quarta-feira, 23 de março de 2011

#Martín

Ainda tenho aquela pequena cicatriz nas costelas do lado esquerdo, que me foi presenteada num dia cinzento e húmido. Devia ter meus queridos sete anos e estava ensopado brincando no barro do quintal. Dentro de casa tinha um sofá antigo, meio bege e com braços feitos de madeira um tanto pontiagudos. Ficava estrategicamente colocado entre a sala de entrada e a cozinha. O piso ali sempre foi daqueles bem lisos, tinha uma cor meio salmão. Nesse mesmo dia passei correndo, escorreguei e quase me matei numa das pontas de madeira do sofá. Foi a última vez que chorei por danos corporais. A marca, agora quase invisível ficou comigo; quando a vejo no espelho as lembranças não tardam em piscar dentro da minha cabeça como luzes de neon distorcidas e fracas. Deve ser por tantas memorias assim que prefiro crianças a adultos, e elas de alguma forma sempre me olham com sinceridade, uma curiosidade pura e diferente. Enquanto os olhos grandes e repulsivos de um ser crescido em minha direção me fazem querer vomitar toda vez que dou de cara com a rua.
A coisa toda começou a afundar quando cheguei aos dezesseis. Certa vez me disseram: “Ou você começa a pensar numa faculdade pra ter um diploma bonitinho e então trabalha ou você morre de fome.” Nessa época a adolescência já estava escarrada em minha face há tempos, sem nem ao menos eu ter me dado conta de que o período dos bonecos de ação já estava afogado num mar de bosta há pelo menos uns três anos. Oceano profundo esse, que não afogou apenas os brinquedos, mas também a mim. Considerando o inferno lá fora, morrer de fome pode ser uma alternativa até satisfatória.
A coisa parece que levou meus amigos também. Ficaram insuportáveis junto com suas historias crescidas. É engraçado, perto deles sempre me sinto cobrado, pisado, massacrado. Eles vão estar lá oferecendo carona e trocando experiências e mulheres, enquanto eu só quero que todos calem a boca, enquanto morro em silêncio por não ter nada pra falar ou pra contar. O álcool acaba se tornando mais companheiro que qualquer pessoa, ele não te cobra nada e vai ouvir todas as suas historias tristes e ruins e felizes e infinitas. sem dizer coisas estúpidas. Todos tem a mania de não entender o que quero dizer. Mas quando bebo e caio e me arrebento e não lembro onde enfiei a chave de casa, é porque o simples fato de não lembrar faz com que o mundo deixe de ser, por um tempo, essa câmara de gás.
Andei pelo quintal, procurando dentro das flores, nos ninhos das pombas os restos dos tantos mundos que criei quando pequeno. Qualquer gota azul que escorresse do passado para o presente seria um espinho a menos na sola dos meus pés, mas todas elas secaram, morreram e a vontade que eu tenho é de construir uma muralha e ficar escondido ali com um fuzil.
Costumamos perder muito tempo, e só percebemos isso quando é tarde de mais, quando qualquer coisa que fizermos acaba por ser perda de tempo. Até eu, em três mágicos anos de ladainhas e ideias estúpidas de amigos me tornei uma real perda de tempo em potencial para mim mesmo. Isso foi triste no começo, e hoje não passa de mais um pássaro voando nesse céu imenso da falta de prazer, da falta de beleza disso tudo.
A ideia da vida linda é tão perturbadora e ilusória e corrosiva na cabeça do homem, que todos vão achar estranho o fato de você tendo ou não oportunidades, não querer um emprego, nem carro ou dinheiro ou formar uma família de patifes. Ninguém vai entender o teu desejo maravilhoso de ter uma solidão de verdade. Uma vala comum com seu corpo lá dentro, coberto de terra e capim, o quanto antes. E você com isso? Não da à mínima, ainda existe sua cama mesmo que essa seja um bloco de concreto sujo. Seu casulo.

8 comentários:

  1. Esse texto me fez refletir sobre minha vida do princípio até aqui. E sinto que boa parte dela é um desperdício, o passado parece um buraco não preenchido, que vai se afundando cada vez mais.

    Como sempre, seus textos são únicos e maravilhosos. ^^

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  2. Incrível como consegues escancaradamente expressar o que nos corrói a alma. E eu busco incessantemente resgatar a criança dentro de mim para não me transformar em mais um adulto escroto que só sabe vomitar suas conquistas banais. Há outros tantos tipos de vida! E quando venho aqui tenho mais certeza disso. Obrigada por subliminarmente me mostrar isso (:

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Outra coisa engraçada de olhar as cicatrizes da infância, é porque não conseguimos lembrar da dor. Passaram-se tantos anos, e nesse mundo de fragilidades em que nos metemos, a infância vira um sinônimo de coragem e valentia, onde nos arrebentamos, batemos em pontas de sofá, quebramos os ossos, levamos pontos e tudo nos soa facilmente suportável.

    Pensei nos seus argumentos sobre ir para a faculdade, ter um diploma e trabalhar. Seria muito bom se fosse assim tudo fácil, e eu não fosse agora uma jornalista desempregada.

    E sim, sou uma grande perda de tempo, a medida que não me mexo ou me esforço para mudar os contextos.

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  5. as metáforas.
    seus textos são ótimos.
    :D

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  6. "Ótimos" ainda é pouco. Acho que não dá pra descrever.

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  7. É impossivel começar a ler seus textos e não ir até o fim. (Acrescente aqui todos aqueles elogios que você já está cansado de ler).
    Não sei se há palavras que descrevam realmente o quanto você é talentoso e o quanto seus textos são bons, mas fica aqui registrada a minha reação de "Porra, esse cara é foda!"

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  8. cuidado rapaz, ainda que o mundo seja um mar de merda e que boiar nele pareça (talvez seja de fato) ignobil, lá de cima voce nao saberia a profundidade; voce até sorriria de vez em quando... e será que isso é tao ruim?

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