E
ninguém quer saber quem vive no apartamento 103.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Náufrago

Eu queria, por uma única vez, escrever uma coisa bonita, dessas que podemos transformar numa paisagem de outono, com todas as suas folhas secas, amareladas, voando vagarosamente entre os velhos bancos do bosque no ritmo da brisa quase gélida que em pequenos intervalos de tempo tende a soprar.
Devia descrever seus olhos e cílios, seus lábios, seu sorriso incomum em contraste com o céu negro ou azul, podia ser rubro, até verde porque a cor dele tanto faria. Devia escrever uma página inteira apenas com o seu nome a navegar pelas linhas e transbordar pelas margens numa correnteza certeira que acabaria em meus braços confortando e esquentando seu corpo num naufragado abraço.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Contraponto

Metaforicamente falando, seus anseios eram como um poço no qual eu tinha que mergulhar diversas vezes por dia sem saber nadar. Todas as suas frases citadas letra por letra continham um sentido raro, uma verdade um tanto falsificada que me esgotava de uma forma tão boa que eu terminava por sorrir sem perceber. Sorrisos tão raros em mim, tão fáceis com você.
Algumas vezes perdia-me e encontrava-me na beleza dos teus olhos tão aborrecidos, sonolentos e frios que pediam carinho negando aquela dor que se esconde ai por dentro entre veias e artérias, aquela coisa miúda, ao mesmo tempo forte que machucava a mim também á cada vez que você inventava de inverter as infinitas palavras sinceras que lhe dizia tentando com todo o meu ser meio problemático tapar os buracos que a vida foi deixando na tua alma.
Resistiria por muito tempo nessa ideia, se não fosse pela sua mania boba de querer parecer forte usando todo o medo contido nas suas fraquezas para construir um muro em volta de si. Alguém um dia tinha que te falar mesmo que não queira ouvir, esconder-se atrás duma muralha construída de receio não é força guria.
Irremediável tornou-se tudo isso, que cheguei sem querer ao ponto de fugir, recolher-me. Não é nem de longe a melhor coisa a se fazer nem o que quero, mas é sim a única coisa que posso fazer sozinho.

sábado, 16 de outubro de 2010

Acordei com o zunir da mosca que voava em círculos sobre meu rosto. Olhei ao redor, estava jogado em um canto da sala. Aquele aposento marcado por inúmeras sentenças cruéis decretadas por mim a mim mesmo em noites de bebedeiras e indagações mentirosamente verdadeiras cada vez mais parecia me acomodar para uma morte bem-vinda. Um feixe de luz entrava leviano por uma fresta da janela, aquela havia sido mais uma. Em meus braços a garrafa vazia aninhada como um bebê, daqueles mais pequeninos e calmos sussurrava coisas que só eu podia ouvir. Por um momento, lembrei que meus livros patéticos não estão rendendo como antes e preciso procurar qualquer trabalho que não me mate de fome, mas cá estou bêbado, caído. Lembrei também de quando era criança. Se naquele tempo eu fazia de simples pedras ou tocos, brinquedos; hoje faço canetas e garrafas de bebida transformarem-se em armas fatais, bombas atômicas que explodem apenas aqui dentro desse corpo corrompido e apodrecido por um sistema onde abutres carregam no bico toda a nossa carne e alegria, e nas garras o poder.
Deixei de lado as lembranças e a garrafa, me apoiei na pequena mesa onde descansava o telefone para tentar levantar. As pernas bambas e a náusea dificultaram a tarefa, mas na segunda tentativa me coloquei em pé. Entre sofás, mobílias, telefones, janelas, paredes que saltavam girando em minha visão, notei que as varias latas de cerveja que antes estavam jogadas pelo chão, já não se encontravam mais ali.
Às vezes ela era assim, aparecia em silêncio, invisível. Eu podia perceber o odor daquele perfume no meio do cheiro de cigarro que estava alastrado pelo ambiente. Dirigi-me até a cozinha, na esperança de encontrar um pouco de agua na geladeira. Deparei-me com ele, o bilhete delicadamente colocado em cima da mesa, escrito com aquelas letrinhas miúdas em tinta preta, as palavras eram fortes e rancorosas, mas ainda assim carregadas de ternura, tão leves quanto o próprio papel:

"Seu cretino,
recolhi as latas de cerveja. Essa garrafa de rum, essa mesmo que acordou em seus braços, você não soltou...
O banheiro deixei vomitado, porque sei que assim que acordar, vai vomita-lo todo de novo
Eu esperava pelo menos te encontrar acordado, não sei porque ainda fico decepcionada com isso
Tu é um grande filha da puta, mas bem que gosto de você.
Isabela"


