terça-feira, 7 de junho de 2011

O pequeno caçador de relâmpagos

Debruçara na janela pouco antes do caminhão fazer tremer seu prédio de cinco andares e cinco décadas de idade, na esperança de que algum raio lhe partisse a cabeça, mesmo sabendo que este nunca viria, já que seria um ato de muita bondade da vida para com ele. E a verdade colega, ele conhecia muito bem. A vida nunca esteve a seu favor. Não estava a favor de ninguém.
Era um domingo negro. O céu escurecia calmamente junto ao ocaso daquela tarde invernal, não pela ligeira e doce saudação da noite, mas sim pelas volumosas nuvens negras que não tardariam em derramar suas lágrimas sobre a terra cinzenta. As nuvens aconchegavam-se no firmamento como bebês em um grande berço escuro e mórbido aguardando os abraços dos sonhos de papel.
O pequeno caçador de relâmpagos morava no quarto andar. As paredes eram todas rabiscadas. Vomitava os pensamentos em cima da tinta branca escurecida pela idade como se aquilo ali fosse a única página que sobrara em sua vida. Não gostava dos vizinhos, nem de rodas e carros e aparelhos televisores. Ele era assim, era aquilo. Uma espécie de humano em mutação, um quase bicho.
Nosso pequeno em questão tinha lá seus quase vinte ganchos de idade fincados nas costas, devidamente presos e enroscados na carne magrela e pálida. Não era muito interessante aos olhos dos outros e já nem queria ser. Tentava ser visto há alguns anos, mas agora a inexistência calhava melhor. Era tão boa quanto uma barra de chocolate. Nada podia ser mais confortável quanto a ausência de todas aquelas vozes pinicando, espetando, arranhando a cabeça.
Moveu-se em direção à porta. Fitava-a com um ar pesado de chumbo e bronze, apoiou uma das mãos sobre o aço gélido da maçaneta. Todos os dias, quando se via forçado a caminhar até a padaria, esperava que o edifício viesse em ruína para que aquele pesadelo fosse evitado. Direcionar seus passos pela rua era um tormento. A cidade pequena o sufocava como se fosse uma câmara de gás. A mesmice dos rostos estúpidos o irritava. Às vezes sonhava que as pessoas daquele lugar não passavam de baratas imundas passeando por um esgoto cercado de casas. Tinha vontade de martelar a cabeça de cinco ou seis conhecidos até os miolos vazarem pelos ouvidos como se fossem pus toda vez que corria para o abismo seguinte. Coisa que lhe roubava varios sorrisos.
Quando finalmente resolvera colocar os pés na rua e flutuar sobre a merda toda, contando as moedas para o pão, passou pelo velho do casebre verde musgo da esquina. Ele sempre estava lá, sentado em sua cadeira de praia amarela, com os olhos semimortos em direção ao nada que se tornou sua existência. Mais um relato da vida fraca e frágil perdendo outra vez para o tempo. “Que grande homem é aquele”, pensou. Chutou algumas pedras que se soltaram da linha do calçamento cuidadosamente construída por mãos esquecidas. Dobrou a esquina enquanto alguns pingos solitários começavam a cair apressados. Acendeu um cigarro como se fosse fazer um sinal de fumaça para que mandassem tudo lá de cima, para que tudo viesse abaixo de uma vez. Chegou a praça que sempre existiu atrás do quarteirão, lembrou do tempo de criança, quando o pequeno era realmente pequeno. E lá estava o parquinho, as balanças gastas e enferrujadas vigiando seu túmulo na areia, afundando, todo engolido pela sujeira que os gatos deixavam pelo lugar. Lembrou também do tesouro que um dia enterrara naquele espaço morto e ficou imaginando se ainda poderia estar perdido por ali. Talvez se cavasse o encontraria inteiro e seria transportado para o passado como num passe de mágica, e deixaria tudo o que era cruel e sujo no presente.
Quando a agua toda começou a desabar, o pequeno caçador de relâmpagos ficou a contemplar as luzes dos raios entre as folhas das árvores e o seu mundo paralelo de dez anos atrás. A padaria ficava do outro lado da praça, mais uma rua a ser atravessada, mais um pedaço de terra podre a ser percorrido. O pequeno caçador de relâmpagos esquecera o guarda chuva mais uma vez.

7 comentários:

  1. Encantadora mistura de cores, odores, texturas e sabores traduzida em palavras! O "pequeno caçador de relâmpagos" é sábio... consegue contemplar a verdadeira beleza! E, se cavar bem fundo conseguirá, com certeza, trazer à tona o seu melhor tesouro :o)

    ResponderExcluir
  2. O texto prende o leitor do início ao fim. O pequeno caçador de relâmpagos consegue ter uma visão única do mundo a sua volta, a vida a margem do esgoto. Os tempos de outrora são sempre mais sedutores que a mesmice do presente estúpido em que vivemos. Quem sabe, como escreveu a moça ai em cima, se ele cavar bem fundo poderá encontrar o tesouro, e consequentemente, a felicidade.

    ResponderExcluir
  3. Faz um bom tempo que não venho aqui, que não te leio e seus textos continuam incriveis, continuam prendendo a atenção de quem lê, sempre com uma mensagem, um ensinamento, uma reflexão.
    O pequeno caçador de relâmpagos, como comentou a primeira é sábio, um grande caçador de relâmpagos!
    "Vomitava os pensamentos em cima da tinta branca escurecida pela idade como se aquilo ali fosse a única página que sobrara em sua vida."

    ResponderExcluir
  4. Fantástico! Vim até seu blog por meio da comunidade Escritores de Gaveta e, ao ver a qualidade dos textos, me lembrei de que não é a primeira vez que venho aqui... Foi um bom reencontro :)
    Você escreve muito bem, e segue um estilo que muito me agrada... Parabéns, de verdade.

    ResponderExcluir
  5. oh! o título me lembrou o Ladrão de Raios.. rsrs
    mto bom o conto =]

    ResponderExcluir
  6. Pois é, também lembrei do Ladrão de Raios. O que mais chamou atenção foi o tom melancólico do início ao fim. Engraçado como uma pessoa que "sabe apreciar a vida" vive ela de modo tão monótono e cansativo, mesmo sendo um atrativo incomum.

    Gostei de mais daqui, parabéns!

    ResponderExcluir
  7. Bom, eu não sei se você se importa com esses "selos" que normalmente circulam entre os blogs. Mas eu não pude deixar de indicá-lo um selo, pois seus textos são incríveis e sempre trazem uma mensagem realista.
    Parabéns pelas belas palavras! =)

    http://mysteriesclouds.blogspot.com/p/selos_20.html

    ResponderExcluir