quinta-feira, 31 de março de 2011

Tínhamos acabado de nos mudar para um novo, velho e capenga apartamento. As janelas cinzentas e enferrujadas estavam todas abertas para deixar o cheiro infinito de mofo à vontade em se retirar do aposento. O verão entrava por elas queimando tudo; os poucos moveis que tínhamos, minha cabeça doente e cheia de vontade de explodir, o sofá azul encardido, coberto de marcas de cigarro que tentava de alguma forma quase amigável confortar minhas costas, a cama desarrumada no quarto. Tudo. Eu estava jogado ali, descalço com o pé direito todo fodido e enfaixado, apenas de cueca com minha garrafa de cerveja quente na mão e essas mudanças todas já nem me surpreendiam mais e nem minhas desavenças com minha própria vida de vagabundo e bêbado e maníaco depressivo sem animo até para peidar. Ficava triste não por mim e minha espera lenta e cansativa pelo abraço acolhedor e escuro da morte, mas por Isabela ter que aguentar tudo isso; sentia por ela que estava sozinha. Eu era apenas um saco de ossos e alguma coisa de carne andando por aí e tentando arrumar alguma grana, na maioria das vezes sem sucesso, para o final do mês. Sempre perguntava a ela o porquê de estar aqui:
- Isa, meu amor. Por que não junta suas coisas e vai embora de uma vez? O mundo tá te esperando.
Todas às vezes ela mordia o lábio inferior, vermelho por natureza, colocava as mãos na cintura e me respondia sutilmente, com aquele carinho verdadeiro que muitos imbecis por aí acham que conhecem, mas na verdade não passa do esquema das trocas e interesses.
- Você é um grande filho da puta. O maior filho da puta que eu jamais conheci.
A conversa terminava nesse ponto e eu abria outra cerveja. Mais tarde íamos para a cama.
Essa nova mudança ocorreu graças a mim e minha briga com o sindico da outra espelunca em que morávamos. Ele fez pouco caso do vazamento do apartamento de cima, que estava mofando toda a minha cozinha e então certo dia em que estava fora de mim, lhe quebrei dois dentes. Passei uma noite na cadeia vendo um viciado em crack se roer inteiro sobre o estrado estropeado da caminha da direita.
Não tinha nada pior que esse novo lugar, pelo menos para Isabela, que reclamava dia e noite do cheiro e das formigas que corriam por toda parte. Mesmo assim ela insistia em tentar me transformar num ser humano, falava toda hora em “resgatar a cor dos meus olhos.” Cor que nunca tive.
Ontem mesmo me obrigou a aprender a fazer um bolo de cenoura e involuntariamente a pintar meu fracasso na testa mais uma vez.
- Querida, prefiro morrer do que fazer bolo de cenoura. - Disse lamentando o esforço.
- Você prefere morrer à tudo. Venha cá.
Movimentei minha bunda lentamente até a cozinha. O sorriso que me aguardava ali, entre aqueles azulejos brancos e manchados do tempo de certa forma me alegravam. Nunca neguei meu amor incondicional por ela e devia ser por isso que a queria longe de mim. Eu sabia que livre, ela seria feliz. Aquilo que ela tinha ali comigo não poderia ser considerado nem uma parcela da cagada da felicidade.
Isabela me fez quebrar os ovos dentro do liquidificador, bater tudo com a cenoura e óleo. Suas mãos gesticulando me encantavam; toda aquela leveza mística de profundidade desmedida remexendo no ar me faziam esboçar um pequeno sorriso. Depois veio a batedeira com o resto das tralhas para formar a massa toda.
O bolo assava, e Isabela saiu para uma entrevista de trabalho. Estava contente e me disse para não me perder do relógio.
Nosso fogão era uma coisa velha e pré-histórica, preto com manchas de uso. Fiquei feito louco acompanhando o relógio na espera dos quarenta minutos em que o bolo deveria assar. Passado o tempo, corri para a cozinha. A maldita porta do forno tinha enroscado, emperrado de tal forma que simplesmente não abria mais, nem rangia feito um apito defeituoso como de costume. Tive um acesso de raiva e arrebentei aos chutes a porta, que assim abriu. Aproveitei para quebrar dois dedos do pé direito também. O bolo estava murcho, parecia um maracujá esquecido no tempo. Respirei três vezes, fundo; me dirigi mancando até a geladeira. Era o momento de abrir uma cerveja. Sentei no sofá com o pé do tamanho de uma melancia, “que se foda esse pé!” Pensei alto. Eu não sei o que eu queria de mim ou da vida ou de Isabela, mas um cara que não consegue fazer nem ao menos um bolo para agradar sua garota e ainda termina por quebrar a porta do forno junto com os dedos não deve mesmo querer muita coisa.

