quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Perdendo as peças do jogo, queimando o tabuleiro

Comecei a trocar palavras com Manuela no pequeno período em que trabalhei na fazenda. Ia passar um tempo em Portugal e resolvi me juntar a um desses projetos da câmara para restaurar o patrimônio arquitetônico escondido no mato. Minha ideia principal quando escolhi fazer isso era o isolamento. O barulho do vento nas folhas das árvores, o canto dos pássaros, o orvalho frio da manhã. Tudo isso parecia melhor que as vozes da cidade martelando continuamente a cabeça; as pessoas vomitavam coisas horríveis, tinham o poder de destruir sonhos com um simples abrir e fechar de boca e ranger de dentes.
Manuela não falava muito, e ainda assim falava um tanto mais que eu. O que era muito bom e despertava meu raro interesse em trocar algo entre almas. Além disso, tinha um sorriso tímido e pequeno, como se fosse um desenho. Isso sempre me fascinou, o contorno dos lábios, a forma. Parece estupidez, mas eu achava aquilo importante. Como a maioria das mulheres que já me chamaram a atenção, Manuela era baixa, tinha proporções pequenas. A pele queimada de sol. Os olhos castanhos, escuros como terra batida às vezes pareciam cantar enquanto ela lambia os lábios ressecados e se inclinava para arrancar minúsculas ervas do muro. Tinha três dreads que saltavam da nuca quando prendia o cabelo quase da mesma cor dos olhos. Os dreads pareciam pequenos gravetinhos gordos, eu gostava de brincar com eles. Era bonita, não era vulgar enquanto caminhava, nem se importava com o que vestia e xingava como ninguém.
Era estranha também. Tinha a mania de fazer perguntas aleatórias e fora de contexto. Claro, eu tinha que ser muito esquisito para gostar desse habito. Uma vez corri atrás de um arbusto para mijar, ela esperava uns dois metros atrás enquanto me atirava algumas interrogações.
- Não tens medo de cobras? Encontrei uma morta no muro, não quero mais trabalhar lá.
- Não tenho. Vou fazer elas ficarem longe de você.
- Ah. E gostas de reggae? E de batatas, gostas?
- É claro, Manuela.
- Acho bué giro os brasileiros falando! Queres ir à praia comigo? Apresento-te pessoas.
- Pessoas?
- Sim! Ou queres ficar ca sozinho?
- Bem...
- Tens que conhecer gente
- Depende da "gente"
Nesse dia, aceitei o convite, mesmo que a parte das apresentações e a combinação asquerosa de sol, areia, sal e agua me desse vontade de correr para um buraco bem fundo e lá ficar por uma semana. Contei que até gostava de praias desertas, com sombra e pouco barulho. Ela me disse que algum dia me levaria para conhecer uma assim, o que nunca aconteceu.
As coisas iam saindo do controle, minha pedra estava derretendo e eu sabia disso. As cervejas não eram suficientes. Eu ficava amedrontado. O medo era diferente, não sei se chamaria aquela coisa assim, mas era algo que me acuava igualmente. Tirava-me do ciclo normal e autodestrutivo dos meus pensamentos.
Faltavam alguns dias para acabar o tempo do projeto. Manuela sorria e colocava as mãos nas minhas costas. Aquela merda toda acontecia outra vez, eu tinha que parar. No último, ela se ofereceu para me mostrar lugares interessantes da cidade durante a tarde, se eu não tivesse nada pra fazer. Inventei uma desculpa. Uma explosão. Uma privada entupida, e acabei indo mamar umas cervejas.
Aqueles dias haviam acabado e quase fui pego outra vez, eu sabia que no fim acabaria sendo tudo igual. Essa merda sempre termina em dor, sempre termina espetando até as solas dos pés. Meu coração regurgitou por alguns dias e a última vez em que tivemos contato, eu estava bêbado num jantar, rodeado por pessoas parcialmente desconhecidas. Meu celular apitara no bolso. Odiava telefones, principalmente quando interrompiam meu trago. Era Manuela, acompanhada por suas perguntas. “Qual música brasileira é que dizias que eu ia gostar?” Respondi a mensagem com um sorriso de canto de lábio, não esperava aquilo, não sou alguém assim procurado. “Não era brasileira, era argentina. Se quiser algumas brasileiras posso te passar.” Ataquei mais uma cerveja. Esperei três dias por mais um apito e ela nunca respondeu. Me recusei a mandar outra, fuzilei essa ideia durante semanas. Pelo menos dali a alguns dias quem sabe, estaria inteiro mais uma vez, isso é, com as partes que ainda me restavam para tapar os buracos.
Meu fracasso humano está cada vez mais além das nuvens. Não suporto jogar com isso, não sei mais mover o pião. Perco as peças uma a uma, o tabuleiro vai virando cinzas e a chama nunca se apaga.

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