sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Esperança tem uma fada

A chuva ricocheteava entre os predinhos antigos e decorados com azulejos e também se perdia nos vãos dos paralelepípedos da rua. No meio da viela caminhava a moça, com o guarda chuva duelando com as gotas que escorriam por todo o corpo preto e velho do objeto. No olhar grande e profundo, podíamos ver alguns vestígios de dor que se penduravam em seus cílios compridos. A aparência cansada da menina não se limitava apenas em suas olheiras, mas podia ser percebida também na forma de caminhar, no passar quase flutuante pelas varias poças de agua que estavam formadas no calçamento. Seus lábios pareciam seda, eram levemente rosados e ficavam mais vermelhos quando sentia calor ou bebia vinho demais. Cabelo na altura do ombro, em tom meio caramelado que caia em cachos leves e brilhantes até o começo das costas, tampando assim a tatuagem da fada mórbida de asas escuras que levava nos braços um pequeno caixão decorado com fitas vermelhas e sujas. “A fada é a personificação do coração de toda essa gente e o caixão é a morada das almas.” Era o que costumava dizer quando perguntavam sobre o desenho.
Dobrou uma esquina que dava para uma rua sem saída, imunda e escura. Parou diante de uma portinha velha e apertada, buscou as chaves em sua bolsa de feixes gastos. Abriu. Deslizou pelos degraus da escada, na poeira, no escuro, na humidade infinita que escorria pelas paredes do velho edifício. Terceiro andar, oito era o numero meio apagado que a porta do aposento barato mostrava. Um cômodo só. Um banheiro fedido e apertado. A cama jogada de um lado, desarrumada. No guarda roupa uma porta faltava. Sentou-se em sua mesinha de lata no outro canto e o cansaço da semana pôde desabar todo sobre o ferro já meio enferrujado. Ela debruçou sobre os braços, a coisa estúpida e molhada e salgada começava a espirrar dos olhos como em todas as outras madrugadas. A rotina era essa, trabalho sujo nas noites quentes ou frias, lágrimas caindo como canivetes dos olhos entreabertos.
Seu nome era Esperança. Talvez fosse uma ironia do destino, uma brincadeira de mal gosto dos pais que muito cedo sumiram com todos os abraços. Ela adormecera ali mesmo, com os braços gelados. O cabelo descobriu a tatuagem e a fada saiu dos poros como fumaça e voou à toda velocidade com o caixão firme em seu colo, ela queria achar uma ilha e transformar aquele pequeno objeto tão morto numa simples explosão de paz. Esperança queria mais das pessoas, esperava algo que sua raça nunca teria. Queria uma cor nova pra essa filha da puta que até mesmo aqueles que realmente não têm, costumam chamar de vida.

22 comentários:

  1. Nossa, Guilherme!
    Que texto, heim!? O final dele então, nem se fala...Muito bom! Adoro vir e ler um pouco dessa realidade toda ;*

    '..Seu nome era Esperança. Talvez fosse uma ironia do destino, uma brincadeira de mal gosto dos pais que muito cedo sumiram com todos os abraços..'

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  2. ficou bom demais, guilherme. o último parágrafo tá muito foda! começa a ser até clichê falar da sua escrita...

    "Esperança queria mais das pessoas, esperava algo que sua raça nunca teria. Queria uma cor nova pra essa filha da puta que até mesmo aqueles que realmente não têm, costumam chamar de vida." ambiguidade, ironia e inteligência.

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  3. Realmente, começa a ser até clichê falar da sua escrita.
    Texto admirável.
    Sem mais.

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  4. Como sempre está maravilhoso né Garoto, tu tem muito talento, muito mesmo.

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  5. é como ler no meio de uma neblina,quando você acaba de acordar,no próprio sonho.

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  6. texto foda !



    adora anonimos né? haha

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  7. Nossaaa muito bom mesmo. Amei o texto. que talento :D

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  8. Chocante. Seus textos chocam, transbordantes de realidade nua.

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  9. "Esperança tem uma fada"

    "a coisa estúpida e molhada e salgada começava a espirrar dos olhos"

    "Queria uma cor nova pra essa filha da puta que até mesmo aqueles que realmente não têm, costumam chamar de vida."

    Ambiguidade, criatividade, genialidade, novos modos para dizer aquilo que sempre se repete de uma maneira maçante e usual. Muito bom :)

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  10. Muito bom, adorei o texto do começo ao fim e tive que rir quando li o nome da moça: Esperança. Ironia, sem dúvida.

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  11. Não é por acaso que este seja seu primeiro post do ano. Li outros posts também e gostei do blog. Mesmo nem sempre comentando, estarei sempre por aqui.
    Abraço!

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  12. Magnifico ainda não é a palavra certa a dizer perante esse belo texto, muito lindo! Não digo só o final por ser encantador mais digo sobre cada palavra você usando tecidos e enfeites para as deixar tão bonitas. Parabéns! Me encantando sempre.

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  13. Preciso falar alguma coisa? Nem sei porque ainda comento. Talvez apenas pra reforçar todos esses comentários. Sua intimidade com as pelavras é cada vez mais incrível. Parabéns (novamente)

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  14. INCRÍVEL. esrtá de parabéns,você escreve muiiito BEM : " Ela debruçou sobre os braços, a coisa estúpida e molhada e salgada começava a espirrar dos olhos como em todas as outras madrugadas"
    PERFEITO ! http://escrevendoaoinvsdefalar.blogspot.com/
    bjs !

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  15. Você é muito bom Guilherme, ficou incrível. Parabéns, estou seguindo.
    Posso divulga-lo no meu Blog?
    Sucesso!

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  16. Obrigado Guilherme, pelos elogios e dicas
    Pode deixar o próximo post será mais agressivo
    Valeu pela força.

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  17. Mais uma vez, tô aqui sem palavras! Maravilhosa a forma que tu escreve. Muito mais que maravilhosa. Teus textos me fazem pensar horrores, sinto algo diferente cada vez que leio.

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  18. Parabéns, muito bom o texto. Sensacional!

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  19. Você escreve muito, muito, muito bem.Não é de hoje que leio seu blog..
    Você é digno com certeza de otimos elogios..
    Parabéns!!!

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  20. Tinha quase me esquecido como era você e toda essa sua capacidade de nos amarrar, quase asfixiar e fazer pingar sangue de tanta admiração. Caralho, você é incrivel.

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