sexta-feira, 30 de março de 2012

(...)
Sarah rompeu o silêncio.
- Uma pessoa precisa de muitas coisas para que olhem bem pra ela, ou é simplesmente lixo.
- Eu sei, ela precisa ser estúpida o suficiente. O mundo exige muito disso.
- Você precisa se movimentar mais. Largar esse copo, sabe? Viver - ela disse enquanto pedia mais uma dose de conhaque com canela.
- Tem gente que só acha a vontade de viver depois que morre...
- Mas aí não é preciso achar mais nada, terminam-se as buscas.
- É por isso!
Naquele momento, brindamos a ruína e toda a merda que cercava nossas vidas empoeiradas, sujas e lamacentas. Uma sequência de fatos, a rotineira catástrofe humana e suas inutilidades e futilidades. Fome de alimento, fome de amor e dor; corpos fedorentos, podres por dentro. Brindamos ao homem como uma raça morta, e ao sono como única esperança.
- Que seja eterno, que seja eterno... - sussurramos, por fim.
A noite caía lá fora, e todo o resto caía também.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Das coisas

da morte e
das árvores contorcidas
em forma de monstro
da estrada cinza, da penumbra
no abismo

do seu sorriso,
do seu ódio paralelo
e de todo o arrependimento discreto
vou lembrar

minha vida sem luz
na coisa toda que é a existência
na ausencia do toque, do tato
vou lembrar que mesmo sem sorrisos
sorri por você uma vez,
duas, três vezes
e ainda, sem querer, desculpa
se falhei.

de quando te conheci
por pele, por corpo
por gente e nunca, jamais, quis
abandonar

era noite, eu sei
era quase isso e melhor
não podia ser.

do buraco e
da terra, das cinzas todas
que você jogou na minha cara,
minha mente humana sem sinal do real
vou lembrar

da sua existência pequena
tão grande para mim,
e eu formei tantos planos,
confiei sozinho e
paguei o preço.

das vezes tentadas,
e ganhadas.
das vezes perdidas por
orgulho de quem,
agora não importa

das salivas em combustão,
da rodoviaria suja que
não podia, em branco,
passar e ainda a presença quase oculta,
os abraços de alguém que
não pode julgar, culpar

de alguém que não terminou, mas
afogou, afoguei, matei em termos
por não querer, não resistir e
ainda, diria Cazuza,
nessas horas pega mal sofrer

do meu fim eterno,
dos fantasmas e
dos sorrisos
vou lembrar

desse poema segundo,
pois o primeiro só a mim (e a você)
pertence.
da sua ignorância latente, sim
porque existe essa marca qualquer em mim também

num desabamento continuo de letras,
palavras mornas e mortas e a maneira
como te amo, te amarei
vou lembrar

como um tigre lembra da presa
na seca, no mais fundo vazio
do espírito,
de você e de mim, se acabou assim
guria
vou lembrar.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Você, Cesar