quarta-feira, 23 de março de 2011

#Martín

Ainda tenho aquela pequena cicatriz nas costelas do lado esquerdo, que me foi presenteada num dia cinzento e húmido. Devia ter meus queridos sete anos e estava ensopado brincando no barro do quintal. Dentro de casa tinha um sofá antigo, meio bege e com braços feitos de madeira um tanto pontiagudos. Ficava estrategicamente colocado entre a sala de entrada e a cozinha. O piso ali sempre foi daqueles bem lisos, tinha uma cor meio salmão. Nesse mesmo dia passei correndo, escorreguei e quase me matei numa das pontas de madeira do sofá. Foi a última vez que chorei por danos corporais. A marca, agora quase invisível ficou comigo; quando a vejo no espelho as lembranças não tardam em piscar dentro da minha cabeça como luzes de neon distorcidas e fracas. Deve ser por tantas memorias assim que prefiro crianças a adultos, e elas de alguma forma sempre me olham com sinceridade, uma curiosidade pura e diferente. Enquanto os olhos grandes e repulsivos de um ser crescido em minha direção me fazem querer vomitar toda vez que dou de cara com a rua.
A coisa toda começou a afundar quando cheguei aos dezesseis. Certa vez me disseram: “Ou você começa a pensar numa faculdade pra ter um diploma bonitinho e então trabalha ou você morre de fome.” Nessa época a adolescência já estava escarrada em minha face há tempos, sem nem ao menos eu ter me dado conta de que o período dos bonecos de ação já estava afogado num mar de bosta há pelo menos uns três anos. Oceano profundo esse, que não afogou apenas os brinquedos, mas também a mim. Considerando o inferno lá fora, morrer de fome pode ser uma alternativa até satisfatória.
A coisa parece que levou meus amigos também. Ficaram insuportáveis junto com suas historias crescidas. É engraçado, perto deles sempre me sinto cobrado, pisado, massacrado. Eles vão estar lá oferecendo carona e trocando experiências e mulheres, enquanto eu só quero que todos calem a boca, enquanto morro em silêncio por não ter nada pra falar ou pra contar. O álcool acaba se tornando mais companheiro que qualquer pessoa, ele não te cobra nada e vai ouvir todas as suas historias tristes e ruins e felizes e infinitas. sem dizer coisas estúpidas. Todos tem a mania de não entender o que quero dizer. Mas quando bebo e caio e me arrebento e não lembro onde enfiei a chave de casa, é porque o simples fato de não lembrar faz com que o mundo deixe de ser, por um tempo, essa câmara de gás.
Andei pelo quintal, procurando dentro das flores, nos ninhos das pombas os restos dos tantos mundos que criei quando pequeno. Qualquer gota azul que escorresse do passado para o presente seria um espinho a menos na sola dos meus pés, mas todas elas secaram, morreram e a vontade que eu tenho é de construir uma muralha e ficar escondido ali com um fuzil.
Costumamos perder muito tempo, e só percebemos isso quando é tarde de mais, quando qualquer coisa que fizermos acaba por ser perda de tempo. Até eu, em três mágicos anos de ladainhas e ideias estúpidas de amigos me tornei uma real perda de tempo em potencial para mim mesmo. Isso foi triste no começo, e hoje não passa de mais um pássaro voando nesse céu imenso da falta de prazer, da falta de beleza disso tudo.
A ideia da vida linda é tão perturbadora e ilusória e corrosiva na cabeça do homem, que todos vão achar estranho o fato de você tendo ou não oportunidades, não querer um emprego, nem carro ou dinheiro ou formar uma família de patifes. Ninguém vai entender o teu desejo maravilhoso de ter uma solidão de verdade. Uma vala comum com seu corpo lá dentro, coberto de terra e capim, o quanto antes. E você com isso? Não da à mínima, ainda existe sua cama mesmo que essa seja um bloco de concreto sujo. Seu casulo.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Sobre a casa dos sonhos e suas saídas de emergência

