segunda-feira, 11 de abril de 2011

O velho e sujo Paraíso

Aquelas janelas não eram apenas quadrados de vidro transparente abertos na parede azulada e velha do apartamento de Camille. Eram também molduras esbranquiçadas do terror que emanava de toda aquela paisagem funesta e sem fim. Um verdadeiro globo de olhos famintos e sorrisos esquizofrênicos esperava lá fora com os braços abertos, enquanto eu imaginava bichos e outras formas estranhas nas áreas descascadas ou cobertas por argamassa da parede. Todas aquelas falhas e rasgos e feridas naquele manto azul infinito da sala também estavam presentes no frio e agitado coração de Camille que muitas vezes parecia ronronar como um pequeno gato medroso e frágil, procurando se abrigar da chuva que morava na cabeça dos outros. Ela não se considerava forte e achava que estava mais morta do que viva, coisa que nunca contrariei, já que todos nós ali, frequentadores assíduos do apartamento 53 do edifício Paraiso estávamos mesmo mais mortos do que vivos e não tínhamos motivos para querer outra coisa.
- Todos nós somos cadáveres expostos num grande necrotério, sabe? Eles vão te abrir sem que você perceba, varias e varias vezes; vão tirar de dentro tudo o que presta coisa boa por coisa boa, depois te jogam numa vala comum e você fica ali apodrecendo com sua coleção de babaquices sem nexo. Acho até engraçada a maneira em que todo mundo se submete a isso sem nem ao menos perceber a metade da merda. Por isso admiro você e Maria; vocês têm olhos que brilham de verdade. – Disse Camille, enquanto terminava uma ponta de baseado que encontrara num dos bolsos da calça jeans desbotada.
No auge do meu acido, não respondi, continuei a contemplar os diferentes animais que apareciam pela parede. Maria estava trancada no banheiro há uns quinze minutos quando apareceu como um fantasma, pálida e cambaleante pela sala. Tinha olheiras imensas e era muito magra, inclusive Camille tinha o habito de contar suas costelas quando estavam deitadas nuas, lado a lado tentando aquecer aquele leito frio e solitário. Mesmo assim Maria era bela. A cabeleira toda caramelada escorria por seus ombros como uma cortina de bronze. Os olhos verdes e fundos vidrados no nada de sua existência procuravam um ponto menos iluminado para descansar e sempre acabavam encontrando o breu sem fim do olhar castanho de Camille. “Olhos de urso. Você tem grandes e ardentes olhos de urso.” Costumava dizer Maria.
Não precisava muito para perceber que elas se amavam acima das nuvens, das estrelas e eram quase que uma só vida, um pedaço do mundo que ainda vivia. Eu tentava fazer daquilo meu mundo também, uma espécie de refugio onde eu podia me esconder de todos os fantasmas e monstros que assombravam cada pedra de calçada, cada gota do planeta. Meu único desejo era ser sozinho com Camille e Maria.
Sempre que eu me pegava de cara pra rua, fora daquele apartamento, com um cigarro preso entre os lábios e aquele céu horrível e mentiroso cobrindo minha cabeça, lembrava-me de como tudo isso aqui fora é nada. Sumir no mundo, pra mim era pouco, eu queria sumir no velho e sujo Paraíso, com Camille, com Maria, com os animais da parede azul do apartamento 53.