sábado, 4 de dezembro de 2010

Isabela sempre acordava primeiro e me fazia cocegas nos pés. Eu resmungava baixinho, mas no fundo amava de verdade tudo aquilo, amava cada fio de cabelo que ficava abandonado pela cama. Seus dedos finos e suas unhas, a maioria das vezes pintadas de preto ou de algum tom azul correndo pela sola do pé, de alguma forma faziam todo o ferro do meu corpo circular rapidamente. E logo eu estava sentado, com as pernas encolhidas e os olhos murchos de sempre, admirando aquele sorrisinho sonolento tão ali para mim, parado ao pé da cama.
Levantei para alcançar minhas roupas que estavam jogadas sobre uma cadeira que ficava ali no quarto, acho mesmo que sua única utilidade era aquela: facilitar a vida pela manhã.
- Sabe, sonhei com um lugar bonito – disse Isabela enquanto vestia um vestido daqueles bem caseiros.
- Ah é? Que espécie de lugar?
- Era um bosque, a relva mesclava-se em verde e um quase azul, tinha muitas árvores frutíferas e muitos pássaros pretos e brancos e vermelhos. Tinha até um urso imenso, marrom escuro que tentava pegar frutinhas de uma das árvores e não estava nem ai pra gente sentado ali, quase do lado dele.
- Conheço um lugar mais bonito que esse – fui até a janela e acendi um cigarro.
- Se sonhou com algum melhor, escreva algo sobre ele.
- Posso até escrever, mas o lugar que eu estou falando, é esse quarto aqui.
- Puta merda, isso aqui?!
- Tem uma diferença grande entre o meu lugar bonito e o seu, viu... É isso que faz o meu valer bem mais.
- Que diferença?
- Isso aqui é real, você é real, aquela cadeira ali também é real. Nada aqui dentro é ilusório. Apesar de que às vezes eu duvido que você esteja mesmo metida na minha vida.
Queria dizer que Isabela transava bem, abraçava bem, sorria bem, bebia bem e tinha uma porção de defeitos. Ali dentro, naquele quarto apertado eu me sentia feliz como poucas vezes me senti; e aquele amontoado de paredes e guarda roupas e cama e janela e cadeira porta roupas era pra mim o lugar mais bonito jamais visto em sonhos ou fotografias ou museus, era onde eu estava livre de qualquer mentira, de qualquer suicídio mental que por vezes me vi obrigado a cometer, livre também de olhos famintos e sangue e vomito e toda a merda que cai do céu, direto pra dentro da gente. Eu olhava aquela imensidão pra fora da janela, a cidade toda e aquela fumaça e aqueles prédios todos e as pessoas mais desesperadas que o motor de seus carros e tinha certeza: O lugar bonito era o quarto, nada mais além.
Isabela caminhou até mim e me beijou a nuca. Parou ao meu lado apontando para o céu e me contou algumas coisas sobre as nuvens e suas formas e como sua mãe lhe fazia dormir quando pequena, poucos dias depois do pai morrer num acidente de carro; ela lhe dizia que durante a noite os pedacinhos de nuvem no céu se juntavam com o vento e quando o sol apontasse lá longe, já poderia enxergar o rosto do pai numa grande nuvem que tomaria todo aquele azul infinito.
- E sempre que eu acordava conseguia mesmo ver, até quando não tinha nuvem nenhuma e aquilo me deixava menos triste. Minha mãe sempre foi uma mulher muito forte... – concluiu.
- Você deve ser parecida com ela...
Acariciei seu rosto com o polegar direito e ganhei mais um sorriso, acompanhado de um beijo antes de calçar os sapatos para ir à padaria.
- E vê se da um jeito de trazer um vinho também! - gritou Isabela lá do quarto, quando encostei a mão na maçaneta da porta que ligava a sala com a rua.

11 comentários:

  1. Cara, isso ficou incrível. Foda, muito foda! Parabéns!

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  2. E "Isabela" se supera a cada dia... e é sempre uma deliciosa e emocionante surpresa ler estes textos! Parabéns :o)

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  3. E "Isabela" se supera a cada dia (2)
    foda, já te disse !

    christinna

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  4. Guilherme,
    tem uma surpresinha pra vc no meu blog... no post "selos".

    Beijinhos

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  5. nossa, parece que ache um lugar muito interessante. ctrl+D, agora, neste blog. Parabéns, ficou surreal.

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  6. e a propósito, indiquei um selo para seu blog: http://aprazivelirreprochidez.blogspot.com/p/selo-de-qualidade.html (:

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  7. "...de alguma forma faziam todo o ferro do meu corpo circular rapidamente" - a melhor referência ao sangue do século!

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  8. Gostei daqui, estou seguindo, se der dê uma passada pelo meu. Obrigada.

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  9. Muitoooo bom!
    E como o Vinicios disse; "...de alguma forma faziam todo o ferro do meu corpo circular rapidamente" - a melhor referência ao sangue do século! ²
    =)

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