Percebi pequenas manchas amarrotadas no guardanapo, provavelmente gotas secas, lagrimas que percorreram todo aquele rosto amável de garota solitária e pingaram com a leveza de uma tonelada de tristeza enquanto o escrito era concluído.
As palavras de Isabela levaram embora toda a minha sede, andei até o banheiro, ele realmente estava lamentável e cheirava a azedo. Olhei para minha imagem refletida no espelho, ela sempre parece rir da minha cara. Já não me pergunto mais o porquê das coisas estarem como estão, nem porque Isabela se dedica tanto a um fracassado idiota como eu. Queria ser um tanto mais forte para conseguir pedir desculpas, para gaguejar um tal de “eu amo você”. Pensei em telefonar, dizer para nunca me deixar sozinho, para vir até aqui me abraçar, me beijar. Pensei nas tantas canalhices da minha parte e concluí que nada mereço.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Toda manhã quando acordo é a mesma luta, a coberta tão confortavel, me prende no colchão. Quando finalmente consigo remove-la e fixar os pés no piso gelado do quarto, me vejo forçado a abrir a janela e então outra luta começa. O céu claro, tão escuro para os meus olhos me assusta. O ar da cidade cherando a estrume me incomoda.As conversas desinteressantes das pessoas fazem meus ouvidos doerem.
Não tenho vontade de sair do meu buraco, não tenho se quer um motivo para sair dele.
Eu perco as horas, perco todo o tempo que antes caminhava a passos de tartaruga entre um ou dois cigarros, mas agora embalado pelo seu rosto tímido, passa despercebido por mim, pelo relógio.
No seus olhos receosos, sempre carregados de duvida, tento encontrar uma única brecha de certeza para poder me apoiar, estender minhas mãos frias em sua direção e envolver teu corpo inteiro num abraço daqueles bem apertados.
Sabe guria, você consegue me livrar desse espirito todo feito de medo que há anos me atormenta e tritura minha capacidade de afeto, de querer buscar.
Não te digo esse mundo, mas meus supostos pesadelos nunca foram tão bonitos.

sábado, 9 de outubro de 2010

Tentei me lembrar

Tentei me lembrar
de como é ter para mim
um abraço sincero
um calor ardente
que não queime a pele.

Do gosto de um beijo
verdadeiro, silencioso
que se repete todas as noites
e não termina por ir embora nas tantas manhãs

Tentei me lembrar
de uma voz doce, baixinha
presente no sorriso de hoje
no corte profundo e pungente de amanhã
nesse tempo todo que custa a passar.

Daquele dia mais frio
onde fora da janela tudo é gelado
mas dentro dela seu corpo é aquecido
pelo meu.

Tentei me lembrar
de tudo aquilo que procuro
pelos caminhos mais íngremes
nos buracos mais escuros
e fundos.

Entre todas as tempestades
que habitam meu eu
procuro
mas não encontro.

sábado, 2 de outubro de 2010

Diagnóstico

Há pouco mais de um mês, percebi que estava cansado, que o mundo me dava náuseas e definitivamente não queria mais ver gente sofrer. Ser médico num hospital público de uma grande cidade nesse enorme e massacrado país, não é fácil. Tudo isso explodiu aqui dentro graças ao Jair, meu último paciente antes de eu pedir o afastamento. Ele sempre estava com um sorriso quase imperceptível, era um desses sorrisos desesperados, que pedem socorro. Resolveu procurar um neurologista porque já não podia aguentar as dores de cabeça, as tonturas constantes. A cada consulta as coisas pioravam, não tinha remédio que amenizasse o desconforto, eu na minha postura de médico já imaginava qual seria o problema e alguns exames, infelizmente, confirmariam meus pensamentos.
Certa vez Jair me contou sobre seus pais. A mãe morrera no parto do irmão mais novo e o pai alcoólatra espancava os filhos a cada porre, até o dia em que foi morto em uma briga de bar. Outra vez me falou também que começou a trabalhar muito cedo, pois tinha que cuidar dos dois irmãos mais novos e queria tomar de volta o que era deles por direito, tudo aquilo que os poderosos levaram sem pedir permissão.
Já havia dado noticias desagradáveis como essa para muitas pessoas, que obviamente entraram em desespero e suplicaram a deus ou qualquer outro santo fictício por alguma espécie de cura milagrosa inexistente, mas esse homem era diferente. Quando abri o exame e lhe informei que era portador de câncer, um tumor maligno no cérebro já em estado avançado e nada mais poderia ser feito, ele nem se quer se deu ao trabalho de mudar a expressão, continuou cabisbaixo com o leve sorriso de sempre , aquele rosto queimado de sol e marcado pela vida, 45 anos com aparência de 70. Algumas lagrimas escorreram pelas rugas que cobriam sua face e quando terminou de chorar as ultimas gotas de esperança que lhe restavam, disse:
- Câncer? Não doutor. Minha doença tem outro nome, realidade...

