Tento andar me equilibrando na linha branca que demarca a sarjeta, Rocco termina a cerveja e atira a garrafa para o meio da rua, existe apenas um poste funcionando por ali. "É isso que me tira do sério as vezes, o barulho do vidro quebrando no lugar dos ossos daqueles filhos da puta. Algo muito maior podia estar acontecendo no meio dessa rua escura, entende?", ele diz. Levo a mão ao bolso procurando o maço. Já não tenho mais cigarros. Eu não falo muito, e o que preciso falar, o Rocco acaba falando por mim.
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Passo algum tempo com isso na cabeça. Muito tempo alimentando o monstro. Não é uma coisa que posso evitar; são os olhos, a pele marcada, desenhada, cuspida em forma de massa corpulenta. São os montinhos de merda que vejo em todas essas expressões que nascem em seu rosto bonito e sorridente, é todo o encéfalo espalhado numa parede branca, escorrendo. Só preciso não mais olhar aquele brilho pútrido, não mais ranger os dentes enquanto tento fugir disso, da loucura estampada em meu peito, viajando feito ácido em minha corrente sanguínea. Quero matar isso, tanto quanto quero matar você e os outros que ainda aparecerão.
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Nem sequer consigo me sentir culpado por isso. Deve existir uma parcela de lucidez, de razão em todos os criminosos, assassinos, psicopatas. Eu sei que existe, eu compreendo o quão incomodo podem ser essas outras tantas vidas cercando a minha. Todas em conflito, todas disputando alguma coisa estúpida. Eu sei que em todo mundo existe um processo de defesa, de salvação.
A diferença em acabar com uma vida por prazer, por simples conforto e acabar com outra por dinheiro ou por interesse governamental eu não sei. É provável que não exista e ainda assim acabamos condenados por esses mesmos assassinos quando saímos da roda sistemática.
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"Existe essa linha tênue entre o fazer e o não fazer", me disse Rocco uma vez. "Odiar não é motivo para explodir ninguém, é só a salvação do seu espírito", continuou Rocco. Coisa egoísta, ele reconheceu, mas o egoísmo anda sempre de mãos dadas com o ódio, assim como ciúme e a inveja. Mas isso não significa que estão sempre juntos.
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Isso que sinto quase que o tempo todo, é como pisar num formigueiro e ficar com o corpo a borbulhar em coceira. E você desfia um frango no almoço enquanto pensa em braços e pernas rompendo de um corpo sujo por dentro e por fora. Tenho essa coisa comigo, posso compartilhar com Rocco algumas vezes, mas isso não me ajuda a dormir, não me ajuda a abrir a porta e pisar na rua, leve como uma bola de algodão. Eu penso em sangue e penso na sua cabeça pendurada na parede do meu quarto. Eu não sonho mais. Eu não sei por quanto tempo posso controlar isso.
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Rocco é meio manco e ele dobra a esquina com rapidez. Eu tenho que tentar chegar em casa, dormir e acordar, mas esse já é outro problema.