segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O animal está também dentro do ralo

A conheci numa dessas tabacarias minúsculas que vendem mais revistas do que produtos relacionados ao tabaco em si. Vestia um apertado vestido vermelho decotado que terminava pouco antes dos joelhos e por cima usava um casaquinho preto, com as mangas arregaçadas até os cotovelos; seu corpo estava bem moldado em toda a vestimenta e tive a impressão que tinha aparecido ali só para terminar de afundar minha vida nos meus sonhos lúcidos e desajustados. Eu comprava dois maços de cigarros que deviam durar até o dia seguinte quando ela apoiou suas finas mãos brancas, donas de uma pele que mais parecia um veludo sobre o balcão, direcionou seu olhar amarelado de pantera para o velho vendedor, pedindo para que cobrasse uma revista de palavras cruzadas. Fiquei observando pelo canto dos olhos e notei todas as sardas por cima do nariz e a pequena cicatriz no supercílio. Muitos rapazes diriam que ela era magra demais e muito pálida, mas isso terminava de construir o retrato que acabara de me engolir pelas pernas. Seu nome era Clarice.
Tomamos um café nesse mesmo dia e duas semanas depois ela estava morando em meu apartamento. Fato que me fez constatar os sérios problemas mentais que carrego comigo desde a infância.
Os três primeiros meses foram terríveis. Eu tinha vontade de me afogar na pia toda vez que entrava no banheiro de manhã pra tomar banho antes de comer meu pão murcho de três dias, esquentado na chapa com manteiga, e calçar os sapatos empoeirados e gastos para caminhar em meio a toda aquela imundice mundana até o trabalho. Clarice tinha uma longa cabeleira ruiva que entupia o ralo do chuveiro pelo menos três vezes por mês e quando isso acontecia lá ia eu enfiar a mão naquele buraco seboso e fedido pra puxar para fora todo aquele emaranhado de fios e atirá-lo no lixo.
Decidi que era melhor que fosse embora e ela disse “ok cretino.” Mas continuou em casa como se fizesse parte do lugar, apenas dormia em outro quarto. Fiz-me de durão por dois dias e depois desses, sempre acabava indo parar no quarto dela durante a noite e nós transávamos e acordávamos atrasados para o trabalho. Uma semana nesse ritmo e aquilo continuava ali, entalando e entupindo.
Demorei um tempo para perceber que ele estava ali na ponta dos fios emaranhados dentro do meu ralo e até mesmo nos vãos dos tacos do piso. Esse animal chamado amor caiu de paraquedas por cima da minha cabeça e invadiu minha solidão sem nem dizer o sobrenome e logo um par de pernas e braços junto aos meus aquecendo os lençóis continuamente tinha ocupado o lugar de todas as coisas tristes que acumulei durante minha vida de sonhos estilhaçados e caminhos escuros. Clarice está de volta em minha cama e os cabelos nunca saíram de lá.

20 comentários:

  1. Não há o que comentar ;)
    Seguindo, sem nem pensar muito.

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  2. Totalmente sem palavras pra descrever o quão gosto da sua escrita! Vc escreve de uma forma desprendida, começa de uma forma e quando vai chegando no fim percebemos que não era nada do que pensávamos!

    É sempre assim, quando menos esperamos o amor nos pega rs'

    bjs.

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  3. Gostei muito. A forma de escrita chama a atenção, sem falar no conteúdo.
    Parabéns.

    Ganhou uma nova seguidora. ;)

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  4. Adoro a forma como escreve, sua escrita é maravilhosa!
    Belo texto, bonita historia, adorei o final.
    Amor...amor.

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  5. Realmente, não há o que falar!
    Você escreve de uma forma muito expressiva, adoro seus textos
    Por isso, tem um selo pra você lá no meu blog ^^
    http://coisasqdaonatelha.blogspot.com/search?updated-max=2010-12-25T09%3A40%3A00-03%3A00&max-results=2

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  6. Ando tendo uma aprecio maior por contos, do que antes. Esses é um daqueles que faz com isso continue.
    Adorei todo o desenrolar, principalmente as partes que você a define com palavras tão simplórias.
    Parabéns, http://ideologiaparaviver.blogspot.com

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  7. Oi, tem um selo pra você lá no meu blog. Beijo. =*

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. Têm tanta gente por aí arrotando erudição que não possui, em milhaaares de blogs cheios daqueles projetos mal feitos de contos, ou então gente que precisa se expressar de qualquer jeito e tenta isso através da escrita, mas sem sucesso. Você é uma daqueles escritores que me admira muito não estar com dezenas de livros publicados morando numa mansão, dando autógrafos e tal. Resumindo, você é O MELHOR escritor não-conhecido que eu já vi. Ah cara, sem palavras pra tua escrita.

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  10. Nem sei o que comentar .. você escreve muito bem Guilherme .. já te disse que fico impressionada com seus textos e digo novamente.Seu texto tá maravilhoso !

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  11. Como disse acima a Juliana, você é o melhor escritor desconhecido que eu "conheço".

    Tem selo pra ti no meu blog guri.

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  12. Fiquei procurando um adjetivo que coubesse aqui, mas não achei nenhum à altura. Meu Deus, tu é foda, cara!

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  13. Muito muito bom. Tem selo pra você no meu blog. :)

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  14. Na boa, sem condições de comentar um negócio desses.

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  15. Fazia um tempinho que não aparecia por aqui. Mas quando volto me deparo com esse texto de palavras bem colocadas e bastante expressivo (:
    Muito bom mesmo, viu!?
    Adorei!

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  16. não é nem um pouco difícil pra você não é?

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  17. Que coisa, jurava ter comentado neste post :s
    Pois então, li e achei simplismente adorável!
    [MESMO]

    Parabéns Guilherme.

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