sábado, 3 de março de 2012

Toda dor acaba sendo individual

O pior é encarar todos os dias a maçaneta da porta, com meus dedos cansados e pulsantes e o aço frio penetrando como uma faca na palma da mão. Por vezes ela parece rir, com todas as suas farpas e suas marcas de idade, como uma ilusão saltando dos olhos, do cérebro, direto para a realidade tão cansativa e atormentada quanto a minha própria cabeça e qualquer merda que venha existir dentro dela. "Merda, ou a gente tem isso na cabeça ou enlouquece na mesma com o certo dos outros. Merda na cabeça, para eles, é toda vez que o rosto daquele infeliz ocupa parte do seu encéfalo enquanto o resto dele fica com sede de sangue, mas você sabe que isso seria certo e é uma coisa sua, uma coisa nossa." Descreveu Rocco certa vez.
A maçaneta tem desenhos curvilíneos que a fazem parecer uma flor morta, fossilizada naquele metal velho. Tenho três dedos parados sobre ela. Rocco está um pouco mais para a esquerda, onde se encontra um sofá verde escuro, que parece envolto em musgo. Ele tem uma bolinha de borracha que pula e faz um barulho repetitivo no assoalho, repetitivo na minha cabeça como sua voz enfadada; isso me da a impressão de que ele sempre está pronto para o suspiro final. Olho por um instante para meus dedos, minhas unhas estão compridas, os cantos dos dedos gastos e machucados."O que tem lá fora? O que tem lá fora?" Eu sei o que tem lá, eu vivo amedrontado pela janela, mas ele gosta de alertar varias vezes. "Você não sabe, pois vou dizer. Tem sujeira, tem gente sabe? Onde tem isso, tem sujeira. E montes de merdas de carro e varias rotinas tão miseráveis quanto a sua. Você não quer isso. Sabe o que mais? Tem olhos, muitos olhos horríveis." Eu peço para ele parar uma e duas vezes, sua voz continua a propagar pelos cantos. "Não pode ser tudo tão estúpido, tão cru. Custa acreditar que alguém retira forças para trabalhar, para viver e correr no meio desse inferno por essas bobagens todas. O que é esse sofá? Conforto? Ilusão. Viver pra que? Acordar por quê? Ilusão. Eu não sei onde arrumar essas respostas. Você não sabe, você não tem isso. Sua vontade caindo, caindo. Seus dedos escorrendo da maçaneta mais uma vez. Ter cuidado pra quê? Querer o que, quando nada existe?"
Lembro quando Rocco contou sobre o trabalho. Dizia que odiava trabalhar em equipe, mas era obrigado a engolir gente, obrigado a ouvir gente que não estava interessado. "Eles tem bocas fedorentas, a maioria nesse mundo substituiu o cu pela boca." Ele não queria ouvir ninguém, não queria ser ouvido e mesmo assim, era ouvido por mim. "Lembro ainda de quando era mais jovem, quando minha mãe e todos diziam para que eu procurasse algo que me agradasse. Eu sabia que essa hora eu devia pular numa trincheira, armado, e lá ficar. Eu nunca soube o que procurar. Agradar, gostar, essas palavras me confundem. Eu não gosto de nada. Não quero nada. Não espero nada nem de mim, nem de ninguém."
Eu também não tenho uma vontade salvadora cravada no peito. Esse é meu heroísmo sádico. Um heroísmo a minha maneira. Não tenho mais vontade de mudar o mundo, nem as pessoas. Não adoro falsos altares, nem deuses. Não estou interessado em quem está no poder, ou no valor do recheio da minha e da sua conta bancária. Eu preso pelo fim, pela destruição total, o mundo agora é como uma lâmpada falhando em meio a escuridão, a humanidade já deu o que tinha que dar. Rocco gosta disso tanto quanto eu. Hipocrisia? Não, nós não fazemos parte de uma felicidade que não existe, não fazemos parte da ilusão. "Me incomoda a mídia, os sorrisos. É o falso bem e bom de mentira falando a todo tempo. Onde está a voz dos seres viscerais? Os malditos onde estão? E eu não falo de criminosos, sabe como é, existem mais deles propagando essa bondade do que nos presídios. Todo esse poder da imagem da imagem da imagem. Agora já podemos vomitar"
Meus dedos deixam a maçaneta. Rocco esfrega as mãos no rosto, ele soluça baixinho e seu choro é sem lágrimas. O mundo tem cheiro de poeira misturado com carne podre. A jaula dos quatis, no zoológico tem cheiro melhor. Ando tendo muitas dores de cabeça e meus olhos ardem constantemente. Toda dor acaba sendo individual, mas a minha é do Rocco também.

2 comentários:

  1. E uma dor assim, escrita, acaba por amenizar outras dores, sabe. Cê conduz muito bem as palavras, prende, e é bom rir do Rocco.

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  2. Nem sei o que dizer desse texto, além de que ele me reconfortou. Muito.
    Ainda vou casar com você e suas palavras, você vai ver UAHUAHAUHAUAHUAHAUAHA

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