quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Alissa não precisava morrer

Alissa tinha essa forte tendência suicida. Já havia tentado de tudo. Uma mangueira conectada no escapamento do carro inundando o interior do veículo com monóxido de carbono. Uma forca improvisada numa viga de madeira do rancho da casa, que por sinal estava podre e se rompeu quando ela pulou da cadeira. Tentou remédios, vários deles e álcool. Até mesmo um veneno ou sabe se lá o que diabos era aquilo que encontrara enquanto dava fim nas coisas da mãe, já falecida a oito anos. " Eu precisava de espaço no armário e então resolvi jogar a velharia fora. Separei apenas uma boneca de porcelana, que ela gostava muito e então me deparei com um frasco avermelhado, cheio de bolinhas laranjas e ásperas. Pensei que aquele era um bom momento e tomei tudo, mas aquilo só me fez cagar e vomitar por uma semana. Tive que dormir sentada na privada, um horror." Ela contou certa vez enquanto fazia uma omelete para o café da manhã. E numa noite, após o sexo, quando tomei coragem para perguntar das marcas nos pulsos ela respondeu "a primeira vez é sempre a mais idiota." Fiquei em silêncio por alguns segundos tentando entender o que ela quis dizer com idiota, matutando sobre as outras tantas vezes. Terminei por mudar de assunto.
Não sei bem se Alissa não tinha mesmo sorte com esse lance de suícidio ou se no fundo da sua alma nebulosa coberta por aquele manto de pele cristalina, ela na verdade não queria morrer. Talvez fosse isso, ela odiava em silêncio e por mais ódio que pudesse sentir da vida, odiava a morte igualmente como se buscasse um mundo paralelo entre as duas coisas. Algo que cultivara na infância e que sobrevivera até então, infinito. Possuía também grandes olhos cor de caramelo, um nariz fino, pequenino, levemente arrebitado que parecia sempre querer, com certa timidez, apontar para a lua. Uma boca avermelhada por natureza, nem muito fina, nem muito grossa terminava o contraste com aquela cabeleira obscura, num tom preto quase de cegueira.
Nos conhecemos por acaso, na sessão de filmes de horror de uma locadora alternativa numa noite de sexta. Eu procurava coisas trash do gênero Grindhouse, quando ela veio com um filme na mão. Apontou a capa para mim.
- Já assistiu esse?
Olhei para o título. Era um filme japônes chamado Suicide Club. Uma colegial estava em primeiro plano na capa e atrás dela varias outras.
- Não. - respondi.
- Eu estava pesquisando, me pareceu muito bom.
- É, talvez...
- Você não é muito falante, não é?
- A maior parte do tempo, não.
- Bom assim. Se quiser assistir comigo... Está convidado.
- Você nem me conhece.
- Você não me parece perigoso. Apesar de justamente isso indicar o contrário - ela abriu um sorriso.
- Olha...
- Então o rapaz vai me seguir? – perguntou, interrompendo.
- Com certeza.
Morava perto dali e no caminho, pouco foi dito. Ela contou coisas sobre a vizinhança e disse que há uma semana a policia federal havia cercado o bairro para prender seu vizinho, que era pedófilo.
Vivia com o irmão, ele trabalhava com alguma coisa de supervisão e controle de hidrelétricas e estava viajando a trabalho. Um portão grande e cinza que se abriu fazendo um barulho agudo levava pela garagem até uma porta grossa de madeira que dava para a sala. E ali estávamos sentados, assistindo o filme japonês. Tudo começou numa estação de metrô de Tóquio, onde varias colegiais estavam indo apanhar o trem, mas antes que ele chegasse até a plataforma, todas elas deram as mãos e pularam nos trilhos ao mesmo tempo. E aí veio aquele banho de sangue e carne triturada na tela, na multidão. E gritos, muitos gritos. Uma serie de suicídios começou a acontecer no decorrer do filme e um detetive resolve investigar tudo isso. Logo descobriu que existia um grupo de música, teoricamente infantil e de muito, mas muito mal gosto japonês que estava por trás disso. Bem, nessa altura eu já não estava nem mais ligando para o filme. Não conseguia tirar os olhos daquele pedaço de gente ao meu lado. Ela ejetou o dvd.
- Gostou?
- Na verdade achei todos esses cretinos um bando de adolescentes influenciados pela mídia. Nada mais que isso. Sei lá, aquele grupo era horrível. Parecia uma coisa tipo Xuxa. Talvez se partirmos desse ponto podemos entender as mortes. Por outro lado, Japão é meio assim mesmo. Muita gente bitolada com esse tipo de coisa...
Ela riu.
- Também esperava mais, – disse – eu já tentei.
- Tentou o que?
- Suicídio, oras.
- Por quê?
- Acho que falta do que fazer. Ou falta de vontade de fazer... Quer uma cerveja?
- Mas é claro.
E assim passei o final de semana na casa dela, acordando atrasado para o trabalho na segunda feira. As pessoas desequilibradas sempre me atraíram.