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Eu estava num boteco, bebado demais para voltar pra casa.
Todos naquele maldito lugar eram bastardos para o mundo, com seus olhos cansados, dentes em falta e suas mãos calejadas. Todos ali estavam morrendo, cada qual da sua maneira. Solidão. Dinheiro. Dividas. Cigarros. Porres e mais Porres. Seres humanos.
Se bebo demais, falo demais. Debruçado sobre o balcão, tentava forçar um dialogo comigo mesmo:
- Céus, tantas formas para se morrer, tantas coisas para te matar e você foi escolher logo o amor...

domingo, 12 de setembro de 2010

A noite estava quente, mas um certo frio resolvia aparecer hora ou outra entre as paredes e os moveis, devido a sombra escura de solidão que se plantava ao meu lado, sob a luz do quarto. A graça do frio consiste em se aquecer de alguma forma, mas quando você sente frio em pleno calor, as coisas costumam ficar complicadas, e eu sabia disso por outras tantas estações.
Isabela é a pessoa mais pura que eu conheço, quero fazer por ela, o que nunca serei capaz de fazer por mim. Não sei porque mas tento ao máximo não demonstrar, deve ser esse meu jeito seco de viver que me faz agir assim, mas nunca faço por mal, espero que ela saiba disso.
Naquela mesma noite, quando me ligou, eu estava bêbado e não queria conversar, o problema é que Isabela sabia como ter minha atenção:
- Ei. Disse ela com aquela voz preguiçosa e realmente anestesiante para os meus ouvidos.
- Isa, não é um bom momento. Tentei disfarçar a voz de cachaceiro ambulante.
- Você ta bêbado, filha da puta.
- Não, digamos que bebi um pouco...
- Pouco? Pouco nada, não conversei com você sobre a bebida?
- É, conversou, mas ela é uma boa amiga. Gargalhei e acendi um cigarro
- Por que você faz isso com você mesmo?
- Comigo mesmo? Ora, quem sou eu? - Houve um silencio por parte dela e eu continuei - Sou um cara bêbado, que ainda assim consegue ser são o suficiente para enxergar todas as porcarias que existem nesse mundo.
- Só queria que você se cuidasse um pouco... Desligou sem dizer mais nenhuma palavra.
Sempre odiei aquele barulhinho que faz o telefone quando não tem ninguém na linha. Achei que era o momento de me servir de mais uma dose do rum, a garrafa parecia me chamar. Foi o que fiz.
Eu tenho que proteger Isabela. Ao mesmo tempo em que não quero que ela desperdice seu tempo comigo, quero sua atenção e carinho. É estranho.
Eu posso compara-la com algum tipo de droga mas ela não é como uma, longe disso. É uma parte de mim, um órgão vital.
A cada dia que passo vivendo nesse globo de mentiras, fico mais crente de que felicidade é apenas uma ilusão criada por todas essas coisas ruins e tristes que nos rodeiam.
Isabela não concorda, esta presa a muito tempo numa dessas ilusões. De certa forma deve ser bom ficar preso por muito tempo nisso, mas isso é algo que nunca vou de fato saber.
Não existe prazer em ser sozinho. Não existe prazer nessas coisas.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

3º andar

Algumas pernas ziguezagueantes andam apressadas pela rua, todas tentando fugir da chuva fina que começa a cair. O casal tão a vontade e aquecido trocando palavras de amor em forma de sorrisos, comendo alguma coisa no terraço coberto da cafeteria. O menino que passa correndo com o cachorro entre os braços. A moça de vestido vermelho entrando as pressas num táxi. Eu, na janela do prédio vendo tudo através das imagens abstratas sutilmente desenhadas pela fumaça do cigarro. São coisas simples que nunca me pertenceram de fato.
Quando me sobra um tempo, sempre fico a observar e não canso de perguntar a mim mesmo se um dia vou saber levar a vida como deveria, se um dia realmente vou viver.
Todo esse céu cinza de manhã chuvosa, de alguma forma me alegra, mesmo que também me de uma saudade de não sei o que.
O telefone toca e me da um susto, ela invade e conforta meus ouvidos com sua voz macia e preguiçosa:
- Amor espera que eu to chegando, essa chuva me atrasou.
- Eu espero, espero...

domingo, 5 de setembro de 2010

O que pensa R ?

