domingo, 4 de novembro de 2012

Clichês efêmeros

O conto a seguir sofreu pequenas alterações ao longo das últimas horas (05/11/2012 - 02:07).

Estamos numa noite nublada de quinta-feira. As nuvens estão um tanto carregadas, trovões e relâmpagos tomam parte da penumbra do céu formando desenhos e rabiscos luminosos que me riscam os olhos. Por um instante desvio o olhar do firmamento em direção ao chão, reparo numa moeda de cinco centavos presa entre as pedras da calçada, já tão gasta quanto as solas dos meus sapatos. Estava quase irreconhecível, parecia esquecida ali há muito tempo. Isso dispersa meu pensamento por instantes e me faz lembrar que precisava comprar calçados novos, e talvez umas meias.
Volto a olhar para o céu. Não transpiro muito, mas o calor dos últimos dias faz minha testa umedecer levemente. Não estaria mal que começasse a chover. Tento evitar olhar as horas, e é bom que elas me evitem também. Impaciência é uma coisa que não combina comigo, não é o tipo de negócio que costuma borbulhar dentro de mim. Na verdade mal sei o que é isso; se não fosse por estar parado aqui, na frente desse bar, no meio de um movimento incessante de pernas e mais pernas esperando por ela, provavelmente todo meu corpo estaria imerso em apatia e indiferença. Não existe substancia ou situação que eu conheça até então que me cause efeitos tão devastadores quanto essa mulher. Bizarro, colega. Eu não sei descrever o tipo de força que ela emana para me construir e me derrubar quase que ao mesmo tempo. Eu não sei descrever merda nenhuma quando se trata disso. É quase bestial. 
Tenho sede e vou para dentro do bar. Penso em comprar uma cerveja. Melhor, cerveja não. Não agora. Pego uma água. Lembro-me de algumas das várias discussões que tivemos no passado por causa do álcool. Está tudo bem, eu tento beber menos. Eu quero fazer as coisas certas uma vez na vida.
Planto-me outra vez na calçada, observo entre as cabeças, em meio às luzes e os relâmpagos. Não há sinal de chuva no céu e eis que a vejo virando a esquina, com seu pouco mais de 1 metro e 56 centímetros. Cabelos negros, de tamanho mediano balançando com a leve ventania que contorna as pessoas e os prédios. Faz aproximadamente oito meses desde o nosso último encontro, uma coisa corrida. Um quase adeus tão deprimente quanto a ausência que venho sentindo. Porra, eu não sei por que diabos tudo entre a gente ficou assim. Não entendo como deixei, ou deixamos tudo chegar nesse ponto nebuloso, nessa nuvem negra que separa vidas da mesma forma que separa o céu da terra. 
Agora Ana surge em minha cabeça. Por alguns instantes sinto-me como se estivesse sido transportado para um universo paralelo, como se tivesse perdido os sentidos, afogado em reminiscências desgastantes, é isso que certos erros fazem com a gente. Estou imaginariamente longe do bar, da calçada, do fedor da cidade. Ana foi mais um dos meus erros. Talvez o pior da minha vida até então e digo não só por mim, mas também por ela. Ana não tem culpa por ter sido uma coisa que plantei sem querer colher, e não devia sair machucada. Mas ainda assim dividi meu erro com ela e sou sujo por dividir minhas culpas, sujo por algum dia ter jogado metade dos meus sacos de merda nas costas dos outros. Sujo por em momentos de loucura ter alimentado vezes sem conta um ódio tão vil, tão porco, inclusive de mim mesmo. Dividi o peso, mas a capacidade de ter afundado aquilo que mais queria quando voltei para cá será sempre minha. Ana, uma brisa que soprou no canto errado, um pássaro que se perdeu no céu escuro dessa sujeirada que fiz e agora tento limpar. Isso tudo significa ser humano. Isso tudo significa ser humano por ser tão errado.
Se eu pudesse voltar naquela sexta, era começo do ano. Eu teria atendido aquele telefonema, Camile. Eu teria mudado o rumo dessa merda toda sem abrir feridas em ninguém, como devia ser. Mas fiz a coisa ao avesso e agora agonizo.
Começo a voltar ao mundo real. Estou novamente em pé na calçada esperando por Camile, que virou a esquina e agora já está tão próxima que posso olhar fundo em seus olhos, e mergulhar mais uma vez naquelas duas luas negras, os satélites do meu melhor planeta.