Seu nome é Cesar Costa Magno, mas com o passar dos anos a maioria resolveu te chamar de Cezinho. Você não sabe a origem do apelido, nem mesmo lembra quem ao certo o inventou, mas tem certeza que o odeia e nunca se viu em posição de recusa-lo, apenas para preservar seu autocontrole sobre sua personalidade insana e enlouquecedora. É só vez ou outra que ela desliza de seu interior para as luzes do mundo, geralmente em seus momentos mais solitários, pois não gosta de chamar a atenção, não suporta olhos presos em seus movimentos. Você prega a invisibilidade e é fadado a viver num mundo de aparências. Todos esses patifes e suas autogabações causam coisas dentro de ti; é a morte deles que você espera, que você quer provocar. Você vê futilidade em tudo, Cesar. Você não suporta superioridade ao seu redor, não quer sentir-se inferior de forma alguma, mas anda por aí com o fracasso rabiscado nas costas. Pode ser coisa do seu psicológico e até uma fraqueza maior entre todas as suas fraquezas ou simples capricho do seu eu maléfico. E que palavra forte essa, você pensa, mas entende que todos necessitam de coisas más e boas para chegar ao autoconhecimento, e você fala disso como um professor. Autoconhecimento você já teve o suficiente e sabe que não vai mudar.
Você está assistindo um filme agora. Deitada ao seu lado se encontra sua nova namorada, com os braços ela parece dar um nó em seu tronco. Você sente calor, mas a garota quer estar sempre próxima e ela sorri uma porção de vezes também. O nome dela é Pâmela e ela acredita nos seus falsos sorrisos, Cesar. Você tem a sua certeza de que nunca ou raramente vale a pena sorrir verdadeiramente. Nunca se sentiu capaz de esboçar sorrisos aos ventos e a maioria faz isso. Você sempre se pergunta: Por quê? Você não sabe e continua odiando com todas as forças os sorrisos em excesso. Também não está acostumado com os relacionamentos e nem deve. Você sabe que no fim, pouco importa a diferença em suas expressões de felicidade, ou a maneira com que te olham e até mesmo seus perfumes exalando de suas peles suaves e incomparáveis. Uma mulher sempre está pronta para ir embora, para cavar seu tumulo e te jogar lá dentro. A pergunta incansável que vem até sua cabeça é: Quantos túmulos teria de ter até a morte? Você não pode dizer uma quantidade exata, mas pode torna-los mínimos. Relacionamentos quando não são cansativos, são passageiros e vice-versa, ou ambos.
Pâmela tem amigos que você odeia sem nem mesmo os conhecer. Não há nada a ser feito perante isso, e você aceita os fatos, mas não confia plenamente na mulher e acha que nunca vai confiar. Tem sempre uma pontada em seu cérebro, uma coisa que quer inibir seu sistema respiratório e te incinerar por dentro como um cadáver no crematório. Pâmela também ficou amiga de Tomás, de uma hora para outra. Na verdade foi Tomás quem a procurou, o que te deixa mais irritado e cheio de ódio que qualquer outra vez em sua vida. E não é só por isso, você sabe que não é a primeira vez que Tomás vai atrás de uma mulher sua.
Tomás tem todo o jeito de modelo, com suas malditas tatuagens, ao contrário do seu, desengonçado e magricelo. Você sabe que não tem inveja, inveja é uma coisa muito baixa, você só admira o podre e quer acabar com o belo, também não é só isso, outros dos seus ódios são essas pessoas que falam muito para o pouco que fazem, ele é assim. Sua implicância perante Tomás e todas as coisas que ele faz só aumenta. A mania de aparecer em todos os lugares que ele tem, seu rosto bonito desafiando sua vontade de destruir coisas belas, Cesar. Aquela mania dele, de querer parecer malvado nas redes sociais, mesmo distribuindo bondade por todas as frestas do corpo. Parece mesmo que agora é moda ser mal na internet, você pensa. E bancar o revolucionário também. Imagens sobre a politica são tão inúteis quanto os balbucios de um padre numa igreja, porra. Tudo o que ele faz te causa náuseas de ódio, todas essas coisas estúpidas que acabam vindo dele, com aquele corpo enfeitado. Todos ao redor achando isso uma maravilha, aplaudindo a falsa moral e aquelas atitudes todas que nada condizem com as palavras que saem da boca, inclusive Pâmela. Isso te leva á loucura, te leva ao mais profundo abismo da raiva. Pâmela nunca perceberá, e isso nunca te deixa em paz, não sai da cabeça. Ele ainda se faz de seu amigo, Cesar, e você ri. Ri por fora, mata por dentro. É você se escondendo mais uma vez, tapando suas feridas na escuridão do seu espirito em desespero, da sua vontade translúcida de acabar com toda essa palhaçada. Reconhecimento desmerecido para os vermes é o que mais existe no planeta e isso paira bem no fundo do seu encéfalo agora.
O filme já está no final e você o passou navegando em sua consciência. Pâmela em seus braços, seus pensamentos naufragando na realidade. A TV, os rostos carregados de morte, a rotina, o trabalho que nunca basta, o planeta transformado em máquina, a chaga recente que aquela outra mulher lhe causou que nunca cicatriza. Tanto para odiar, pouco para amar é o que resume a sua vida. Você vê com antecedência as coisas boas tomarem distancia e dissiparem na atmosfera. Você sente que tudo te deixa para trás e agora até seus poemas que nunca serão reconhecidos resolveram fugir, Cesar.