- Chuta garoto, chuta! -gritava o pai desesperado na arquibancada.
R olhou com o canto dos olhos, olhos visivelmente saturados. Chutou como pediu seu pai, mas caprichosamente fez com que a bola fosse direto na cara do juiz. Gargalhadas dominaram sua expressão de indiferença, tirou a camiseta do uniforme e dirigiu-se para fora do gramado resmungando:
- Merda, tudo isso é merda, nunca gostei de futebol.
O juiz veio logo atrás com um cartão na mão, o qual ele nem se importou em ver a cor.
- Enfia no cu esse cartão - exclamou R -não vou mais jogar nesse lixo. Continuou seu caminho, sem reparar nos insultos dos colegas do time, que descontrolados e indignados xingavam sem parar.
O pai, pendurado na grade da arquibancada estava desesperado:
- Mas o que esta fazendo rapaz? Venha já pra , vou te dar um corretivo!
R não respondeu, apenas deixou o campo, montou em sua bicicleta enferrujada e partiu em direção a casa. Seus pais eram separados, ele pouco se importava com o pai. "Quem é esse cara? Mal me conhece e quer interferir na minha forma de pensar" pensava R. Ele tinha 19 anos, nunca foi de fazer muitos amigos, mas sabia dar valor aos poucos que tinha mesmo esses não entendendo sua forma peculiar (e correta) de ver as coisas. Namoradas também teve poucas, não gostava daquelas vadias que se aproximavam por interesse material, nem de ir em festas e se esbaldar com 20 garotas na noite, sempre quis uma única que nunca teve ou pelo menos nunca encontrou.
A mãe estranhou a chegada precoce do filho:
- você não tinha jogo?
- Tinha mas joguei apenas 10 minutos.
- Como assim?
- Nunca quis jogar, nunca quis agradar o pai.
A mãe tentou continuar a conversa, sem sucesso. R subiu as escadas correndo e se trancou no quarto, essa era a única forma com que ele se sentia em casa, em seu próprio mundo, completamente livre de todas as visões perturbadoras, que sem querer tinha. Tentou escrever alguma coisa, como habitualmente fazia, mas as palavras presas em sua cabeça pareciam ter pernas, pareciam correr, fugir da ponta do lápis velho e gasto pelo tempo. Ele parou uns instantes para pensar, andou feito um fantasma pelo quarto, deitou na cama, levantou e abriu a janela. Dela podia ver as pessoas que passavam e ouvir cada uma das conversas fúteis que essas tinham. "Quem foi que fez você assim? Quem?" perguntava para o nada.
O celular tocou, era seu pai:
- Filho, vamos conversar... O que foi que aconteceu hoje?
O pai sempre tentou uma amizade forçada.
- Nada... Pai. Respondeu R.
- Como nada? O que falta pra você? O que te impede de ser um jovem normal?
R riu por alguns segundos
- Sabe cara, não falta nada, o que acontece é que o normal de hoje em dia é o podre da humanidade e o que mais você tem para me oferecer a não ser dinheiro?
O pai tentou argumentar, R interrompeu:
- Não fale nada! Não quero seu dinheiro e nem sei se preciso do seu carinho, se é que você tem, apenas vivo arrependido de uma coisa que não fiz por querer... Nascer.
Desligou. Após o curto dialogo, R foi até a cozinha buscar gelo, voltou para o quarto, acendeu um cigarro, retirou de dentro do guarda roupa uma garrafa de vodka barata que sempre mantinha escondida ali, preparou um, dois, três, quatro copos. Da garrafa sobrou um fundo mínimo de liquido. Ele gostava de estar bêbado. Bêbado e livre, gostava de deitar enquanto a luz do quarto girava diante de seus olhos, enquanto não sentia mais nada, a não ser o álcool por toda parte do corpo.
Adormeceu ali, jogado e livre de todas as coisas escrotas que tinha conhecimento, de todo o sofrimento alheio que era forçado a ver diariamente pela janela do ônibus ou nas paginas dos jornais. Dormiu como desejava, a única tristeza que sentiu antes de adormecer é que em breve teria que acordar mais uma vez.
Olhar pra todas essas coisas e fingir que tudo esta normal, me consome, me distorce de tal forma que cheguei ao ponto de inventar o que não existe. Uns desconhecidos ali, uns amigos pra lá, um amor aqui e esperança em todo lugar.
A cada dia que passa, me perco mais no menos que eu quero.

