sábado, 6 de agosto de 2011

Muito cedo para matar baratas

A vida de Edgar se resumia em fatores simples e cotidianos. Pensava ele que no mundo não poderia existir nada mais delirante e estúpido que sua vida empoeirada, presa numa existência trivial e seca, nem mesmo Deus e todos aqueles santinhos medonhos e feios que rodeavam as igrejas, as casas, as praças, os escritórios de advocacia e os banheiros públicos seriam tão falsos e tristes como cada uma de suas manhãs ensolaradas ou não, sempre cinzas. Sentia-se aprisionado dentro de um pequeno souvenir, daqueles em formato de bola de cristal, que abrigam dentro uma pequena casa. Um mundo portátil e sujo que quando chacoalhado, arremessado ou bombardeado, só faz nevar e nevar e nevar.
Acordava cedo, com olhos de tigre e nariz escorrendo. Dava palmadas no despertador, que pulava freneticamente na mesinha de cabeceira, até que este fizesse o mais profundo silencio. O último minuto de paz da manhã. Descalço, arrastava os pés até o banheiro como se passasse por um caminho de brasas e cacos fininhos. Lavava o rosto três vezes, antes de erguer a cabeça e contemplar sua imagem de animal acuado em meio à sujeira impregnada nas bordas do espelho. Nunca tomava café, qualquer comida naquele horário lhe caia mal, não conseguia ingerir nem mesmo uma maçã. Por vezes sentia vontade de chorar, ainda parado em frente ao engordurado espelho. Elas nunca escorriam. Era como se suas lagrimas tivessem evaporado, tivessem virado uma cortina de fumaça que desapareceu acima das nuvens. “Merda!” ele dizia, “merda, merda, merda!”
Sua casa virava um campo de batalha quando finalmente se encontrava parado em frente à porta, esticando o braço, alcançando a maçaneta enferrujada, fazendo luz, ruído, fumaça, medo. O poder da rua contra seus cinco dedos magros e gastos da mão esquerda. Ele ganhava essa batalha já há uns bons trinta anos. Era mais um mutilado, uma vitima, do que um veterano de guerra. Não existe mutilação pior que a mutilação da alma. Podem te arrancar as orelhas, os braços e as pernas que você ainda encontra forças pra sorrir, pra voar. Com a alma é diferente, se te esquartejam a alma, só ela, é o fim. Edgar se sentia uma carcaça, uma verdadeira carniça jogada no deserto de concreto, a mercê dos abutres. Milhões deles, famintos nas janelas dos prédios, nos mercados, nas salas de espera dos dentistas, nos cinemas. Sobrevoavam as calçadas, as ruas, os metrôs. Tudo. O planeta era um gigantesco açougue perdido na escuridão do espaço.
Era uma manhã de terça feira. Não chovia, não fazia sol, não fazia nada. Seguiu minuciosamente sua costumeira rotina, exceto pela barata que passou correndo por entre suas pernas quando se aproximava da porta. “Muito cedo para matar baratas.” Pensou.
Andava devagar, carregando nos joelhos toda a estupidez e cansaço do mundo. Arrastava tudo isso pela praia, gostava de passar por ali naquele horário porque não havia ninguém. Ficava só, com o cheiro de marisco e o gosto de sal. Era bonito e triste, seria um pouco melhor se as ondas pudessem trazer do mais profundo oceano, novos sonhos. Sonhos com grandes árvores e barulho de vento e cheiro de terra misturado com qualquer perfume desconhecido. Qualquer odor que não fosse o de sangue batido com tijolo e ferro.
Seus devaneios foram interrompidos quando cruzou o beco que conectava a cidade ao prédio onde trabalhava. O lugar fedia a mijo e vômito. A entrada para o inferno devia estar próxima, pensava. E era só virar a esquina, passar a mercearia ainda fechada para dar com a cara nos portões negros e envelhecidos do edifício 143.
Na recepção Senhor Carlos batia os pés enquanto flertava com a secretária. Afundou os olhos azuis do tamanho de escaravelhos contra os de Edgar:
- 15 MINUTOS ATRASADO EDGAR. 15 MINUTOS!
Tinha hálito de peixe morto, era como se tivesse escamas espalhadas por toda a boca, era horrível. Era humano. Podre.
Edgar sorria enquanto alargava os passos até o elevador. Gargalhava, morria por mais um dia.
- TE CONTEI ALGUMA PIADA? – Interrogava Carlos, lá de trás. – EXISTE AQUI ALGUM PALHAÇO? JUNTE SUAS COISAS E DE O FORA DAQUI!
Edgar não respondeu. Foi até sua sala, sentou-se e acendeu um cigarro antes de começar a juntar as tralhas. Ele tinha ânsia, queria vomitar. “Maldito porco de olhos azuis.” Dizia para si mesmo. Pouco a pouco perdia o controle, não sabia mais para onde correr, não suportava. Não entendia nada. Cinquenta anos atolado na merda. Cinquenta anos vivendo a morte, o inferno. Ele desistia.
Aquela manhã, Carlos merecia, devia estar morto, com os miolos espalhados por todo o balcão da secretaria ou fatiado como uma picanha, mas era muito cedo para matar baratas.

2 comentários:

  1. Espero que encontre o horário certo pra matar as tais baratas. Um abraço.

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  2. Confesso que a idéia niilista sempre me agrada, eu gostei muito.

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