quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Observando o ódio

Tento andar me equilibrando na linha branca que demarca a sarjeta, Rocco termina a cerveja e atira a garrafa para o meio da rua, existe apenas um poste funcionando por ali. "É isso que me tira do sério as vezes, o barulho do vidro quebrando no lugar dos ossos daqueles filhos da puta. Algo muito maior podia estar acontecendo no meio dessa rua escura, entende?", ele diz. Levo a mão ao bolso procurando o maço. Já não tenho mais cigarros. Eu não falo muito, e o que preciso falar, o Rocco acaba falando por mim.
(...)

Passo algum tempo com isso na cabeça. Muito tempo alimentando o monstro. Não é uma coisa que posso evitar; são os olhos, a pele marcada, desenhada, cuspida em forma de massa corpulenta. São os montinhos de merda que vejo em todas essas expressões que nascem em seu rosto bonito e sorridente, é todo o encéfalo espalhado numa parede branca, escorrendo. Só preciso não mais olhar aquele brilho pútrido, não mais ranger os dentes enquanto tento fugir disso, da loucura estampada em meu peito, viajando feito ácido em minha corrente sanguínea. Quero matar isso, tanto quanto quero matar você e os outros que ainda aparecerão.
(...)

Nem sequer consigo me sentir culpado por isso. Deve existir uma parcela de lucidez, de razão em todos os criminosos, assassinos, psicopatas. Eu sei que existe, eu compreendo o quão incomodo podem ser essas outras tantas vidas cercando a minha. Todas em conflito, todas disputando alguma coisa estúpida. Eu sei que em todo mundo existe um processo de defesa, de salvação.
A diferença em acabar com uma vida por prazer, por simples conforto e acabar com outra por dinheiro ou por interesse governamental eu não sei. É provável que não exista e ainda assim acabamos condenados por esses mesmos assassinos quando saímos da roda sistemática.
(...)

"Existe essa linha tênue entre o fazer e o não fazer", me disse Rocco uma vez. "Odiar não é motivo para explodir ninguém, é só a salvação do seu espírito", continuou Rocco. Coisa egoísta, ele reconheceu, mas o egoísmo anda sempre de mãos dadas com o ódio, assim como ciúme e a inveja. Mas isso não significa que estão sempre juntos.
(...)

Isso que sinto quase que o tempo todo, é como pisar num formigueiro e ficar com o corpo a borbulhar em coceira. E você desfia um frango no almoço enquanto pensa em braços e pernas rompendo de um corpo sujo por dentro e por fora. Tenho essa coisa comigo, posso compartilhar com Rocco algumas vezes, mas isso não me ajuda a dormir, não me ajuda a abrir a porta e pisar na rua, leve como uma bola de algodão. Eu penso em sangue e penso na sua cabeça pendurada na parede do meu quarto. Eu não sonho mais. Eu não sei por quanto tempo posso controlar isso.
(...)

Rocco é meio manco e ele dobra a esquina com rapidez. Eu tenho que tentar chegar em casa, dormir e acordar, mas esse já é outro problema.

3 comentários:

  1. Rocco faz o papel de uma amiga na minha vida. Explodir todo mundo seria lindo..

    A diferença em acabar com uma vida por prazer, por simples conforto e acabar com outra por dinheiro ou por interesse governamental eu não sei. É provável que não exista e ainda assim acabamos condenados por esses mesmos assassinos quando saímos da roda sistemática.

    Adorei esse trecho;

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  2. Tenho seu blog adicionado aos meus favoritos há um bom tempo, mas só nessa madrugada - 3:48 - resolvi ler o primeiro post.

    Como disse, comecei a acompanhá-lo hoje, num momento propício e bastante adequado. Rocco é seu alterego? Seu espírito? Parte do seu passado? Idealização? Personagem favorito criado pela sua cabeça nas noites sem sono? Capaz de você nunca ler esse comentário, tampouco responder. Mas não importa.

    Às vezes é necessário conversar por meio do anonimato. Sem ser necessário ver o outro. Sem ser preciso. Sem ter de ser preciso. Conversar com o estranho tudo aquilo que você não consegue dizer àqueles em que confia por simplesmente não ter palavras. Confessar seus pecados, medos e dores a algum estranho alivia a dor. Alivia a tensão. Alivia a ansiedade.

    Rocco parece ser um bom amigo. E, sim, existe uma parcela de razão nos pensamentos e raciocínios dos piores tipos de pessoas. Quer dizer... Precisa ter. Nós temos. Não que sejamos psicopatas ou assassinos, mas nós nos entregamos à insanidade por diversas vezes, não é? Essa minha atitude de gritar meus pensamentos em um blog de um desconhecido, chega a ser um pouco insano.

    Eu poderia contar a minha vida e a minha rotina aqui, assim como você descreveu parte de um dia com Rocco. Ele deve saber, melhor que eu e você, o quanto somos cobrados a ser "bons". Bons em tudo. Bons em todos os sentidos. E essa cobrança se torna obrigação. Transforma-se em dever. E o dever assusta. Dever chateia e entedia. Por isso, em alguns momentos, aquela sensação "ruim" vem às nossas mentes e se fundem com os nossos pensamentos. Contaminam o que há de mais puro dentro de cada um de nós. Não existe ninguém absolutamente bom. Vamos esquecer essa cobrança? Exigem que eu seja bom em tudo. Mas eu tô cansado. Cansado de ser bom. Sério... Não precisamos ser bons em tudo, a toda hora, a todo instante, em toda decisão que vier a ser tomada.

    Temos que ser bons na aparência, no peso, na faculdade, no emprego, na família... “Fazer a social.” Sorrir por pura educação, só pra não preocupar, só pra não causar mal estar. Não dá vontade de, às vezes, puxar o gatilho? Causar um motim. Puxar o gatilho em direção à cabeça dos outros... Ou à nossa própria, que alimenta o demônio dentro da gente. Rocco, acho que você me entende. Você deve me entender muito mais e muito melhor do que o próprio autor desse ensaio.

    Cansei de ser bom. Cansei de ter que ser bom. Cansei de ser cobrado pra ser bom. Cansei de esperar pra ser bom. Cansei. Ser bom, às vezes, é uma merda. E eu aguardo pela salvação. Sim, eu aguardo e eu espero por isso...

    Desculpa, autor, mas agora eu falo diretamente com o seu amigo. Rocco, eu não devo estar enganado, estou? Digo... Nessa vida, deve haver algum tipo de magia. Algum milagre que acontece sem ser esperado. Alguém ou algo que aparece no nosso caminho de surpresa... E que sacia todo o sentimento de espera. E que destrói o demônio que se alimenta das nossas forças e tripas... Que suga todo nosso sangue e o vomita logo em seguida. Então, Rocco... Estou errado em esperar? Não esperar para ser bom, mas simplesmente esperar. Esperar por algum tipo de salvação, milagre ou surpresa. Porque na vida tem (e deve) de ter algum tipo de saída. De surpresa... De salvação. Deve haver algum tipo de magia, de esperança. Rocco, acredite... Eu te entendo.

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