sexta-feira, 13 de julho de 2012

Epílogo

Não é de hoje, não é novidade. O que eu tiro daqui é só cansaço, é apenas uma coisa que vem e volta com o tempo, com o clima e o ar, no cheiro do orvalho em meio ao odor cinza da cidade ou no oco do silêncio dessa madrugada crua e insone. Também não é tristeza da mais pura, não. Longe disso. É só essa ideia que parece uma faca afiada e certeira, dando pontadas na boca do estômago. Hoje até meu travesseiro é uma navalha. Eu encosto a cabeça e sinto o couro rasgando por dentro e por fora, mas isso nem importa tanto, já que há tempos carrego um peso extra pra dormir. Acho que o pior peso de todos é acordar e antes mesmo de sair da cama, já mergulhar de cabeça nessa piscina vazia que é a rotina incrustada nos dias. Isso é sair da cama, vestir-se, correr para o trabalho que você odeia ou finge gostar, receber uma merda dum dinheiro a cada mês e aguentar conversa batida dos colegas durante seis ou mais horas a cada dia. Achar tempo para os amigos. Ir ao mercado, rechear de porcaria o carrinho. Fazer turismo na TV mudando freneticamente os canais. Comprar roupa nova, celular novo, carro novo quando der. Tirar satisfação desse monte de lixo comprado que a gente na verdade mal precisa. Limpar a casa. Ir ao médico, dentista. Atender telefone, mandar sms ilimitada por causa do plano que você fez com a operadora. Ir ao banco pagar a fatura do cartão, as contas da casa e impostos. Fila nisso, fila nos mercados, nos cinemas, nos aeroportos. Intermináveis salas de espera. Pedágio na estrada. Pegar transito no frio, no calor, na puta que pariu. Às vezes transar pra pensar que tem uma válvula de escape. Até dormir demais cai na rotina. O lado bom é que dormindo a gente nem percebe. Isso, dia após dia após dia. Mas tudo bem, a gente se acostuma, e acostumar-se a tal coisa também é rotina. A vida é pura adaptação, tem quem diga. E de certa forma, já estou mesmo adaptado. O problema na verdade nem é tanto esse monte de coisas que estão aí, pra ficar. Não é essa ilha tão grande que a gente tem que percorrer, dando voltas. O problema é só ausência.
Sabe que outro dia sonhei que estava morando em Barcelona e as coisas estavam indo realmente bem, era aquele inverno gostoso de fim de ano e eu encontrava você, assim ao acaso, caminhando pelas Ramblas no meio de todos aqueles cafés e lojas de pequenos souvenires e estátuas humanas excêntricas. Os mesmos olhos castanhos, bem escuros e críticos e os passos leves, que vinham como uma neblina pronta para me abraçar. Acordei enquanto inclinava-me para jogar uma moeda para uma das estátuas, e quando olhei para o relógio no criado mudo, percebi que só tinha dormido três horas. Grande merda o sono, nessa altura a única coisa que eu podia fazer era calçar os chinelos e dar uma espiada no quintal. Fumar um cigarro, pegar algum livro do meu escritor favorito. Ficar ali, uma ou duas horas, junto com a minha cretinice. É assim que venho parar aqui, com uma carta na mão, um texto, qualquer merda dessas que nunca vão sair do lugar.
Ah, pequena. Podemos remar em correntezas diferentes, mas só queria dizer que sinto falta da alegria irresponsável que eu tinha com você; até mesmo dos relâmpagos que por vezes, muitas vezes, saltavam entre as falhas. Eles também foram esplêndidos.

6 comentários:

  1. A ausência completa de vazio e nos livra da amargura de viver com. Até por que conviver é a grande e interminável rotina. Tente ver pelo lado bom. Milhões de pessoas, rostos, vozes e você pode escolher quem quiser.

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  2. Esse também é esplêndido, haha. Que texto! Senti por alguns segundos vivendo outra alma. Textos em primeira pessoa tem essa vantagem, são tão deliciosos. Muito bom mesmo, cara!
    Infeliz é a dessa rotina que nunca muda. Acho que até fugir da rotina sempre viraria uma rotina. =(

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  3. Concordando com o comentário acima, este também é um texto esplendido.
    Suas estórias (ou seriam histórias?) prendem, talvez por terem esse aspecto tão nítido do que, realmente, a vida é composta, então não dá pra parar de te ler e não dá pra parar de se admirar/identificar.
    Mas é uma pena termos que ser escravos da rotina.

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    1. seria estória, porque história é a matéria escolar, mas atualmente acho que universalizaram tudo pra 'história', em ambos os casos haha

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  4. Maravilhoso. Honestamente,não me absteria do egoísmo de lhe desejar outras e outras penosas rotinas, nesta e em outras vidas, fossem elas, mais tarde, responsáveis por tão inspiradoras palavras. Egoísmo, egoísmo e egoísmo. Obrigada, Rotina, por existir. E obrigada, Guilherme, por extrair arte desses infindáveis e pesarosos dias repetidos.

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