sábado, 28 de agosto de 2010

Pedro tinha dinheiro

- Volta pro jantar, amor? Perguntou a mulher, encostada no batente da porta.
Pedro, como de costume, estava atrasado demais para se despedir da esposa, entrou no carro e arrancou garagem a fora. Naquela manhã, as lágrimas de cansaço e arrependimento da mulher, escorreram pelas curvas do rosto corado de sol e terminaram por descansar em seus lábios, mais uma vez. Todo dia era a mesma historia, ela sentava no sofá e começava a lembrar da sua juventude, tempo bom e atirado no lixo quando conheceu o Pedro e largou a faculdade para morar com ele.
O filho também sentia falta da presença do pai em casa, nas reuniões escolares, no dia dos pais. A forma que Pedro arrumou para preencher o espaço dele, foi dinheiro. Sempre dava dinheiro para o menino se entupir com porcarias todos os dias, assim acabou obeso e continuou sem pai nenhum.
Pedro era ausente com a mulher, com o filho, com os amigos, com os animais, com os pobres, com a vida. Só não era ausente com o trabalho, a lavagem de dinheiro e com todos aqueles colegas da empresa que mais pareciam abutres esfomeados por malditos papéizinhos coloridos e é claro, também não era ausente com as putas.
Morreu aos 76, com tanto dinheiro que as notas pareciam sair por sua boca, suas orelhas. Mas perdeu a mulher, o filho, os amigos de verdade... Dizem por ai que enlouqueceu, sozinho, em sua mansão e a morte veio de tanto desgosto que acumulou de si mesmo.

domingo, 22 de agosto de 2010

Os olhos castanhos, escuros feito fuligem se destacavam no rosto pálido, pela falta de sol. A escada daquela igreja imunda era parcialmente iluminada pelas luzes da praça e a pouca luz que chegava até nós, me permitia ver que por trás daquela expressão simples, daquele sorriso amarelo, existia um desespero cravado em seu peito. No modo como alisava o cabelo, no jeito em que comia a pele do canto dos dedos, até quando me abraçava ele estava lá, e começava a sufocar a mim também.
Ela falava muito, mas nada que fizesse meus ouvidos cansarem de ouvir, a unica coisa que me irritava naquele momento era meu silêncio, quase como o de um cadaver que aguarda pacientemente o sepultamento. E talvez seja essa a unica coisa que espero da vida mesmo.
Ela desviou o olhar para a lua, ia falar mais alguma coisa, mas interrompi com os dedos em seus labios.
- Sabe de uma coisa? - perguntei.
- hm? - seu olhar sério e ao mesmo tempo doce, como o de uma criança vinha quente, em direção ao meu.
- Acabei de encontrar o que eu procurava.
- Ah, e o que era? - perguntou ela, sorrindo.
- Olhos castanhos, distantes, que fizessem companhia aos meus.