Eram tão tristes aqueles olhos castanhos, que mais pareciam duas bolas de barro escorrendo como acido pelas linhas pálidas que moldavam suas bochechas. O nariz nem pequeno nem grande, bastante fino respirando todo aquele amontoado de verdades tão mentirosas quanto historias de mundos encantados e bonitos, falava mais que a boca dona daquele sorriso que pouco vi, e dos lábios que algumas vezes pairavam no rosto como névoa, neblina de manhã fria e chuvosa de cidade suja, esmagada por um tempo negro e mortal. E eu me sentia ridículo no meio de tudo aquilo, dentro daquele coração tão grande e confortável.
Lilian era assim, uma cova em formato de gente. Gostava de desenhar com laminas, na própria pele figuras abstratas de significados invisíveis para os outros. Dizia ela que não havia forma mais gratificante de se sentir viva. O sangue se esvaindo por cada ferimento aberto formava um laço entre o mundo que ela sustentava nalgum lugar daquela cabecinha coberta por uma mata encaracolada de cabelos loiros e meio desbotados e essa coisa estúpida que chamamos de nosso planeta.
Os bracinhos magrelos e as mãos pequeninas que vez ou outra me aqueciam o sangue do corpo todo onde até mesmo o sol era formado por gelo sempre pareciam agitados e trêmulos; enquanto no passar dos dias e das noites as luzes apagavam e acendiam, numa rotina esquizofrênica e enlouquecedora, como sua respiração. Isso me fazia lembrar sempre das palavras alcoólicas proferidas por ela no nosso primeiro contato: "Sabe, a vida da gente sempre vai ser esse apagar e acender de luzes, até que uma a uma, elas vão queimando e não percebemos mais a esperança, nem as cores dos prédios e das casas e do céu, porque nossos olhinhos famintos já se acostumaram com toda a massa redonda de escuridão e estão prestes a morrer sozinhos, da fome do amanhã.” Eu soube a partir desse momento que cedo ou tarde essa fome acabaria matando a mim também.
Eu era seu único amigo e Lilian sempre se mostrou muito satisfeita com isso. Às vezes cometia pequenos furtos em supermercados, junto dela. Esse era um hobbie peculiar que a divertia bastante. Roubava ração para o gato, bebidas, bolachas e balas. Também tomava muitos remédios, lembro-me de certa vez em que dormi em sua casa. Na sua bancada havia uma gaveta só para os comprimidos.
A mãe dela sempre me recebia com um sorriso. Um dia me chamou em particular e contou o tanto que gostava de mim e do carinho e da amizade que eu tinha com Lilian e também disse que a alegrava o fato de apesar dos problemas evidentes, eu sempre ser uma pessoa presente. Derramou algumas lágrimas após a conversa.
Eu tinha dezessete anos quando a vi pela última vez. Era madrugada e algumas pedrinhas voavam contra janela do meu quarto. Lilian estava lá fora, desci correndo as escadas. Ela me aguardava com uma caixa de papelão na mão.
- Olha, trouxe aqui o Tobias – Disse com a voz rouca, os olhos ainda humedecidos me deixavam sem entender a situação.
- Mas é seu Gato. Por um acaso vai viajar e quer que eu cuide dele?
- Não é bem uma viagem – Tentou sorrir.
- Como assim?
- Meu pai disse que vão me levar pra casa, pra casa dos sonhos e lá não posso ter animais.
- Que espécie de casa é essa? – Perguntei com os olhos arregalados, ainda meio sonolento.
- O pai disse que é uma casa pra pessoas assim, iguais a mim. Mas eu sei que até mesmo na casa dos sonhos, as saídas de emergência estão trancadas. – Colocou a caixa com o gato junto aos meus pés.
- Mas por que você tem que ir?
- Porque arranquei a cabeça de todos os meus bichos de pelúcia. Eu juro que me atacaram durante a noite. Vocês não acreditam, ninguém acredita.
Lilian virou-se. Começou a caminhar em direção a sua casa, do outro lado da rua.
- Espera! – Gritei – Eu acredito!
Foi a ultima vez em que vi o sorriso de Lilian brilhar igual a lua.
No dia seguinte, resolvi conversar com minha mãe sobre o acontecido:
- Ai filho, você sempre soube que essa menina era anormal, você sabia que ela tinha problemas.
- É, normais são vocês e seus carros e suas fábricas e contas bancarias, todos metidos numa rotina cega... Respondi em tom de reprovação.
Uma semana depois, os pais dela se mudaram. Minha mãe disse que foram para uma cidade mais perto do hospital. Nunca mais tive notícias.
Hoje, beirando os meus vinte e oito anos e ainda carregando saudade nos olhos, sei que todos nós estamos dentro da casa dos sonhos. Pouco a pouco ela se consome em chamas por dentro e por fora. E também sei que vamos queimar, porque como disse Lilian naquele ano, “as saídas de emergência estão todas trancadas.”