quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Entre batatas, homens e baratas

Tinha mãos grandes e gastas, unhas que pareciam feitas de marfim surrado pelo tempo, manchadas de preto nas beiradas roídas. Abraçava com os dedos calejados e sujos o cabo esverdeado de madeira da faca. Na ponta da mesma, energizava-se um cometa frio e apagado como sua pequena vida de rato humano escondido no porão que ele mesmo traçou em seu peito com as agulhas que ganhou dos anos. A lamina partia em dois o coração amarelo, quase branco da batata enquanto sua alma escorria em gotas de suor por sua testa franzida e pelas rugas que sorriam no rosto.
Parou por uns instantes e enquanto a raiz sangrava silenciosa em cima da pia de mármore esbranquiçada e velha, moveu os chinelos gastos e ressecados até a janelinha que dava vista para o beco situado logo atrás da sua pequena casa. O orvalho formado da chuva do dia anterior ainda escorria do limbo das paredes do vizinho. Aquele verde era o único destaque do lugar; o resto se afundava num breu infinito de podridão, cimento e tinta escurecida, descascando pela idade. As transbordantes latas de lixo eram tão cinzas quanto seus dentes, tão húmidas quanto sua língua vermelha e assada.
Com as mãos ásperas apoiadas naquele vidro engordurado, pensou em baratas e nas tantas semelhanças que essas criaturinhas feias tinham com a sua raça. Os mesmos rostos escondidos na carapaça cascuda e imunda. As mesmas antenas voltadas para um céu que não existe; para uma água que não é limpa; para uma vida que não é vida. Os dois olhos fixos no teatro macabro onde sempre acabamos pisados, esmagados, estraçalhados. Ou pelos outros e seus olhos e espetos que valem mais que flores. Ou pela névoa infinita do pensamento que inflama no cérebro, na carne, na sola dos pés e mais tarde escorre invisível pelos olhos trêmulos.
Ele morreu ali sozinho, debruçado na janela, deitando vagarosamente sobre o assoalho coberto de pó.
Uma semana depois, quando os vizinhos resolveram avisar os filhos do velho sobre alguma coisa estranha que passava dentro daquele casebre, o corpo já fedia e espalhava pelo teto e nas paredes o cheiro triste de morte isolada, escondida. O coração da batata ainda lá, estático no gelo do mármore agora estava como o dele, partido pelo cometa do tempo.

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