segunda-feira, 14 de março de 2011

Sobre a casa dos sonhos e suas saídas de emergência

Eram tão tristes aqueles olhos castanhos, que mais pareciam duas bolas de barro escorrendo como acido pelas linhas pálidas que moldavam suas bochechas. O nariz nem pequeno nem grande, bastante fino respirando todo aquele amontoado de verdades tão mentirosas quanto historias de mundos encantados e bonitos, falava mais que a boca dona daquele sorriso que pouco vi, e dos lábios que algumas vezes pairavam no rosto como névoa, neblina de manhã fria e chuvosa de cidade suja, esmagada por um tempo negro e mortal. E eu me sentia ridículo no meio de tudo aquilo, dentro daquele coração tão grande e confortável.
Lilian era assim, uma cova em formato de gente. Gostava de desenhar com laminas, na própria pele figuras abstratas de significados invisíveis para os outros. Dizia ela que não havia forma mais gratificante de se sentir viva. O sangue se esvaindo por cada ferimento aberto formava um laço entre o mundo que ela sustentava nalgum lugar daquela cabecinha coberta por uma mata encaracolada de cabelos loiros e meio desbotados e essa coisa estúpida que chamamos de nosso planeta.
Os bracinhos magrelos e as mãos pequeninas que vez ou outra me aqueciam o sangue do corpo todo onde até mesmo o sol era formado por gelo sempre pareciam agitados e trêmulos; enquanto no passar dos dias e das noites as luzes apagavam e acendiam, numa rotina esquizofrênica e enlouquecedora, como sua respiração. Isso me fazia lembrar sempre das palavras alcoólicas proferidas por ela no nosso primeiro contato: "Sabe, a vida da gente sempre vai ser esse apagar e acender de luzes, até que uma a uma, elas vão queimando e não percebemos mais a esperança, nem as cores dos prédios e das casas e do céu, porque nossos olhinhos famintos já se acostumaram com toda a massa redonda de escuridão e estão prestes a morrer sozinhos, da fome do amanhã.” Eu soube a partir desse momento que cedo ou tarde essa fome acabaria matando a mim também.
Eu era seu único amigo e Lilian sempre se mostrou muito satisfeita com isso. Às vezes cometia pequenos furtos em supermercados, junto dela. Esse era um hobbie peculiar que a divertia bastante. Roubava ração para o gato, bebidas, bolachas e balas. Também tomava muitos remédios, lembro-me de certa vez em que dormi em sua casa. Na sua bancada havia uma gaveta só para os comprimidos.
A mãe dela sempre me recebia com um sorriso. Um dia me chamou em particular e contou o tanto que gostava de mim e do carinho e da amizade que eu tinha com Lilian e também disse que a alegrava o fato de apesar dos problemas evidentes, eu sempre ser uma pessoa presente. Derramou algumas lágrimas após a conversa.
Eu tinha dezessete anos quando a vi pela última vez. Era madrugada e algumas pedrinhas voavam contra janela do meu quarto. Lilian estava lá fora, desci correndo as escadas. Ela me aguardava com uma caixa de papelão na mão.
- Olha, trouxe aqui o Tobias – Disse com a voz rouca, os olhos ainda humedecidos me deixavam sem entender a situação.
- Mas é seu Gato. Por um acaso vai viajar e quer que eu cuide dele?
- Não é bem uma viagem – Tentou sorrir.
- Como assim?
- Meu pai disse que vão me levar pra casa, pra casa dos sonhos e lá não posso ter animais.
- Que espécie de casa é essa? – Perguntei com os olhos arregalados, ainda meio sonolento.
- O pai disse que é uma casa pra pessoas assim, iguais a mim. Mas eu sei que até mesmo na casa dos sonhos, as saídas de emergência estão trancadas. – Colocou a caixa com o gato junto aos meus pés.
- Mas por que você tem que ir?
- Porque arranquei a cabeça de todos os meus bichos de pelúcia. Eu juro que me atacaram durante a noite. Vocês não acreditam, ninguém acredita.
Lilian virou-se. Começou a caminhar em direção a sua casa, do outro lado da rua.
- Espera! – Gritei – Eu acredito!
Foi a ultima vez em que vi o sorriso de Lilian brilhar igual a lua.
No dia seguinte, resolvi conversar com minha mãe sobre o acontecido:
- Ai filho, você sempre soube que essa menina era anormal, você sabia que ela tinha problemas.
- É, normais são vocês e seus carros e suas fábricas e contas bancarias, todos metidos numa rotina cega... Respondi em tom de reprovação.
Uma semana depois, os pais dela se mudaram. Minha mãe disse que foram para uma cidade mais perto do hospital. Nunca mais tive notícias.
Hoje, beirando os meus vinte e oito anos e ainda carregando saudade nos olhos, sei que todos nós estamos dentro da casa dos sonhos. Pouco a pouco ela se consome em chamas por dentro e por fora. E também sei que vamos queimar, porque como disse Lilian naquele ano, “as saídas de emergência estão todas trancadas.”

9 comentários:

  1. admiro muito seus textos, em especial por essa mescla sempre bem encaixada de reflexão filosófica e literatura. vivemos em busca de dinheiro, respiramos um ar tóxico, trabalhamos feito loucos e nem nos damos conta de quão insano toda essa vida dita normal é.

    engraçado, a Lilian me lembrou a Marla de Palahniuk em Clube da Luta e a Clarisse de Renato Russo, que fazia "marcas no seu corpo com seu pequeno canivete".

    demais, cara. demais!

    ResponderExcluir
  2. É simplesmente fantástica a forma como você escreve e descreve. Eu fico imersa nos seus textos, abestada com seu talento e com sua escrita tão envolvente. Eu admiro muito mesmo a sensibilidade que você tem para escrever e fiquei muito feliz de receber seus elogios no meu texto. Mais uma vez, parabéns!

    ResponderExcluir
  3. Quando comecei a ler achei que era mais um texto sobre reflexão coisas assim...mas não é...cheguei ao fim, sentindo o que o garoto de 17 e depois com 28 sentia...
    Gostei muito da reflexão, principalmente encaixada assim, nessa história que com certeza toca qualquer um que a lê.
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Nossa, fantástico! Me envolvi totalmente na história... Você escreve muito bem (eu já disse isso). Cada texto é maravilhoso, possui uma mensagem significativa. Estava ansiosa para que você postasse novidades rsrsrs e quando posta sempre é surpreendente os seus textos!
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  5. Valeu esperar tanto tempo por uma novidade! Concordo com a Mariana, é sempre uma agradável surpresa ler seus textos. Guri você tem muito talento. Espero que quando te descobrirem (e isso não vai demorar) você não abandone seus leitores daqui :)

    ResponderExcluir
  6. Não tenho um comentário super espirituoso como esses outros mas comento só para dizer que você é foda.

    ResponderExcluir
  7. o que eu acho você já sabe.
    PERFEITO !




    valéria

    ResponderExcluir
  8. Acho que nunca deixei um comentário aqui - se deixei não me recordo -, mas resolvi por fim dar minha opinião. A tua escrita é uma das melhores que já vi de blog em blog, a forma com que você nos proporciona imaginar a cena é admirável, além de prender o leitor a todo instante.
    Ah.. Não poderia deixar de ressaltar o quão grande é tua criatividade para títulos, preciso de um pouco disso. rs

    Parabéns guri! :)

    ResponderExcluir