sábado, 7 de agosto de 2010

Trip

Na verdade, eu não sabia se era o chão que vinha em minha direção ou se era eu que ia em direção a ele. Mas a única certeza que eu tinha confirmou-se após os cinco segundos de queda livre.
- Sabe qual é a diferença entre antes e agora?
- Não, qual é?
- É que agora posso ver no verde claro dos seus olhos, o brilho escuro que levou embora parte de mim.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Na cozinha, a louça ainda por lavar denunciava meu estado de inércia. Chovia muito e através do teto amarelado pela nicotina, eu ouvia os pingos de encontro com as telhas, e o barulho da agua escorrendo pela calha. Sempre achei fascinante o barulho da chuva, viajava por entre as gotas, imaginando ser uma. Queda livre alucinante, visão aérea do planeta e todos os seus lixos e belezas, o barulho do vento condensado com a velocidade cantando no ouvido e por fim, dissipar-se com o impacto feroz do corpo no chão ou qualquer outra superfície. Se os pingos de chuva tivessem vida, essa devia ser a sensação e pensando bem, nada mal seria ser um deles.
Na parede do quarto, o quadro que eu ganhei do Lipe, torto e empoeirado as vezes desviava meu olhar fixo no teto. A pintura é magnifica, um prédio esverdeado de limbo é a paisagem, em um de seus andares encontra-se um cara debruçado na varanda de seu apartamento, segurando uma garrafa de cerveja. Quando nos aproximamos do quadro podemos notar a expressão saturada do rapaz, cansado da rotina em que estamos condenados a levar, provavelmente. Ao lado da cama, o criado mudo sustenta alguns livros, que ainda não terminei de ler, o celular dormente ha dias e uma foto velha dos amigos reunidos, para recordar um passado agradável.
A campainha tocava em intervalos de 50 segundos contados. "Não vou levantar porra, desista" pensava comigo.
A campainha tocou mais duas vezes e logo o celular. "Merda, era só o que me faltava" falei para mim mesmo em tom de reprovação. Estiquei o braço para pega-lo.
- Filho da puta, você não vai atender a porta não?
Pensei rápido antes de responder e em pé, indo em direção a porta da rua, digo calmamente.
- Isabela, eu amo o seu nervosismo
- Então abre a porta, ?
Ela estava encharcada, tremia de frio. Não via a umas duas semanas, quase três. Ela ficou realmente irritada com a nossa ultima conversa.
- Entra, vou te arrumar uma toalha e alguma coisa seca pra vestir.
- Obrigada, senhor gentileza - respondeu ironicamente.
Ela foi ao banheiro para se secar e vestir a roupa, bem, o pijama que eu arrumei. Apareceu na sala minutos depois, com seu negro cabelo todo bagunçado e o pijama largo para ela, no corpo.
Eu a esperava com um café quente sobre a mesinha. Apesar das circunstancias, ela continuava bela, sua simplicidade, tanto de traços, quanto de genio acrescentam algo a mais em sua beleza.
- O que você tava fazendo que não ia atender a porta? - perguntou me encarando nos olhos.
- Estava morrendo, Isabela, morrendo.
- Ah, você ta sempre morrendo... acostumei.
- Isso é bom para o nosso relacionamento - Ironizei.
- Vai a merda cara.
- Olha bem ao seu redor...
- Vai começar então?
- Não, comecei faz tempo.
- Ta ficando insuportável conversar com você, sabia?
- Eu sou insuportável...
Ela bebia o café, enquanto eu começava com os meus lamentos corriqueiros. Estava claro pra mim que Isabela me passava conforto, seu jeito debochado e sua personalidade forte me encantavam cada vez mais. Isso ficou mais forte quando ela me interrompeu com um abraço e falou baixo em meu ouvido.
- Escuta aqui, existe muita gente podre por ai e você não é uma delas.
- Não é só a gente podre que me incomoda, mas também o que apodreceu elas - fiz uma pausa para respirar fundo - esse moralismo falsificado que apresentam em todo lugar fode o futuro, é por isso que não vou ter um filho, não quero que caguem na cabeça dele.
Ela penas riu, como se aquilo tudo fosse uma grande piada. E realmente é tudo uma grande piada nos dias de hoje.
- Sabe, você não ta errado, mas se maltratar assim do jeito que você faz também não ta certo...
Discutir essas coisas com ela era uma besteira, aprendi isso devido aos nosso históricos de conversas. Hoje, não quero brigar.
Com a mão em seu queixo, levantei lentamente seu rosto, os lábios de Isabela ainda meio roxos por causa do frio me chamavam com um silencio e uma intensidade monstruosa. O beijo fez o calor correr por todas as veias do corpo. Me deixei levar por minha fraqueza, ela sempre invade meu mundo sem pedir permissão. Me puxou para o quarto, e eu, ferido de alguma forma apenas disse "Fica essa noite".
Ela respondeu com um sorriso. E despida, deitou.
A imagem de Isabela nua em minha cama teve um significado maior do que o de uma mulher nua na cama. Ela era o tudo e o nada misturados com a chuva.
É segredo, mas a solidão em que me meti, me mata a cada segundo que aquele ponteiro fino do relogio marca.

terça-feira, 20 de julho de 2010

De joelhos pedia perdão, matou muitos semelhantes quando vivo. O fazia porque já não tinha vida mesmo antes de morrer e para seus olhos era inaceitavel a falsidade no mundo dos homens. Agora diante do senhor, pedia clemência em forma de um teste para o poderoso responder.
- O senhor cria, liberta e depois julga. Acha correto? Essa é a sua diversão?
Como era de se esperar, não obteve resposta. Quem era ele para questionar o criador?
- Não que eu seja alguém, mas tenho que lhe falar, todo poderoso canalha, se você acha mesmo que mandar aqueles que você considera indgnos de entrar no paraíso para o inferno, uma punição valida é porque você não vive na terra, lá esta o verdadeiro inferno.
Deus, na posição de criatura superior a todas as outras, apenas ignorou o rapaz. Ignorar é o que ele sabe fazer melhor, perceber isso não é difícil. Então ordenou a dois anjos que levassem o homem até as portas do pseudo-inferno. Este, ainda voltou a falar enquanto era arrastado.
- Você ja devia saber, os humanos são péssimas criaturas e eles não sabem o que fazer com o mundo. Tome uma providencia digna de um deus, faça valer as orações dos muitos tolos que ainda confiam em ti.
Não existe diferença entre céu e inferno.
Nascer é o pior castigo que um homem racional pode receber.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Ego