*

Uma semana se passou. Madrugada seca. Estávamos no meu apartamento bebendo sem parar durante umas quatro horas, quando Alissa aproximou-se da janela e voltou-se para mim.
- Vamos fazer um teste.
- Que teste?
- Eu vou subir no ar condicionado do vizinho de baixo, está logo aqui. – ela se debruçou na janela para olhar o ar condicionado.
- Estamos no décimo quarto andar...
- E daí?
- Para com essa merda.
- Eu vou subir, vamos ver se ele me aguenta.
- Não ouse meter sequer uma perna pra fora dessa janela.
Ela era pequena, 1,57 de altura e pesava 48 quilos. Vinte e três anos de muitas historias. Apoiou uma perna no ar condicionado e me fitou com olhos de provocação.
- Volte essa perna para dentro AGORA MESMO! – gritei, me contorcendo no sofá.
- Parece firme, acho que não vai cair.
- Não...
- Já estou indo! Já estou indo!
- Escuta aqui...
- Atenção!
- Foda-se também. É isso que você quer? Vá em frente. Tomara que se arrebente lá em baixo.
Alissa gargalhou, deixou cair a garrafa para fora. Eu pensei que ela iria recuar.
- Nossa, é alto mesmo!
Nesse momento já estava em pé no ar condicionado, completamente fora. Eu só podia ver a calça jeans preta pela janela. Levantei-me para puxa-la para dentro, mas ela voltou por conta própria.
- Viu? Me aguentou.
- Você é louca ou o que? Podia ter caído de bêbada também.
- Não sei.
Ela foi até o banheiro, pude ouvi-la vomitar, depois escutei o som de seus passos se arrastando pelo assoalho até o quarto. Abandonei minha garrafa e a segui. Ela já estava deitada, de barriga para baixo, fez um esforço para me olhar.
- Você pode me comer se quiser, mas eu vou dormir. Hoje você finge que é um necrófilo.
Não consegui conter o riso, mas sabia que de alguma forma ela iria gostar da experiência.

*

As coisas correram bem a partir daí. A indiferença de Alissa perante a vida e os riscos e qualquer coisa que envolvesse certo tipo de ação inesperada me encantou. Ela começou a passar a maior parte do tempo em meu apartamento, o que não era ruim. Sua presença desfilando pelos cômodos todas as manhãs e todas as noites era como uma obra de arte viva. Também sua voz baixa e suave como uma nuvem ecoando pelas paredes feito uma melodia composta só para mim. E seu sorriso quase inexistente, como uma Mona Lisa comtemporânea, louca e suicida me dava forças para ressuscitar da cama todos os dias e correr para o trabalho. Já levávamos dois meses juntos. Suicídio não era decepar a própria cabeça numa guilhotina, mas sim abandonar Alissa.
Estávamos numa manhã de domingo nublada e tudo indicava uma boa chuva. Já fazia mais ou menos um mês que não víamos agua cair, a cidade estava em clima de deserto. Sentei na cama e acendi um cigarro, olhei para a janela e acariciei levemente os cabelos de Alissa, que voltou o olhar para mim.
- Parece que finalmente vai chover. – eu disse
- Já não é sem tempo. Posso morrer afogada, seca jamais.
Ela se levantou, foi até o banheiro e jogou agua no rosto. Pude ouvir barulhos na cozinha e um cheiro de café logo começou a navegar pela atmosfera. Fui até lá.
- Já era pra ter resultado, não é? – olhou para mim e sorriu.
- O que?
- A morte.
- Vai começar com isso de novo? Alissa, você nunca quis morrer de verdade.
- Não vou. Até acho que você tem razão, mas porra, que tudo é uma verdadeira merda, isso é. E morrer é supostamente uma coisa boa...
- Não discordo, mas faltando a capacidade de comprovar isso, a gente morre de mentira por aqui. Pra mim tem funcionado muito bem, apesar de ainda termos que calçar nossos sapatos e enfrentar meia cidade para trabalhar.
Alissa tirou o café do fogo, serviu duas xícaras.
- Pelo menos é certeza que aqui a gente pode foder e fazer nossas guerras e criar nossos personagens. – ela riu
- Certeza é sempre uma vantagem! – alcancei uma xícara e dei um gole no café.
- Se é! E das grandes.
Alissa sabia, a gente só precisava matar um demônio de cada vez. E os primeiros pingos de chuva já começavam a encharcar os vidros das janelas.

5 comentários:

  1. Adorei, escreves muito bem , e tens criatividade, continue, gosto muito dos teus textos/poemas.

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  2. Sem palavras. Me senti presente no desenrolar desta história.
    Ao meu ver, ela queria paz. Morrer é reencontrar-se com o princípio, o nada. E isso é a plena paz.

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  3. Juro que fiquei à espera de um final trágico. É impressionante a sua habilidade de mesclar fatos, falas e características que acabam por compor textos de um realismo com pinceladas de humor. Seus personagens são de uma "densidade leve" incrível.

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  4. Que tormento.
    Viver pode ser uma experiência exitante... ou traumática.

    apaixonei-me por Alissa.



    ps. já fizeram um bom trabalho em dizer como escreves bem, faço minhas as palavras deles.

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