Instintivamente pego o maço de cigarros do bolso, levo um a boca e acendo. Não me parece a melhor coisa a ser feita, mas não levo nenhum jeito para reaproximações. Nunca levei. Só percebo que estou realmente fumando quando dou lá a terceira tragada. Camile agora está parada em minha frente e estica seus bracinhos finos de pele meio morena em minha direção. É um abraço gelado, como aquele de oito meses atrás. Ela olha em minha direção e deixa escapar um sorriso falso, quase rasgado.
- E pensar que antes você dizia que eu estava carregado de falsos sorrisos... - eu digo
- O que quer dizer com isso, err Diego?
- Nada.
- Você não tinha parado de fumar?
- Achei que tinha.
- Tá aí uma coisa que não muda em ti. Vive achando demais.  O que tu faz com as certezas?
Eu não respondo. Procuro uma mesa e faço sinal para sentarmos. Amasso o que sobra do cigarro numa lixeira próxima. Ela parece impaciente, não para de brincar com um cordãozinho da bolsa e evita olhares diretos. Ela sabe se esquivar como ninguém e sempre acaba me desarmando.
- Todo ano é a mesma situação. - eu digo
- Acho que dessa vez é diferente.
- Em que sentido?
- Não sei. Nem sei o que você quer dizer com isso...
Tento desconversar, ela tem o controle de tudo. Não demoro em perceber o quão fodido estou.
- Camile... Eu sinto sua falta.
- Eu também sinto a sua, mas não acho boa ideia a gente voltar a se falar. - ela ataca dessa vez, sem flanquear.
- Por que não?
- Porque eu já passei por isso duas vezes e não quero passar uma terceira.
- Se você acreditasse...
- Mas eu não acredito, Diego. Não acredito. Isso nunca funcionaria. E também não quero falar sobre tudo o que a gente já conversou antes. Então não comece um monólogo.
- Não seja egoísta. Tô me encontrando com você porque sempre quis as coisas diferentes.
- Egoísta o caralho, entendeu? Já se esqueceu das outras vezes? Eu tô cansada das suas merdas. E isso nem sequer é um encontro. – ela olha para o teto, leva uma mecha do cabelo para trás da orelha e continua. – Sabe, você deve ser o cara mais estagnado que eu conheço. Das coisas que você queria, chegou a concluir alguma? Você desiste de tudo. Você morre pelo caminho toda vez.
- E o que é que você sabe sobre as coisas que eu quero? 
- Agora estamos fazendo avanço. Você desistiu de mim inconscientemente. Apenas não descobriu ainda, Diego. 
Dou uma golada na garrafa de agua. Espero em silêncio para ver se ela solta mais alguma bofetada verbal. Ela voltou a se posicionar na defensiva. Penso em atacar, mas não tenho forças. 
- O único avanço que eu queria fazer aqui era me acertar com você.
Tento investir com um beijo, ela se inclina para trás e vira o rosto. Sinto o cheiro da maquiagem, a leveza de sua pele. Como me faz falta aquele toque... Eu recuo por um segundo. Agora tento abraçar seu rosto levemente com uma das mãos. Ela levanta: 
- Já estamos acertados, de certa forma.  Eu vou indo agora.
Camile começa a andar. Eu a acompanho, desviando dos transeuntes que aparecem em minha frente. Viramos a esquina. O metrô está logo ao lado, ela desce as escadas quase levitando, como se eu não estivesse ali. Continuo atrás. Sinto por dentro um desespero fora do normal subindo pela boca do estomago e girando no esôfago. Essa coisa é tão incomum para mim que mal consigo acionar um mecanismo de defesa. Estou completamente rendido e em segredo não sei o que fazer. Compramos os bilhetes, passamos as catracas. A merda do trem já esta lá. Ela vai irredutível até a porta:
- Camile, espera!
 Ela me olha pela última vez, antes de entrar:
- Eu disse que se você terminasse com ela, ia ficar sozinho. Otário.
- Fico sozinho então, porra, fico sozinho! – nesse momento eu perco a paciência e começo a gritar. – Isso não me faz mais ou menos fudido do que já estou, Camile!
Algumas pessoas olham um pouco assustadas enquanto passam pela plataforma.
- Então tá bom. A gente se vê.
Ela embarca no trem, sem olhar para trás. Agora estou impotente, gritando do lado de fora. Começo a andar de costas, sem tirar o olho da janela onde ela está sentada. O trem parte e some na escuridão do túnel. Tudo indica o último minuto, a última vez. Eu acabo de perder algo insubstituível. 
Tenho vontade de vomitar, mas minhas pernas querem correr. Saio do metrô, acendo um cigarro. Tento caminhar normalmente, enquanto praguejo em silêncio. “Vai pra puta que pariu, então. Vai...” 
O metrô mais uma vez leva uma parte de mim, enquanto apanho um táxi para a rodoviária. 
Desmembrado, estou voltando para casa. 