No meu mundo de sonhos egoístas são raras as vezes em que pensei com a razão, livre de qualquer impulso momentâneo ou sentimento grotesco que habita as entranhas mais frágeis do ser humano, esse que mesmo grotesco, muitas vezes faz valer a vida em que querendo ou não estamos metidos e condicionados a levar.
Quando consigo não ter o infeliz auxilio de tal sentimento e assim usar apenas a razão, me sinto forte e maduro para desviar das barreiras que são jogadas em nossa cara como um verdadeiro saco de merda durante toda a vida.
Penso muito sem querer pensar e por assim ser me pego de braços cruzados nas noites de duelo entre eu e meu ego escroto, olhando estrelas que nem se quer existem num céu imaginário projetado por olhos turvos e cansados da infinita seca presente nos rostos alheios, da falta de carater de alguns tantos e da mesmice de todos os dias enquanto aguento as bofetadas frenéticas desse ego insano que controla meus delírios involuntários. Ele fala, ele pergunta, não se cala. Tampo os meus ouvidos a fim de não ouvir suas palavras, em vão. "Não quero", eu digo. "Sem chances, fim da linha", ele responde.
Venho tentando me fixar em alguns ideais com o propósito de não perder o pouco de sentido que ainda me resta para continuar tudo isso, continuar correndo em direção ao nada talvez, mas continuar correndo. É nessa corrida sem linha de chegada que vejo os sinais da minha existência e posso ter certeza de que em vida, não morrerei.

sábado, 26 de junho de 2010

A insônia de Carlos

6:30 da manhã, debruçado na janela, olhava as pessoas passando apressadas pela rua enquanto acendia um cigarro. Levo três dias sem dormir e a insônia combinada com o trabalho me destrói mais que a nicotina.
Eu trabalho em uma loja de moveis antigos e outras tralhas usadas. Tenho que pegar um ônibus as 7:00 para abrir a loja as 8:00 e lá ficar até as 18:00. Não tem muito movimento então o que eu mais faço é tirar o pó das coisas que sempre ficam empilhadas aos montes.
Olhando toda essa gente que passa por aqui, penso em como o ser humano é curioso. Muitos extraindo prazer do consumo, com seus carros do ano, e suas roupas importadas e do outro lado um grupo praticamente invisível que parece figurar como a plateia de um desfile escroto regado a luxo, fumando pedra e pedindo dinheiro e cigarro para os asquerosos que passam obcecados pelo trabalho, saltando por cima das pernas dos chapados. Me custa entender qual a graça que há nisso tudo, no consumo desenfreado e na busca por dinheiro como se esses malditos pedaços de papel fossem realmente a felicidade. Não sei mas as vezes me sinto só e perdido nesse mundo que ao meu ver, esta em ruinas.
no ponto de ónibus, ouço o seguinte dialogo entre dois garotos que aparentavam ter, sei la, seus 17 anos e provavelmente estavam indo pra escola:

- Po, adivinha! Meu pai comprou mais um carro ontem, falou que esse é pra mim! - disse o mais baixo e gordo, provavelmente de tanto comer mac donalds - O melhor disso que é que as gurias adoram os guris que tem carro! Concluiu eufórico.
O outro meio triste e sem jeito, tentando disfarçar respondeu
- Legal... Meu pai vendeu nosso carro pra pagar o aluguel, quase fomos despejados esse mês...
- Porra, e quando você vai pagar os 10 reais que te emprestei?
- Eu vou pagar, Bruno, vou pagar...

domingo, 20 de junho de 2010

Andava em círculos acompanhando os ponteiros do relógio, tremulo e pálido como neblina. "Estamos aqui, estamos em todas as partes", dizia a voz em seu ouvido. Tentou correr, mas como se tivesse sido atingido por um pêndulo foi de cara ao chão. O nariz pingava sangue e sua visão agora turva não acompanhava mais os movimentos dos braços que tentavam reerguer o corpo. "Eu avisei, eu avisei", insistia a voz. Tentava rastejar até a parede quando foi tomado por uma série de espasmos que o ricocheteavam contra o piso engordurado de sangue e suor. Impotente perante a situação, percebeu que de nada adiantaria seu esforço e seu corpo parecia pesar toneladas. Eles estavam no controle e aquilo tudo era mais uma casa do maldito jogo que parece não ter fim.
A voz ria incansavelmente. Naquele momento ele só podia desejar ser surdo.