sábado, 3 de março de 2012

Toda dor acaba sendo individual

O pior é encarar todos os dias a maçaneta da porta, com meus dedos cansados e pulsantes e o aço frio penetrando como uma faca na palma da mão. Por vezes ela parece rir, com todas as suas farpas e suas marcas de idade, como uma ilusão saltando dos olhos, do cérebro, direto para a realidade tão cansativa e atormentada quanto a minha própria cabeça e qualquer merda que venha existir dentro dela. "Merda, ou a gente tem isso na cabeça ou enlouquece na mesma com o certo dos outros. Merda na cabeça, para eles, é toda vez que o rosto daquele infeliz ocupa parte do seu encéfalo enquanto o resto dele fica com sede de sangue, mas você sabe que isso seria certo e é uma coisa sua, uma coisa nossa." Descreveu Rocco certa vez.
A maçaneta tem desenhos curvilíneos que a fazem parecer uma flor morta, fossilizada naquele metal velho. Tenho três dedos parados sobre ela. Rocco está um pouco mais para a esquerda, onde se encontra um sofá verde escuro, que parece envolto em musgo. Ele tem uma bolinha de borracha que pula e faz um barulho repetitivo no assoalho, repetitivo na minha cabeça como sua voz enfadada; isso me da a impressão de que ele sempre está pronto para o suspiro final. Olho por um instante para meus dedos, minhas unhas estão compridas, os cantos dos dedos gastos e machucados."O que tem lá fora? O que tem lá fora?" Eu sei o que tem lá, eu vivo amedrontado pela janela, mas ele gosta de alertar varias vezes. "Você não sabe, pois vou dizer. Tem sujeira, tem gente sabe? Onde tem isso, tem sujeira. E montes de merdas de carro e varias rotinas tão miseráveis quanto a sua. Você não quer isso. Sabe o que mais? Tem olhos, muitos olhos horríveis." Eu peço para ele parar uma e duas vezes, sua voz continua a propagar pelos cantos. "Não pode ser tudo tão estúpido, tão cru. Custa acreditar que alguém retira forças para trabalhar, para viver e correr no meio desse inferno por essas bobagens todas. O que é esse sofá? Conforto? Ilusão. Viver pra que? Acordar por quê? Ilusão. Eu não sei onde arrumar essas respostas. Você não sabe, você não tem isso. Sua vontade caindo, caindo. Seus dedos escorrendo da maçaneta mais uma vez. Ter cuidado pra quê? Querer o que, quando nada existe?"
Lembro quando Rocco contou sobre o trabalho. Dizia que odiava trabalhar em equipe, mas era obrigado a engolir gente, obrigado a ouvir gente que não estava interessado. "Eles tem bocas fedorentas, a maioria nesse mundo substituiu o cu pela boca." Ele não queria ouvir ninguém, não queria ser ouvido e mesmo assim, era ouvido por mim. "Lembro ainda de quando era mais jovem, quando minha mãe e todos diziam para que eu procurasse algo que me agradasse. Eu sabia que essa hora eu devia pular numa trincheira, armado, e lá ficar. Eu nunca soube o que procurar. Agradar, gostar, essas palavras me confundem. Eu não gosto de nada. Não quero nada. Não espero nada nem de mim, nem de ninguém."
Eu também não tenho uma vontade salvadora cravada no peito. Esse é meu heroísmo sádico. Um heroísmo a minha maneira. Não tenho mais vontade de mudar o mundo, nem as pessoas. Não adoro falsos altares, nem deuses. Não estou interessado em quem está no poder, ou no valor do recheio da minha e da sua conta bancária. Eu preso pelo fim, pela destruição total, o mundo agora é como uma lâmpada falhando em meio a escuridão, a humanidade já deu o que tinha que dar. Rocco gosta disso tanto quanto eu. Hipocrisia? Não, nós não fazemos parte de uma felicidade que não existe, não fazemos parte da ilusão. "Me incomoda a mídia, os sorrisos. É o falso bem e bom de mentira falando a todo tempo. Onde está a voz dos seres viscerais? Os malditos onde estão? E eu não falo de criminosos, sabe como é, existem mais deles propagando essa bondade do que nos presídios. Todo esse poder da imagem da imagem da imagem. Agora já podemos vomitar"
Meus dedos deixam a maçaneta. Rocco esfrega as mãos no rosto, ele soluça baixinho e seu choro é sem lágrimas. O mundo tem cheiro de poeira misturado com carne podre. A jaula dos quatis, no zoológico tem cheiro melhor. Ando tendo muitas dores de cabeça e meus olhos ardem constantemente. Toda dor acaba sendo individual, mas a minha é do Rocco também.