11 comentários:

  1. Muito bom o conto! Tão bom que minha vontade de continuar lendo fez minha imaginação correr...

    Uma chuva fina começa a cair molhando meus finos cabelos castanhos. Entro no primeiro táxi que encontro e dentro dele já está Diego,tão "desmembrado" quanto eu estou. Me olha e faz sinal de que vai sair... seguro seu braço: se vamos para o mesmo lado podemos dividir a viagem, penso, e não me importo. As luzes dos outros carros iluminam os pensamentos, não dizemos nada. Incrível como o silêncio nos aguçam outros sentidos! O calado passageiro tem um cheiro bom, combina com a umidade do dia. Será que tem um encontro? O motorista arrisca quebrar o silêncio comentando o quão chuvoso esteve todo este dia... não respondemos. - Por favor, senhor, é ali, na próxima esquina, diz Diego. O táxi para. Ele me olha agora, sorri timidamente e abre a carteira, paga ao senhor o valor até ali, deixa cair um papel em cima do banco do carro e sai. - Para onde seguimos, moça? Do lado de fora a chuva aumenta e Diego, com os ombros encolhidos, caminha devagar. Eu pego o papel caído sobre o banco, abro a porta e me despeço: - Desço aqui mesmo, senhor, obrigada, desço aqui mesmo.

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    1. Amanda, gostei muito desse "fragmento" que você escreveu. Dessa vez eu é que tive vontade de continuar lendo! E assim espero que sua imaginação corra muitas vezes mais...


      Aproveitar pra agradecer também a galera que comentou/comenta, ou apenas lê o blog de vez em quando. Enfim, é legal saber que existe gente lendo minhas coisas.

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  2. Li, reli e lerei novamente, meu caro Guilherme. Muito me fascinam as suas personagens... Sempre tão reais! Parabéns pelo conto e que venham outros mais. (:

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  3. Encontrei este teu texto por acaso e gostei tanto que li quase todo os outros. muito boa a tua escrita.

    "Está tudo bem, eu tento beber menos. Eu quero fazer as coisas certas uma vez na vida."

    E este teu personagem me deu uma excelente dica. Voltarei mais vezes.

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  4. Primeira vez que comento... gosto muito desse blog.

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  5. Seu blog é incrível! Adorei a maneira como você escreve, conseguindo passar toda a emoção dos personagens e fazendo tudo parecer muito real!
    Boa tarde!
    http://ograndetalvez.blogspot.com.br/

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  6. incrível esse conto, me identifiquei por demais, só me resta parabenizar pelo talento.

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  7. Quando sairá o próximo, meu caro? Tenho de dizer que seus textos são tão próximos da realidade que consigo mergulhar neles e demoro a voltar à realidade.

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  8. "uma brisa que soprou no canto errado, um pássaro que se perdeu no céu escuro dessa sujeirada que fiz e agora tento limpar. Isso tudo significa ser humano. Isso tudo significa ser humano por ser tão errado."

    Adoro ler seu blog, adoro saber que me segue e que talvez um dia possa me ler. adoro suas produções e adoro saber que não sou tão triste nem nos textos, nem na vida, sozinha. :D

    Parabéns

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  9. Muito bom! O modo com que você descreve as personagens e o ambiente, tão próximos da realidade, sempre me deixam querendo mais. Parabéns pelo talento (:

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