sábado, 29 de maio de 2010

Dois mundos

Da distancia surgiu o final
De uma lagrima fez-se o adeus
Dos dois mundos, sobrou apenas o teu.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Como de costume, Isabela chegou com a bebida. Rum, minha preferida. Sentou-se ao meu lado na calçada e me passou a garrafa, dei uma golada daquelas de encher a boca e de dar inveja a qualquer pirata. Enquanto o álcool circulava levemente na minha corrente sanguínea, pela garrafa eu via meu mundo e tudo ao meu redor se transformava num oceano amarelo.
- O rum me faz lembrar muitas coisas... - digo.
Ela saboreava a bebida atenciosamente e parecia se perder em meio ao vasto céu que hoje estava bem claro. Pensei que nem tinha me ouvido mas logo perguntou:
- Que tipo de coisas?
- Lembro do passado, de todas as merdas que fiz e que continuo fazendo. Lembro que sou um eterno fracassado.
- Vai estragar mais um domingo com esse papo?
- Não é só papo - fiz uma pausa para procurar no bolso o maço de cigarro - é a realidade.
- Tu não é fracassado, é cego, vive desperdiçando suas melhores oportunidades...
- Oportunidades, desde quando ver todos os sonhos desabarem é oportunidade?
- Se você continuar nessa linha de pensamento medíocre, sempre vai estar afogado em seus fracassos mesmo... - suspirou - E pare de fumar!
- Medíocre, ta ai o tipo de gente que sou, Isabela! - gargalhei cruamente - e por um acaso, to desperdiçando o que?
Irritada Isabela chutou a garrafa para o meio fio da calçada, pegou sua mochila e se foi. Pude ouvir ela falar bem baixinho:
- Desisto, pra mim tu gosta é de sofrer...

segunda-feira, 26 de abril de 2010

216 Km.

Estava frio e talvez não fosse o melhor dia para um passeio no campo, o céu estava coberto por nuvens carregadas, prestes a mandar agua. Mas Emily queria apanhar maçãs direto da árvore e me pentelhava desde a hora em que acordei.

- Vai comigo ou não? - perguntou ela meio irritada - estou te esperando a meia hora cabeção, se não quer ir fale logo.

- Meu deus Emily, deixa eu pelo menos terminar o café!

Ela respondeu baixinho resmungando coisas que eu não entendi.
Abocanhei inteira numa única mordida a fatia de bolo que estava comendo, apanhei meu casaco no cabide que ficava atrás da porta da sala de estar e vesti meu gorro. Ela acompanhava cada movimento meu com olhares intimidadores.

- Vamos guria, tenho certeza que as maçãs ainda não correram da árvore - Brinquei.

Emily era baixa, mais ou menos 1.57 de altura, tinha 19 anos, não sorria muito e se irritava com facilidade, era realmente uma pessoa difícil de se conviver. Só de olhar em seus olhos podia perceber como ela sentia necessidade de carinho e atenção, coisa que apesar da minha minha inexpressividade eu tentava ao máximo transmitir. Seus olhos eram azuis, mas quando estava frio ficavam meio acinzentados, sempre cortava seu negro cabelo bem curto cobrindo as orelhas, de modo que seu pescoço ficava visível, no inverno sempre usava o cachecol preto e vermelho que eu havia dado de presente.
A manha estava realmente muito fria, não sei quanto a Emily mas a brisa fazia meus olhos arderem e as pequenas gotas de orvalho contidas nas folhas da macieira escorrerem. Enquanto ela apanhava as maçãs, com um leve sorriso no rosto eu observava com atenção minhas mãos e tentava mais uma vez encontrar em suas linhas a resposta que vinha procurando a muito tempo.
É sempre assim, você volta a aparecer na minha memoria e trás consigo aquela duvida, só para me atormentar. A historia que você me contou naquele dia ficou guardada aqui, mas faltou alguma coisa para que eu possa compreender o final, a moral, sem continuar me culpando.
Emily não podia te ver em meus pensamentos, mas podia sentir, logo não demorou muito para atirar uma das maçãs na minha cabeça:

- Escuta aqui, eu sei o que você ta pensando, é naquilo de novo não é? - indagou - Se for começar a ficar melancólico agora eu vou jogar todas as maçãs dessa cesta na sua cabeça!
Eu apenas sorri, ela largou a cesta no chão e correu para me abraçar:

- Vou ligar para a Sandra e pro Fábio e vou marcar alguma coisa pra gente fazer hoje a noite ta? Eu sei que você gosta da madrugada... - Disse acariciando meu rosto.

- Provavelmente eu teria enlouquecido se não fosse você - Sorri - Mas isso esta errado, eu tenho que cuidar de você, não você cuidar de mim, te prometi isso quando há encontrei perdida naquela praia...

- Bobo, nós nos cuidamos juntos, pode ser?

- Ta bom, ta bom... por enquanto vou aceitar essa proposta.

Emily me fez entender que o final que sempre procurei, o final que separou eu de você, ficou avulso, oculto, perdido em meio ao tornado que você criou dentro de mim, esse que causou destruição e confusão em todos os meus sonhos.
Na poça sombria do passado, continuo vendo você e ainda posso lembrar do dia em que o meu mundo acabou em 216 Km de saudade.
Abaixei para pegar a sexta das maçãs e abracei Emily pela cintura:

- Agora vamos pra casa, que estou sentindo uns pingos de chuva baterem no meu rosto...